Por que em pleno mundo moderno ainda não existe uma pílula anticoncepcional masculina?
Há 60 anos, a pílula anticoncepcional chegava à vida das mulheres e as emancipava sexualmente. Desde então, as ofertas no mercado da contracepção foram atualizadas, aperfeiçoadas e diversificadas, mas nunca incluíram os homens como seu público- alvo. O que faz cimentar a ideia de que somos nós as responsáveis por engravidar ou não, além de únicas encarregadas de seus preços e pesos, tangíveis e intangíveis. Por quê?
Talvez a discussão mais fora do roteiro que tive num relacionamento amoroso tenha acontecido por causa de pílulas anticoncepcionais. Aos 25 anos, e no auge da descoberta do feminismo em mim, propus que meu então namorado dividisse comigo o custo mensal de 60 e poucos reais pagos por uma caixa de Yasmin, bancada, naquela altura de mais de dois anos de relação, integralmente por mim. Me lembro de ter saído envergonhada do episódio, afinal, a pílula que havia emancipado sexualmente a minha avó, décadas depois me prendia num debate estafante no qual eu tentava dividir as despesas do meu controle reprodutivo com um homem. Corta para agora, oito anos depois. Estou aqui prestes a escrever que a Natacha feminista exausta de 25 anos tinha mais razões do que imaginava para brigar pela partilha do valor de seu contraceptivo. A começar pela pergunta que guiará este texto: por que ainda não existe uma pílula anticoncepcional masculina? E mais: por que, mesmo 60 anos depois da chegada da pílula feminina ao mercado, a responsabilidade pela contracepção e seus custos – financeiros, mas não só – ainda é tremendamente desigual entre mulheres e homens?
A resposta não é simples, tampouco pode ser dada por um só ator. Há versões da indústria farmacêutica, dos cientistas e laboratórios que se dedicam ao estudo da contracepção, das organizações e governos que financiam pesquisas em cima do tema. Mas há, por outro lado, a versão da antropologia e das ciências sociais, que não fogem do que diz a estrutura patriarcal na qual a sociedade em que vivemos foi construída. “A pílula feminina foi uma tecnologia de libertação que se tornou também um fardo”, afirma Georgia Pereira, doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Mulher cisgênero e heterossexual de 33 anos, Georgia estuda a contracepção desde o mestrado, e começou devido a um incômodo pessoal: as injustiças de gênero que o assunto carrega, possíveis de sentir na pele a partir da primeira menstruação. “Toda tecnologia, e isso inclui as biomédicas, tem questões culturais. Não se trata apenas das fisiológicas, tecnológicas ou mercadológicas. A exclusividade da pílula para a população feminina materializa a ideia de que somos nós as responsáveis pela contracepção”, diz ela, que no mestrado analisou o trabalho que a Male Contraceptive Initiative (MCI) faz para criar a viabilidade cultural de uma pílula masculina. A organização norte-americana coloca dinheiro em estudos que pensam novos métodos contraceptivos masculinos reversíveis e não hormonais – e tem um discurso no mínimo interessante que trata de “empoderar homens e casais com os recursos de que precisam para contribuir de forma igualitária com as metas de planejamento familiar”. Será que falando assim, em empoderamento em vez de comprometimento, os homens ficariam mais propensos a usar um contraceptivo equivalente aos tantos já destinados às mulheres?
Olhar para o cenário pré-pílula feminina, vulgo antes de agosto de 1960, é um jeito de supor a resposta. Era meados da década de 1950 quando o anticoncepcional WIN18446 começou a ser testado em uma população de detentos nos Estados Unidos. O objetivo era que agisse inibindo a produção de espermatozoides. Os ensaios iniciais foram positivos. Nenhum efeito adverso foi relatado e os homens testados tiveram de fato uma queda significativa nas células reprodutivas. A partir daí, passou-se a testar na população em geral. Acontece que começaram a aparecer relatos de intoxicação. Homens com vômito, náusea e dor de cabeça. Não demorou para descobrirem que o WIN18446 não podia de forma alguma ser associado a álcool, porque inibia uma enzima que o corpo humano usa para metabolizar a substância. O projeto foi imediatamente abandonado.
