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Tania Navarro Swain 
“O que
  é uma mulher?” perguntou Simone de Beauvoir  em 1949(de
  Beauvoir,ed.1961:7) As evidências em geral tendem a se desconstruir quando
  analisadas atentamente: o que é o feminino, o que é a feminilidade? Fêmea ou
  mulher ou mulher porque fêmea? Em que ordem de evidências
  instituiu-se a reprodução, a procriação enquanto marco decisivo na divisão
  dos seres e em que ordem de representações definiu-se feminino e masculino em
  patamares hierárquicos e assimétricos na constituição das relações sociais? 
Meio século de feminismo
  permitiu uma intensa produção teórica a este respeito, inspirada de alguma
  forma pelo “On ne naît pas femme, on le devient” de Simone de Beauvoir.( de
  Beauvoir,ed. 1966,13) Obra incontornável para o feminismo contemporâneo, a
  releitura do Segundo Sexo em 1999 permite a atualização de reflexões em torno
  dos papéis  e dos corpos sexuados,  constituídos em identidades
  sexuais. 
Entretanto, se as teorias
  feministas continuam a desenvolver sua análise crítica do social,
  debruçando-se sobre os mecanismos constitutivos da divisão binária do social,
  os movimentos feministas vem perdendo seu lugar de fala, sua força subversiva
  na medida em que decretou-se, no senso comum e na mídia, que o feminismo
  acabou, que a igualdade foi conseguida, que as mulheres já ocupam seu lugar
  ao sol. 
Tenho
  ouvido  jovens universitárias  perguntarem candidamente se é
  possível ser feminista e feminina mas sobretudo
  indagarem se o  feminismo é ainda necessário. Simone de Beauvoir
  questionava a noção de feminilidade em 1949 e 50 anos depois as imagens do
  “ser mulher”, do “ser feminina” permanecem ancoradas no imaginário social
  traduzidas em trejeitos e modelos normatizadores que interinam a
  re-naturalização dos papéis sociais. 
Quantas mulheres recusam o
  feminismo receosas da assimilação às lésbicas, às mal-amadas, às feias , às
  excluídas do desejo e do olhar dos homens, sem perceber que continuam a se
  colocar enquanto o Outro do “verdadeiro” sujeito, o masculino,
  assujeitando-se às normas da beleza, da sedução enquanto eixos norteadores de
  suas vidas? Quantas mulheres percebem que se atrelam a um destino “natural” ,
  o da “verdadeira mulher” , mãe e esposa, cumprindo os desígnios das
  representações sociais institucionalizadas? 
Um olhar mais amplo percebe,
  sob o verniz  de “conquistas” liberais em tempos de globalização, a
  multiplicidade de experiências no espaço vivido das mulheres: a desigualdade
  de salários e de oportunidades, a pobreza e o analfabetismo preferencialmente
  feminino, a violência específica que sofrem em seus corpos e em seu lugar no
  mundo, a eliminação sistemática de bebês-meninas em certos países, a
  mutilação sexual, a banalização da prostituição, todas formas
  paroxísticas  da violência social contra as mulheres. 
A definição do ser humano
  enquanto mulher organiza práticas sociais que delimitam suas atividades e sua
  importância culturais no tempo e no espaço; no Ocidente tem-se atrelado,
  desde a antiguidade grega a imagens e representações negativas do feminino
  constituídas em densas redes discursivas interligando filosofia, teologia,
  medicina, direito, educação, senso comum, tradições orais e escritas. 
A construção e desvalorização
  do ser “mulher” aparece como resultado de uma essência atrelada à um corpo
  deficiente, à um espírito fraco e superficial, a uma moral escorregadia e
  duvidosa que pedem uma vigilância  constante e a domesticação de seus
  pendores para o deslize e o mal. Benoîte Groult ( Groult, 1993) publicou um
  livro que reúne as pérolas distiladas ao longo do tempo sobre as mulheres,
  reunindo os discursos de autoridade dos Aristóteles, Paulo, Agostinho,Tomas
  de Aquino, Jeronimo, Crisóstomo e outros padres da igreja, dos Lutero, Freud,
  Rousseau, Proudhon, Nietszche, Hegel, dos Baudelaire, Musset,  Balzac ,
  Rabelais etc, que as condenam à ignorância, à domesticidade, à submissão, ao
  silêncio, à penitência e à resignação dada sua “natural” inferioridade ,
  marcada  em seu corpo ao nascer, pelo estigma e a maldição do feminino,
  “segundo sexo”, macho mutilado e  imperfeito. 
Diabolizado desde a lendária
  Eva, (Delumeau,1978) o feminino é, porém, resgatado em seu próprio corpo pela
  fecundidade, pela possibilidade de reproduzir o humano e sobretudo, o
  masculino.(Paulo, Epístola Corintíos)  Em seu lado obscuro, portanto,
  toda mulher deveria carregar o pecado e a fraqueza moral e em seu lado
  luminoso, o dever e a alegria da maternidade. 
Encontramos assim a mãe e a
  prostituta, analisadas por Simone de Beauvoir, binômio inseparável da
  representação social da mulher. Mãe e esposa , família, sexo domesticado,
  moralidade,  espaço privado, reprodução do social; prostituta, mulher
  pública, liberação do vício e da devassidão latentes no feminino . 
Estas categorias , que habitam
  a imagem do feminino são fundadas nas premissas da heterossexualidade e nas
  matrizes institucionais do patricarcado. Assim, as mulheres só realizariam
  seu ser no mundo no encontro incontornável com o masculino, para dar-lhe uma
  descendência e apaziguar seu desejo. A maternidade seria seu destino e sua
  transcendência, a prostituição a imanência na impureza de seu sexo. 