Professor do Departamento de Farmacologia do Instituto de Biociências de Botucatu, em São Paulo, Erick José Ramo da Silva comanda um laboratório de reprodução e andrologia onde estuda, com a ajuda de oito doutorandos, a contracepção masculina. Segundo ele, além da experiência com o WIN18446, estudos clínicos da década de 1980 também demonstraram que inibir a espermatogênese de forma reversível por meio de estratégias hormonais é plenamente possível. No entanto, os registros mostram estudos suspensos sempre que efeitos adversos são notados. Mesmo que sejam relativamente brandos, como acne, alterações no humor, peso e desejo sexual. Em suma, os mesmos conhecidos e esperados por mulheres que usam métodos anticonceptivos hormonais. “Uma das razões pelas quais não temos ainda o contraceptivo masculino é justamente porque o feminino existe, é eficaz e tem um alto grau de segurança”, acredita o professor. “A indústria só vai colocar no mercado algo que seja mais vantajoso do que há hoje. Contraceptivos são usados por pessoas saudáveis”, acrescenta.
Ora, mas se tratando de contracepção, mulheres são submetidas desde sempre a tecnologias que não só podem provocar acne e alterações de humor, como, em casos mais esporádicos, tromboembolismo e até morte. Sem falar que a pílula pioneira, a Enovid, criada graças aos esforços de duas controversas feministas (Margaret Sanger e Katherine McCormick) e um cientista (Gregory Pincus), trazia uma carga hormonal dez vezes maior do que as pílulas de agora. A régua da ciência para segurança e eficácia parece não ser a mesma para mulheres e homens. Não parece e não é.
Na mulher, os efeitos colaterais são contrapostos à gravidez, “que por si só traz uma série de ameaças à saúde: a gestação aumenta dez vezes o risco de acidentes cardiovasculares”, explica Erick – o que faz os benefícios da suspensão da fertilidade superarem os riscos de uma gravidez. No homem, os efeitos colaterais são contrapostos a um corpo que não engravida, um “corpo saudável”. Em outras palavras: a mulher, que engravida com a junção de um óvulo e um espermatozoide, paga o preço sozinha – no corpo, no bolso, na libido e na mente – dos riscos associados ao uso de anticoncepcionais.
“Compreender o perfil de risco para a experiência dos homens com os efeitos colaterais quando eles não experimentam os riscos associados à gravidez é um desafio”, argumenta Heather Vahdat, diretora executiva da Male Contraceptive Initiative. “Isso às vezes faz com que as mulheres, que sofreram os efeitos colaterais da contracepção por gerações, revirem os olhos”, continua. Por isso, a MCI, em sua tarefa de educar homens para a chegada de um método destinado a eles, fala em “risco compartilhado” entre os dois sexos. Heather vai além dos efeitos adversos experienciados por nós e cita a impressionante média global de 121 milhões de gravidezes indesejadas por ano, conforme dados coletados entre 2015 e 2019 – o que gera uma imensa procura pela interrupção da gravidez. Só em 2019, o United Nations Department of Economic and Social Affairs relatou que 190 milhões de mulheres do mundo todo, que não estavam usando nenhum método anticoncepcional, procuraram interromper suas gestações ou evitar que acontecessem por meio da pílula do dia seguinte. “Essas estatísticas são indicadores diretos de consequências negativas para a saúde social, incluindo mortalidade materna e infantil, perpetuação dos ciclos de pobreza e diminuição do nível de escolaridade”, aponta Heather. O que quer dizer que falar da pílula masculina é também falar sobre os direitos reprodutivos da população e o impacto deles em variadas instâncias da vida.
Outra questão que tem feito da pílula masculina lenda urbana diz respeito à anatomia. Pesquisadores garantem que bloquear um óvulo por mês é um desafio mais simples do que inibir a produção diária de milhões de espermatozoides. Mesmo quando o homem perde 90% de sua capacidade de produzi-los, segue sendo fértil. Bloquear a fertilidade masculina sem prejudicá-la seria não só difícil, mas caríssimo. Segundo Heather, pode custar mais de US$ 1 bilhão trazer um novo medicamento nesses moldes ao mercado. Com a indústria farmacêutica lavando as mãos para essa demanda, cientistas têm buscado alternativas por meios não hormonais. Erick conta que grupos de diferentes universidades do mundo trabalham nisso atualmente. “Pesquisas já se mostraram efetivas em animais de laboratório e em estudos in vitro de células, sendo potencialmente viáveis e interessantes. Há, inclusive, as que já estão em fase de ensaio em humanos. É muito provável que seja por um método não hormonal que a ‘pílula masculina’ aconteça”, aposta o pesquisador, que cita como promessa o Vasalgel, um substituto da vasectomia com reversibilidade mais simples. Desenvolvido pela ONG norte-americana Parsemus Foundation, trata-se de um polímero que entope o canal por onde passam os espermatozoides, ainda em fase de estudo.
A esta altura, você pode estar se perguntando: mas e a camisinha não seria um método contraceptivo masculino? Sim. Os únicos disponíveis são ela e a vasectomia, com alta eficácia, porém de complexa reversibilidade e exigência de procedimento cirúrgico. Entretanto, ao considerar os preservativos, deparamos com sua alta taxa de falha, de 15% a 20%, e não é raro que seu uso acabe dispensado em relações estáveis ou casuais. O que, de novo, direciona a responsabilidade e os riscos da contracepção ao público feminino, seja no “trabalho invisível que é cuidar da contracepção”, pontua Georgia Pereira, seja no que é administrar a descoberta de uma gravidez. “Mulheres precisam ir ao ginecologista, lembrar de tomar a pílula todo dia; se for o DIU, tem a manutenção por meio da ultrassonografia. Existe uma espécie de carga mental, além do investimento de tempo e dinheiro [este é o momento para você multiplicar o valor gasto com a sua contracepção pelos anos em que já usou e ainda vai usar]. Depois, a gravidez acontece no corpo da mulher, mas deveria ser responsabilidade compartilhada porque também diz respeito aos homens. No mais, se o assunto é reprodução, o seu desejo ou não, o corpo que está sofrendo a intervenção é o da mulher”, discorre a pesquisadora, que acrescenta: “Desde a Segunda Guerra, entre DIU, adesivo e anel vaginal, foram lançados 18 novos contraceptivos femininos”. Isto é, não faltaram interesses em levar esses produtos ao mercado. Faltariam, então, para disponibilizar um novo contraceptivo masculino?
Se depender da indústria farmacêutica, sim, ou algo parecido com isso. E a resposta é unanimidade entre as fontes ouvidas para esta reportagem. De acordo com Heather, da MCI, as farmacêuticas se afastaram do desenvolvimento de produtos anticoncepcionais há 30 anos, deixando um grande vazio no financiamento. A maioria do desenvolvimento desde então tem sido apoiada por governos (sendo o dos Estados Unidos o maior investidor) e pelo setor filantrópico (como as norte-americanas Fundação Bill & Melinda Gates e Population Council), com maior expressividade ainda nos métodos reservados às mulheres. “É por isso que a defesa de direitos é uma parte importante do nosso trabalho”, diz ela. O professor Erick alega que a indústria, que hoje movimenta US$ 18 bilhões anuais somente com as pílulas, não está acomodada. “Ela simplesmente não tem a contracepção como prioridade”, diz. E o pouco que investe é em melhorias. “Mas não é inovação radical como acontece, ano após ano, com os fármacos para câncer e diabetes”, afirma.
Georgia lembra de um capítulo importante da história da “indústria farmacêutica & contraceptivos”: após o boom da estreia da pílula feminina no mercado, vieram os relatos de efeitos adversos e os processos judiciais, principalmente nos Estados Unidos. “Então, houve um momento em que as farmacêuticas não conseguiam mais contratar seguro para as indenizações. Durante muito tempo, a pílula foi o medicamento com mais processos no mundo, e vendê-la passou a ser um negócio arriscado.”
Entramos em contato com a companhia alemã Bayer, responsável pelos medicamentos Yasmin, Mirena e Diane 35, entre outros; com a União Química, fabricante do Ciclo 21; com a Libbs, que faz o Lumi; com a Eurofarma, responsável pelo Tamisa; e com a Aché, fabricante do Femina. As farmacêuticas citadas aparecem em listas de pílulas anticoncepcionais mais vendidas no Brasil e a elas foi perguntado sobre seus investimentos em uma pílula masculina e, caso não houvesse, por que não? Exceto a Bayer, que informou que no momento os anticoncepcionais masculinos não estão entre os seus produtos, nenhuma das demais enviou respostas até o fechamento deste texto.
É inegável: ao tratar a contracepção e a sua história, tratamos do lugar das mulheres e dos homens na sociedade. E não se pode ignorar que uma dessas populações sempre foi subjugada em detrimento da outra. Isso inclui o corpo das integrantes dessa população. “O corpo feminino sempre foi mais medicalizado”, afirma Georgia. “Temos uma especialidade médica, a ginecologia, e somos freguesas fiéis dela. Os homens não vão ao andrologista. Até podem ir ao urologista, mas esse médico trata do sistema urinário. Enquanto nas mulheres a reprodução é medicalizada, nos homens é a performance sexual – há um Viagra para eles, mas não para nós. Fomos patologizadas e colocadas como naturalmente doentes, como se faltasse algo, já dizia Freud”, continua. “São vários os fatores pelos quais não temos uma pílula masculina hoje, mas todos eles chegam a uma diferença de gênero”, conclui a pesquisadora.
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