O capítulo sobre a maternidade
  em Simone de Beauvoir é longo, invocando testemunhos e exemplos em sua
  argumentação. O que salta aos olhos é sua dimensão política, na medida em que
  desde o início se concentra em uma longa análise da questão do aborto , da
  liberdade que deve acompanhar a decisão de ser mãe; aponta para a hipocrisia
  social que impede o aborto e se desinteressa da criança ao nascer .(291) 
Todo o início de seu discurso
  sobre a maternidade é um debate sobre a liberação do aborto , as condições
  psicológicas das mulheres cuja gravidez é indesejável e a necessidade do
  contrôle de nascimento. Afirma que “[…] O “birth-control’ e o aborto
  legalizado permitiriam à mulher assumir livrmente sua maternidade.[…]
  Gravidez e maternidade são vividas de maneira muito diferentes, de acordo com
  suas circuntâncias, na revolta, resignação, satisfação, entusiasmo”.(301)
  Assim desnaturaliza uma questão que finalmente é moral e histórica, 
  inserida em uma trama de valores que se travestem em verdades definitivas . 
A maternidade perde assim seu
  caráter inexorável e toma em sua análise uma perspectiva de retomada de seus
  corpos pelas mulheres, identificando-se na procriação compulsória uma das
  chaves do poder partriarcal. De Beauvoir discute e desmistifica  o desejo
  de maternidade, o amor materno como partes constitutivas  do feminino.
  Sublinha que “[…] É preciso estar atento pois as decisões e os
  sentimentos  expressos pela jovem mãe não corresponde sempre à seus
  desejos mais profundos.”( 301) Afastando o essencialismo que fixa o a mulher
  numa classificação e num modêlo único tenta mostrar o múltiplo da experiência
  concreta DAS mulheres em práticas sociais diversas. 
Mostra a relação contraditória
  das mulheres em relação à vontade de ser mãe em diferentes fases de suas vida
  ou num misto  de desejo/repulsa. Indica igualmente a força da relação
  com o  pai da criança: “A mulher modelará muitas vezes seus sentimentos
  sobre os de seu marido se lhe tem afeto : acolherá gravidez e maternidade com
  alegria ou desagrado segundo ele demonstre orgulho ou impaciência.” , afirma
  (306) 
Esta contextualização do amor
  materno é inovadora na medida em que o discurso social torna inseparável a
  imagem da “verdadeira mulher “e da mãe.  A mulher torna-se sexo e
  sexualidade , na medida em que seu ser só atinge a plenitude na prática
  heterossexual. O corp o inteligível da mulher se coloca em matrizes determinantes de sua ação e de sua images. 
Inserida nesta trama de
  representações Simone de Beauvoir, mesmo desconstruindo o essencialismo ,
  nele recai ao declarar que :“É pela maternidade que a  mulher cumpre
  integralmente seu destino fisiológico: é sua vocação ‘natural’pois todo seu
  organismo é orientado pela perpetuação da espécie”(290) Esta afirmação é
  entretanto matizada, pois para ela “[…] a sociedade humana não é nunca apenas
  natureza”(290). Temos assim, para a autora, uma base ‘natural’, biológica,
  sobre a qual se inscreveriam os ditames sociais:  “[…] diz-se de uma
  mulher que se ela é coquette , ou apaixonada ou lésbica ou ambiciosa é ‘por não
  ter filhos’; sua vida sexual, seus objetivos, os valores que afirma seriam
  apenas substitutos de filhos. […]É uma moral social e artificial que se
  esconde sob este pseudo-naturalismo. Que uma criança seja o fim supremo da
  mulher, isto é uma afirmação que tem apenas o valor de um slogan
  publicitário.”(338) 
A mulher retoma, desta forma, a
  posse de seu corpo enquanto ser humano , cujo destino deixa de ser atrelado à
  seu potencial reprodutor: este passa a ser uma escolha , livre, de um sujeito
  no mundo. A possibilidade aqui desatrela-se da necessidade. A construção
  social dos papéis surge claramente na análise de  de Beauvoir, marco
  importante na quebra da imagem que fazia da maternidade a essência e a razão
  de ser da mulher, núcleo de coerência do feminino. De Beauvoir considera que
  “[…] não existe ‘instinto’materno: a palavra não se aplica de forma alguma à
  espécie humana. A atitude da mãe é definida pelo conjunto de sua situação e
  pela maneira pela qual ela se assume. E é, como vimos, extremamente variável.”(324) 
As reflexões teóricas dos
  feminismos que se seguiram analisaram este  determinismo biológico e
  identificaram na construção e na apropriação dos corpos das mulheres o
  aparatus histórico e social da divisão binária da sociedade. Deste modo a
  declaração do naturalismo  “[…] que o status de um grupo humano, como a
  ordem do mundo que assim o instaura, é programado do interior da matéria
  viva”( Guillaumin,mars 1978:10) é criticada por Collete Guillaumin: “É uma
  idéia singular que as ações de um grupo humano, de uma classe, são
  ‘naturais’: que elas são independentes das relações sociais, que elas
  pré-existem à toda história, à todas condições concretas determinadas.”(
  Guillaumin,mars 1978:11). 
Betty Friedan, por sua vez,
  analisa a mística do feminino, e o assujeitamento da mulher americana: “A
  mística da mulher pretende que o único valor para uma mulher e seu único
  dever residem na realização de sua feminitude.[…] que não pode desabrochar
  senão  na passividade sexual, na aceitação da dominação do marido e o dom
  de si no amor.( Friedan, 1964: 40/41)  Para esta autora, tão denegrida e
  vilependiada à época, a imagem desta mulher dos anos 50/60 se resume na
  definição: “profissão- do lar”. ( Friedan, 1964: 41) E acrescenta: “Um mundo
  sem fronteiras se reduzia às dimensões de um lar quente e confortável”.(
  Friedan, 1964: 41) 
A  análise de Friedan, que
  traduz as mesmas inquietações de Beauvoir penetra entretanto mais
  profundamente nos mecanismos representacionais que instituem o feminino
  enquanto essência imutavel: “ Quando uma mística é suficientemente forte ela
  incarna sua própria representação nos fatos.     
  Ela se alimenta nos fatos que deveriam contradize-la e se infiltra em cada
  interstício da cultura[…]”.( Friedan, 1964: 61) De Beauvoir comenta , porém,
  que  “[…] quantidade de mulheres são intimidadas por uma moral que
  mantém a seus olhos seu prestígio, mesmo se elas não podem seguí-la em sua
  conduta […]. (298) Se  entendemos as representações sociais como uma
  forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, que nas relações
  sociais institui a realidade,( Denise Jodelet,1989:36) podemos entender assim
  o assujeitamento das mulheres a um saber elaborado em lugares de autoridade
  que as reduz a um corpo/sexo/ matriz. 
A instituição social do
  casamento e a maternidade como seu corolário aparece nestas imagens
  constitutivas do “ser mulher” como o locus ideal do feminino no social;
  entretanto, a análise feminista vai além desta cristalização de um destino
  binário do mundo, identificando a matriz heterossexual como o mecanismo
  produtor de corpos “diferentes” e complementares , inexoravelmente ligados. 
Assim, em 1981, Adrienne Rich
  indaga se: “[…]a grande questão do feminismo […] não é também a da
  heterossexualidade obrigatória para as mulheres, como meio de assegurar um
  direito masculino de utilização física, economica e afetiva sobre as
  mulheres? ( Rich, 1981:31)E continua “Mas a incapacidade de ver na
  heterossexualidade uma instituição é da mesma ordem que a incapacidade de
  admitir que o sistema economico nomeado capitalismo […] é mantido por um
  conjunto de forças que compreendem tanto a violencia física quanto a falsa
  consciência”. ( Rich, 1981:32) 
De fato, a diferença biológica
  adquire sua importância num conjunto semiótico e simbólico que tem como
  referente a reprodução; no sistema representacional do patriarcado , onde o
  masculino se erige como norma do humano, polo hierarquicamente superior, a
  capacidade de procriação própria do feminino torna-se o próprio feminino. 
Isto faz do ser humano mulher a
  fêmea humana cuja existência se justifica apenas na sua capacidade de
  reprodução. Guillaumin sublinha que “[…] ideologicamente as mulheres são o
  sexo, inteiramente sexo e utilizadas neste sentido.[…] O sexo é a mulher, mas
  ela não possui um sexo: um sexo não pode possuir a si mesmo.”( Guillaumin,
  mars 1978:7) No confinamento da mulher à sua função reprodutiva, de Beauvoir
  já comentava que “[…] ela engendra na generalidade de seu corpo, não na
  singularidade de sua existência.”(308) 
Assim, por um lado, o discurso
  da ‘natureza’ faz da possibilidade de procriação a essência da mulher,
  tirando-lhe ao mesmo tempo o papel de sujeito e a posse de seu corpo; por
  outro, a instituição do casamento em particular e da heterossexualidade
  obrigatória em geral fazem com que a mulher possa ser apropriada individual e
  coletivamente pelos homens em sua força de trabalho e em sua sexualidade. 
Tecida em uma densa rede
  discursiva que entrelaça memória, tradição e autoridades diversas a
  representação da verdadeira mulher “mãe e espôsa”, “do lar”, é ainda hoje a
  imagem e o quotidiano da maioria das mulheres.  A multiplicidade dos
  desejos e da experiência das mulheres já apontadas por Simone de Beauvoir
  tende a se fechar em tornor da homogeinização do Mesmo. O eterno feminino,
  está assim presente nas tecnologias de reprodução do gênero: o senso comum, a
  mídia em suas diferentes formas ( televisão, cinema, impressos) e os
  discursos sociais dotados de autoridade( religioso, político,  médico,
  jurídico, científico). 
A análise de Beauvoir em 1949 é
  ainda totalmente válida em nossos dias, ao analisarmos revistas femininas
  como Nova, Elle, Marie Claire: “Os jornais femininos ensinam abundantemente à
  mulher ‘do lar’a arte de permanecer atraente sexualmente mesmo lavando a
  louça, de continuar elegante na gravidez , de conciliar coquetterie,
  maternidade e economia[…]”(342), comenta de Beauvoir. 
Isto nos leva à figura da
  prostituta, o lado sombrio e negativo da representação construída sobre a
  mulher-mãe na historicidade discursiva ocidental. Simone de Beauvoir inicia
  seu capítulo sobre a prostituição afirmando que “o casamento[…] tem como
  correlato imediato, a prostituição”e cita Morgan, que, em seu evolucionismo,
  assegura a existência da prostituição desde o início dos tempos. 
A famosa frase “a mais antiga
  profissão do mundo” enterina a id éia da existência inexorável da prostituição ; nesta asserção é mantida no senso comum a noção da essência maléfica e viciosa da mulher, que através dos tempos se concretiza na figura da prostituta. Lombroso, conhecido médico italiano do século XIX afirmava igualmente que 15% das mulheres estavam destinadas fisiológicamente à prostituição. De Beauvoir se insurge contra esta afirmativas e declara que “ nennhuma fatalidade hereditária, nenhuma tara fisiológica pesa sobre elas ( as prostitutas)”(377) 
Delimitada pela noção de
  essência e permanência, a prostituição vai perdendo sua historicidade e a
  própria variação semântica da palavra desaparece sob generalizações no mínimo
  insustentáveis. Por exemplo, a “prostituição sagrada” na antiguidade dos
  povos orientais é uma interpretação anacrônica, pois insere em valores do
  presente – o sexo mercantilizado – a análise de um ritual simbólico de
  renovação da vida. Mas assegura, no discurso oficial, a representação das
  mulheres enquanto prostitutas desde a aurora dos tempos conhecidos. 
A questão é igualmente aqui: o
  que é uma prostituta? Cada época tem sua definição e seus limites que vão
  desde a mulher que não é casada e tem um amante até a profissão que ela
  exerce, como até pouco tempo as aeromoças. Se o termo contém uma suposta
  relação mercantil, a representação da prostituta atinge todas aquelas que não
  se enquadram na norma da esposa-mãe. 
Beauvoir afirma que “a
  prostituta é um bode expiatório; o homem descarrega nela sua torpeza e a
  renega.”(376) e continua […]  a prostituta não tem direitos de uma
  pessoa, nela se resumem , ao mesmo tempo, todas as figuras da escravidão
  feminina.” E descreve o que significa para ela a prostituição: “a baixa prostituição
  é um trabalho penoso onde a mulher oprimida sexualmente e economicamente,
  submetida ao arbítrio da polícia, à uma humilhante vigilância médica, aos
  caprichos dos clientes, destinada aos micróbios e à doença, é realmente
  submetida ao nível de uma coisa.”(389) 
Afirma ainda que “a maior parte
  das prostitutas estão moralmente adaptadas à sua condição; isto não significa
  que elas sejam congenitalmente ou hereditariamente imorais, mas que se
  sentem, com razão, integradas à uma sociedade que reclama seus serviços”.
  (388) Estas frases contém um sem-némero de questões: a prostituição como o
  resultado de relações sociais hierárquicas de poder; como resultado
  igualmente de uma situação moral invertida; como objetificação total da
  mulher nas instâncias sexual e econômica submetida  à ordem masculina ;
  como instituição partícipe do funcionamento do sistema patriarcal; como uma
  forma trabalho. Estes indícios analíticos irão alimentar o debate feminista
  posterior , como veremos adiante. 
De Beauvoir analisa as possíveis
  causas que levariam as mulheres à prostituição e em sua argumentação
  transparece uma passividade, uma lassidão , uma indiferença ligada inclusive
  à classe social; para a autora, no meio camponês “[…] há um grande número de
  jovens que se deixam deflorar pelo primeiro que aparece e que acham natural
  em seguida, dar-se a qualquer um.”(379) Acrescenta ainda:”[…] elas haviam
  consentido com indeferença, sem sentir nenhum prazer.”(379) Os exemplos que
  invoca, de ingenuidade,  deixam entretanto perceber o estupro e a
  violência na vida das prostitutas: “Srta.G. de Bordeaux, saindo do convento
  com 18 anos, deixa-se levar por curiosidade  e sem malícia à uma tenda
  onde é deflorada por um desconhecido.”(379),[…]  S., com 14 anos,
  deflorada por um jovem que a atrai para sua casa sob o pretexto de
  apresentar-lhe sua irmã”, etc,(380) , exemplifica. 
A este respeito , Beauvoir
  comenta : “Estas jovens que cederam passivamente, sofreram com certeza o
  traumatismo do defloramento; gostariamos de saber a influencia psicológica
  que esta brutal experiência teve sobre seu futuro; mas não se psicanalisa “as
  putas”, elas não sabem se descrever e se escondem sob os clichês.”(380) 
Meninas abandonadas pelos pais,
  pelos amantes ou maridos, falta de oportunidade de trabalho, falta de capacitação,
  sedução e exploração, escravidão sexual, medo, são causas arroladas por de
  Beauvoir para a prostituição. Coloca portanto, sob o signo do social a
  existência da prostituição num contexto de violência implícita ou explícita,
  desmascarando “a mais antiga profissão do mundo”. 
Entretanto, faz uma diferença
  entre a prostituta e a hetaïra, da qual a “star” seria o último avatar, pois
  para a autora “Sempre houve entre a prostituição e arte uma passagem incerta,
  pelo fato que se associa de forma equívoca, beleza e voluptuosidade”(390) E
  define: “[…] sirvo-me da palavra ‘hetaïra’ para designar todas as mulheres
  que tratam, não somente seus corpos, mas sua personalidade inteira como um
  capital à explorar”.(390) 
Por um lado Beauvoir
  desnaturaliza a prostituição e aponta para um sistema de poder/saber  e
  violência, que arrasta grande número de mulheres à prostituição; por outro,
  analisa as vedettes como “grandes” prostitutas, que escolhem esta condição
  para melhor se promover.  Ou seja, é uma decisão de carreira e neste
  caso, a profissão passa pelo corpo, obstáculo ou força, mas sempre
  intermediário: a mulher é seu corpo. 
Neste caso, diz Beauvoir :{…]
  paradoxalmente, as mulheres que exploram ao extremo sua feminitude criam uma
  situação quase igual à de um homem; a partir deste sexo que as dá aos machos
  como objetos, elas se reencontram sujeitos.(392) E acrescenta[…]o dinheiro
  tem um papel purificador[..] fazer o homem pagar[…] é transformá-lo em
  instrumento[…] a posse sexual é ilusória, é ela que o possui no terreno mais
  sólido da economia.”(393) 
Este argumento é retomado nos
  dias atuais em termos de poder: a mulher teria algo tão desejável que faria o
  homem se submeter a pagar por isto, diz a revista Nova em 1999. O patrão que
  paga um salário torna-se assim instrumento e posse  de seu operário? Que
  estranho poder é este que deteria o vendedor, tributário do comprador ? Que
  tipo de raciocínio é este que seria destruído em segundos por qualquer
  estudante de economia e se sustenta  na análise da prostituição? 
  De toda maneira, o dinheiro ganho pelas prostitutas raramente ficam em suas
  mãos. 
Em nossos dias, o debate gira
  ainda em torno destas questões: de Beauvoir conseguiu identificá-las e os
  termos de sua análise , ainda que modificados, ainda estão presentes. 
De fato, no estupro e no
  abandono material e psicológico encontram-se raízes da prostituição; no
  aliciamento para o mundo artístico inumeráveis jovens desaparecem no tráfico
  de internacional de mulheres; muitas são vendidas e confinadas em bordéis; no
  apelo ao consumo e na falta de oportunidades de trabalho, na ausência de
  capacitação professional e mesmo de alfabetização  outras passam a
  vender seus corpos. 
Estas são situações de fato,
  levadas em conta pelo feminismo quando se debruça sobre a experiencia
  singular das mulheres, colocando-se em sua defesa e proteção. Sob a égide da
  legalização da prostituição encontram-se estes casos díspares e um imenso
  mercado que mal disfarça seus interesses. Jean Ferdinand Laurent, relator das
  Nações Unidas sobre a prostituição, em 1983, sublinha que  “Ao mesmo
  tempo que um fenomeno cultural tendo sua raiz nas imagens do homem e da
  mulher veiculadas pela sociedade, é um mercado e muito lucrativo. A
  mercadoria é aqui o prazer do homem, ou a imaginação do prazer. Esta mercadoria
  est infelizmente oferecida pela intimidade do corpo da mulher ou da criança
  […] mais grave que na escravidão no sentido habitual, onde o que é alienado é
  a força de trabalho e não a intimidade.”(Barry, 1984:31) 
Por vários motivos, a
  prostituição não pode ser assimilada a um trabalho, a uma profissão: numa
  relação profes sional o que se vende é o produto do trabalho. Na prostituição, o corpo da mulher seria seu produto? Isto não seria uma re-naturalização do sexo feminino , cujo destino é a satisfação do desejo de outrem? ”. 
Confundir prostituição e
  trabalho é dotá-la de uma dignidade que não possui no imaginário e na
  materialidade social; é a forma falaciosa  de justificar o completo
  assujeitamento da mulher a seu corpo sexuado, mergulhando-a  na total
  imanência. É a melhor maneira de perpetuá-la igualmente, na medida em que as
  próprias mulheres defenderiam sua professionalização, para escapar ao opróbio
  e às perseguições legais. 
Assim, descriminalizar é uma
  coisa e professionalizar é algo muito diferente, pois integra ao
  funcionamento do mercado de trabalho e normaliza a apropriação das mulheres
  pelos homens, na expressão paroxística da matriz heterossexual. A
  prostituição é portanto uma instituição social que materializa a apropriação
  geral da “classe” dos homens em relação à “classe das mulheres” ,  (
  Guillaumin, 1978) historicamente constituída nas relações sociais e que tende
  a ser naturalizada . 
A prostituição enquanto
  “escolha” de uma “profissão” obscurece a profunda esquizofrenia do olhar
  lançado sobre as prostitutas, destituídas de toda perspectiva psicológica,
  capazes de cindir , no exercício da sexualidade, seu corpo e sua mente, seu
  corpo e suas emoções. Evidentemente, os consultórios de psicólogos e
  psicanalistas estão repletos de mulheres e homens com problemas sexuais; as
  prostitutas, entretanto, não são afetadas por estas disfunções, já que se
  trata de um “trabalho”, de uma “escolha”.. As imagens que são produzidas pela
  televisão , pelo cinema, pela literatura, mostram os bordéis como casas de
  alegre convivência, de felizes encontros, de doces recordações – para os
  homens talvez- escondendo a sombria realidade de seres despojados de seu corpo
  e de sua humanidade. Imersa em suas condições de produção e limitada pelos
  instrumentais teóricos de que dispunha. Simone de Beauvoir pode entretanto
  detectar as questões  que hoje ainda fazem problema. 
Na trilogia de figuras de
  mulher que escolhi analisar em Simone de Beauvoir, a lésbica compõe a última
  representação e neste capítulo as questões identitárias compõem o quadro que
  aqui me interessa mais específicamente . A lésbica, ao contrário da mãe-
  espôsa e da prostituta, aparece como a negação do patriarcado, aberração da
  natureza, na recusa da heterossexualidade obrigatória, perigo maior de quebra
  nas representações de mulher e homem. 
Mas a análise do social , a meu
  ver, deveria procurar desconstruir o evidente, o inquestionável, para fazer
  surgir a infinita pluralidade do real. Assim , no domínio da sexualidade, o
  que se coloca são questões , as que procuram não desvendar o ser interior,
  mas desfazer sua ilusória corência. 
Como se pode atribuir uma
  identidade a partir de uma prática, de que forma o desejo e a sexualidade se
  tornaram atributos essenciais do ser? E como ou porque  esta prática ou
  o desejo sexual se tornaram atributos essenciais do ser, o eixo em torno do
  qual se constitui o indivíduo? A  mulher heterossesual não tem necessidade
  de se dizer, de se explicar, a norma sendo aqui sinônimo de ‘normal”. 
A lésbica, por sua vez tem um
  segredo, uma dúvida, uma porta fechada e só a exposição pública de suas
  preferências pode assegurar-lhe uma identidade. Mas para dizer a si mesmo é
  preciso antes ter um nome; assim a questão que se coloca em primeiro lugar, é
  : o que é uma lésbica? Simone de Beauvoir iniciara um caminho similar ao
  indagar: o que é uma muher? 
O lesbianismo não pode ser um
  definidor de identidade já que não pode nem ao menos ser definido enquanto
  categoria. Tema espinhoso e quase sempre ausente  nas teorias feminstas
  que nos precedem, ocupadas com os problemas derivados da divisão binário do
  social aparece entretanto , Na preocupações de Simone de Beauvoir. Neste ano
  do Cinquantenário de sua publicação é interessante observar suas reflexões
  sobre o lesbianismo que de Beauvoir desenvolve. 
Neste livro pioneiro, De
  Beauvoir perfura o horizonte epistemológico de sua época demonstando a
  construção social das categorias mulher/homem; porta-voz autorizado de sua
  época, o peso de sua legitimidade intelectual atravessou os estudos feminstas
  e marcou , de alguma forma, a circularidade que liga as teorias e as
  práticas. Entretanto, enreda-se nos sentidos que esclarecem e ao mesmo tempo
  escondem a seus olhos as ambiguidades das representações sociais, onde
  a  lógica do desejo masculino é que define o lesbianismo, em um mundo
  marcado pelo binário heterossexual da norma disciplinar. 
O texto
  de De Beauvoir sobre o lesbianismo insere-se em um sociograma dado, “este
  conjunto informe, instável” que representa uma “atualização do imaginário
  social em sua própria indecidabilidade.”(Robin, 1979:58)[i] Com efeito, a indecisão
  argumentativa vinca este discurso que navega nas águas do senso comum, da
  “autoridade” dos testemunhos  mas apresenta em certos momentos  uma
  análise aguda das imagens construídas sobre preconceitos. 
A
  frase-choque do capítulo sobre o lesbianismo e que acompanha a
  desnaturalização do social seria esta: “Na verdade, nenhum fator é jamais
  determinante; trata-se sempre de uma escolha efetuada no coração de um
  conjunto complexo e repousando sobre uma livre decisão; nenhum destino sexual
  governa a vida do indivíduo; seu erotismo traduz ao contrário sua atitude
  global quanto à existência.”(Beauvoir,1966:185)[ii] Muito atual esta afirmação que
  separa o erotismo ( aqui entendido como sexualidade) e o sexo biológico num
  quadro de apreensão do mundo; afirmação da liberdade e da escolha  na
  coerência da pessoa, do indivíduo face ao social. O lesbianismo seria assim
  uma escolha pessoal , “existencial”. 
Por
  outro lado, suas considerações sobre o amor entre as mulheres, que aqui se
  confunde com a sexualidade, criam um universo erótico onde o binário
  desaparece em todos seus aspectos de oposição para ressaltar a interação
  entre dois seres: “[…] as carícias destinam-se menos a apropriar-se da outra
  do que recriar-se lentamente através dela; a separação é abolida, não há
  luta, nem vitória, nem derrota; em uma mesma e exata reciprocidade cada uma é
  ao mesmo tempo o sujeito e o objeto, a soberana e a escrava, a dualidade e a
  cumplicidade.”(idem:184)[iii] 
Neste
  idílico universo, suas considerações tem o mérito de contemplar a quebra da
  representação social de um mundo divido em dois, de hierarquia e assimetria
  que estão ligadas à heterossexualidade obrigatória. Num sopro utópico vemos
  assim se desenhar o lesbianismo como um locus de não violência e de harmonia.
  Adrienne Rich contradiz  esta perspectiva e suas reflexões sobre o
  lesbianismo trazem o gosto amargo de um imaginário social que impregna todas
  os relacionamentos com seus esquemas de luta e de dominação: “ Isto inclui
  também a reprodução dos papéis, o ódio de si mesmo, a depressão, o
  alcoolismo, o suicídio e a violência entre mulheres.”[iv] 
O
  lesbianismo aparece também como o fracasso de uma sexualidade “normal”,
  último refúgio das mulheres cujo físico ingrato não atrai os homens.
  “Desgraciosa, mal formada, uma mulher pode tentar compensar sua inferioridade
  adquirindo  qualidades  viris.”, dirá de Beauvoir.( idem:171)[v] E acrescenta: “O desdém
  masculino confirma a feia no sentimento de sua falta de beleza ; a arrogância
  de um amante ferirá a orgulhosa. Todos os motivos de frigidez nos quais
  pensamos: rancor, inveja, medo da gravidez, traumatismo provocado por um
  aborto, etc, encontram-se aqui.” [vi]Tornar-se lésbica é portanto uma saída para a inveja, a feiura, as famosas “mal amadas”que se voltam para o mesmo sexo pela impossibilidade de ter relações ‘normais” ou por frigidez pura e simples. “ Nada dá uma impressão maior de estreiteza de espírito e de mutilação que estes clans de mulheres liberadas” diz de Beauvoir.[vii] 
Se em
  seu discurso encontramos a escolha do lesbianismo atribuída a este tipo de
  fatores , estes mesmos epítetos vão povoar as considerações sobre as
  feministas durante décadas, estas “viragos”que não podem senão detestar os
  homens.  No afã de explicar porque uma mulher se torna lésbica, de
  Beauvoir  mergulha na norma da heterossexualidade. Desta forma
  acrescenta: “ Da mesma forma que a mulher frígida deseja o prazer  ao
  mesmo tempo que o refusa, a lésbica gostaria muitas vezes de ser uma mulher
  nornal e completa, mesmo não o querendo”.[viii] 
O peso deste senso comum em de
  Beauvoir parece espantoso, mais isto apenas demonstra o poder das
  representações no discurso social, no imaginário que habita tudo o que é
  dito, escrito, publicado, discutido, enunciado em um estado de sociedade
  específico. O traço mais marcante deste texto p oderia ser a referencia maior
  e constante ao homem, às relações heterossexuais e sua ‘normalidade”em suas
  reflexões sobre os lesbianismo. “[…] muitas vêzes é a natureza das
  experiencias heterossexuais que decidirá a mulher “viril” a assumir ou
  repudiar seu sexo.” E igualmente: “[…] existe entre elas, como na mulher
  frígida a repulsa, o rancor, a timidez, o orgulho […] ; ao seu rancor
  feminino acrescenta-se um complexo de inferioridade viril […]” . 
Para delimitar a imagem da
  lésbica, parece necessário ancorar uma certa representação DA mulher: assim
  se ela denuncia a construção da imagem da “verdadeira mulher” ”[…] produto
  artificial que a civilização fabrica Com efeito, o enunciado que foi e será
  ainda repetido dezenas de vezes “não se nasce mulher, torna-se”, é negado por
  este gênero de argumentação na medida em que se desenha nitidamente uma
  “natureza”feminina, uma feminitude que se afirma não somente em relação a
  masculino, mas também em oposição äs “atitudes viris” das lésbicas. A
  inversão, palavra empregada muitas vezes por de Beauvoir sublinha a noção de
  uma ordem transtornada. 
Esta
  rápida análise do capítulo sobre o lesbianismo no Segundo Sexo , obra básica
  na fundamentação do feminismo a partir da segunda metade deste século,
  ilustra as dificuldades do trabalho crítico no mundo de representações
  sociais que compõem a normatividade, os valores e as hierarquias a eles
  assimiladas. Desmascarando a construção social dos papéis sexuados , de
  Beauvoir  não hesita em falar da “verdadeira mulher”  face à qual
  se encontram as lésbicas, cuja sexualidade seria infantil, incompleta, “[…] se
  sua sensibilidade erógena não é desenvolvida, ela não deseja as carícias
  masculinas”.[ix] “ […] inacabada enquanto
  mulher, impotente enquanto homem seu malestar se traduz às vezes através de
  psicoses.” [x]De seu lugar de fala privilegiado,
  de Beauvoir interina as representações e os preconceitos sobre o lesbianismo
  e reforça o biológico enquanto “natureza’  em oposição à construção dos
  papéis sociais. 
Mas o que hoje é 
  finalmente, ser lésbica? 
Todas as definições criam um
  campo de significações e neste espaço surgem imagens e representações 
  que simbolizam os sentidos delimitados. O discurso percorre caminhos de
  explicitações e interdições, porém pode-se vislumbrar uma infinidade de
  sentidos possíveis , silêncios constitutivos da linguagem. Quando se fala assim
  de heterossexualidade, a pluralidade das vinculações sexo/gênero é ao mesmo
  tempo revelada e obscurecida. 
Se o
  propósito é destruir as evidências [xi] e a pretensa univocidade do
  sentido dado , a tarefa é multiplicar as questões , alimentar o múltiplo no
  perfil das relações e da tipologia social. De fato, não se deve esquecer que
  as palavras e as definições estão envoltas num halo conotativo, cujos valores
  são explicitados na própria denominação. O ato de nomear é um movimento de
  criação: quando  se diz “lésbica” faz-se aparecer um personagem cujo
  perfil obedece às características traçadas pelo momento de sua enunciação. 
No
  século XVI não havia uma palavra para  nomear o sexo entre mulheres, que
  era assim assimilado ao homossexualismo masculino: as mulheres que tinham
  relações sexuais eram então chamadas de “sodomitas”.[xii] E “lesbianismo” 
  designa… o quê, propriamente? Relações sexuais, sentimentos , atração entre
  mulheres? Todas as opções ou apenas uma ? Se o sentimento ou a atração não se
  concretizam em atos pode-se falar de lesbianismo? 
De
  acordo com o dicionário, [xiii]“Lesbico: diz -se do amor sexual de
  uma mulher a outra”. Amor ou sexo, qual destes ítens define o lesbianismo? O
  sentimento ou a prática de uma certa sexualidade? O que é ser lésbica? Como
  criar uma identidade individual ou de grupo em torno de uma preferência
  eventual ou sistemática? 
Que
  classificação é esta que em sua ambiguidade atravessa o meu ser? Em que
  medida tais definições não reduzem ou aniquilam o potencial subversivo 
  de transformação das delimitações de gênero? Sobre a homossexualidade, o
  dicionário permanece  ambíguo:  “Homosexual: relativo a afinidades
  ou atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo” .[xiv] Afinidades? Seríamos todos
  homossexuais quando descobrimos afinidades com pessoas não necessariamente de
  sexo oposto? 
“Ser homossexual”. Porque não é
  o mesmo que “ser professora” ou “ser atleta”? A profissão define um papel do
  ser, do indivíduo na sociedade ; uma atividade qualquer demonstra uma
  predisposição, uma inclinação. Porque o sexo definiria O SER propriamente
  dito? Porque uma prática seria mais definidora que outras, em termos de
  inclusão ou exclusão social? Que imaginário é este que erige a sexualidade em
  árbitro da essência do humano? 
O que
  se nota é que no imaginário e no discurso que o explicita existem variáveis
  definidoras de um espaço onde  a prática intensa da sexualidade 
  prolifera pela ação do que Foucault chama de “dispositivo da sexualidade:
  “[…] um conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições,
  organizações arquitetônicas, decisões reguladoras, leis, medidas
  administrativas, enunciados científicos, proposições fisolóficas, morais,
  filantrópicas” , que segundo sua definição [xv] “[…] funciona segundo
  técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder […] com a finalidade de
  “[…] proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar  o corpo de modo
  mais e mais detalhado, e de controlar as populações de maneira  cada vez
  mais global.” [xvi] 
A problemática que nos
  interpela  aqui delimita-se em torno de questões tais como a identidade
  enquanto um núcleo de coerência, a sexualidade como parâmetro de inserção
  social, a norma como paradigma do comportamento forjado no imenso cadinho das
  representações sociais de um mundo conjugado no masculino. 
De fato, existe uma profunda
  esquizofrenia social em torno do lesbianismo , seja para obscurece-lo ou
  negá-lo enquanto prática corrente, seja para desqualificá-lo enquanto
  mutilação do SER mulher. As conotações que acompanham o epíteto “lésbica”,
  são sempre negativas: mulher-macho, paraíba, mulher feia, mal amada, desprezada. As imagens revelam assim ou uma caricatura do homem ou uma mulher frustrada , uma mulher que foge ao paradigma da beleza e da “feminilidade” e escolhe a companhia feminina por não atrair os homens. 
A
  origem da palavra é conhecida de todos: de Lesbos, ilha onde morou Sapho,
  considerada a décima musa grega , poeta  do amor entre as mulheres.
  Neste mundo grego-oriental do século VI a.c.,  era sacerdotisa de
  Afrodite e participava dos ritos de iniciação e de renovação simbólica da
  cidade. [xvii] Poderosa, louvada em sua
  época ela qualidade de sua obra, esquecida ou  vilependiada em seguida,
  seus poemas em fragmentos atravessaram os tempos para cantar seus amores e
  seu desejo pelas mulheres 
No
  século XVII seu nome reaparece com brilho, [xviii].   desta vez para
  designar mulheres escritoras, cultas, as “Précieuses” adjetivo que se fez
  logo acompanhar de “ridicules”; Madeleine de Scudéry torna-se a
  primeira  Sappho à época , nome que passará a designar toda mulher 
  que  brilha no mundo  das letras, mas sem as conotações sexuais
  anteriores. [xix] Sappho é “liberada” de seu
  lesbianismo, é “recuperada” a partir do relato de Ovídio sobre sua vida, que
  a faz se suicidar por ser desprezada por um homem.[xx] 
Já no
  século anterior,( XVI ) os amores entre as mulheres eram considerados
  destituídos de importância: não eram sexuados, pois apenas o sexo masculino ,
  o falo e sua semente  dariam sentido e valor ao ato sexual. Marie-Jo
  Bonnet explica que “O desinteresse  da religião cristã por este ramo
  feminino da luxúria é coerente. Com efeito, porque condenar um prazer
  insignificante? E pode-se falar mesmo de prazer quando há falta do
  instrumento essencial?”[xxi] Entretanto, mulheres que se
  vestissem de homem podiam ser condenadas à morte , [xxii] pois esta atitude
  representava então um elemento de perturbação na ordem do social, logo, 
  do mundo. 
No
  Brasil do século XIX uma mulher com aparência e vestimentas masculinas podia
  ser condenada ao hospício, como relata M.Clementina P.Cunha, pois “p…] há
  pouca hesitação para a internação de mulheres, decidida por seus maridos,
  pais, irmãos à menor “suspeita”ou desconforto causado por seu comportamento.”[xxiii] Crime ou loucura, a recusa
  das mulheres de assumir seu papel “natural”  de mães e esposas leva-as à
  morte, à prisão, ao internamento, à exclusão , caso sua atitude ameace o
  institucional e o normativo . O celibato é da mesma forma um sintoma da
  desordem e sua punição pode ser a marginalização, além do ridículo e da
  derrisão. 
Para
  Adrienne Rich a existência do lesbianismo é, ao mesmo tempo “[…] a
  transgressão de um tabu e a rejeição de uma forma de vida obrigatória.” [xxiv] E acrescenta “ A destruição
  dos traços, das memórias, das cartas atestando as realidades do lesbianismo
  deve ser tomada muito a sério como um meio de preservar a heterossexualidade
  compulsória […]” [xxv] De fato, perde-se o registro,
  apaga-se da memória o que vem deslocar, perturbar a ordem do discurso, a
  ordem do Pai. 
A
  existência das Amazonas, tantas vezes comentada pelos Antigos, é
  sistematicamente condenada ao mito, ao domínio das impossibilidades, pois,
  como sublinha Geneviève Pastre “[…] houve uma redução do campo não somente do
  possível mas também do vivido e uma espécie de afunilamento na direção de uma
  só passagem[…]  en vez de ser estocada, a informação deixou de estar
  disponível, foi eliminada e passou-se a considerar como produto da
  imaginação  […] o que havia sem dúvida existido[…] espelho de realidades
  ricas e complexas.”[xxvi] 
E o que
  a história não diz…. Nunca existiu!  A regra  geral é o silêncio:
  silenciar para melhor apagar , para melhor esquecer, para conjurar o perigo
  daquelas que escapam à norma de uma heterossexualidade tão “natural” e
  evidente que mesmo entre as feministas demorou muito a ser questionada.
  Entretanto, como uma das pioneiras, há cerca de 20 anos Adrienne Rich
  apontava para a disciplinarização sexual, denunciando a “obrigatoriedade do
  heterossexualismo”, suprema divisão binária do mundo.[xxvii] Além disso, denunciava a
  desvalorização do que caracterizava como um “continuum lésbico”, as relações
  mais diversas e profundas entre as mulheres durante toda a vida: 
  amizade, maternidade, parentesco, etc. 
Ti
  Grace Atkinson, por sua vez, defendia o “lesbianismo político”, aquele que
  uniria as mulheres na recusa do patriarcado e da dominação masculina, mesmo
  que isso não implicasse em um relacionamento sexual. Para esta autora, este
  tipo de lesbianismo seria essencial para a edificação de uma sociedade onde o
  sexo não seria mais o eixo da vida,  no plano individual ou
  político. [xxviii] 
O lesbianismo contemporâneo,
  adotado como postura política  em oposição à dominação masculina ,
  encontra-se atualmente no domínio da memória, da história do início do
  feminismo. Entretanto, atualmente, téoricas da importância de Judith Butler ,
  de Christine Delphy,  Teresa de Lauretis, não hesitam a sacudir as
  evidências da heterossexualidade. 
O sexo
  biológico, natural? Esta questão torna-se central hoje nos estudos de gênero
  , ou melhor, feministas[xxix] e diante de sua crescente
  desconstrução, como reivindicar uma identidade em torno de uma categoria mal
  delimitada? 
De uma forma  muito geral
  e com a pertinência que podem conter as generalizações, o lesbianismo aparece
  no movimento feminista como a radicalização extrema  na recusa  de
  um mundo patriarcal , propondo o separatismo na vida social,  a criação
  de espaços de onde os valores masculinos seriam extirpados , uma utopia
  moderna  onde a violência e o poder não teriam lugar  de existência
  ou expansão. 
Na recusa do domínio masculino
  e da submissão feminina ligados às imposições de gênero , as comunidades
  lésbicas canadenses e americans, por exemplo,  excluíram os homens de
  seu cotidiano. Neste sentido o questionamento  da heterosexualidade aparece
  como uma prática antes mesmo de retornar em força, na descontrução das
  identidades. 
À afirmação da categoria
  “mulher” enquanto sujeito seguiu-se, nas teorizações feministas, sua
  disseminação: “mulheres” no plural, levando-se em conta não apenas as
  diferenças intergênero ( feminino/ masculino)  mas igualmente
  intragênero.( dentre as mulheres: etnia, classe, idade, aparência,
  preferência sexual) . 
Igualdade, diferença, 
  gênero ,  categorias problematizantes que compõem e atravessam as
  diferentes teorias feministas deste século em torno do  que finalemente
  é este “ser mulher “, ou “mulheres”, o que é o feminino, o sexo feminino? O
  lesbianismo reaparece nos anos 80 como parte da reflexão que interroga a
  categoria “gênero” em seu fundamento maior: a divisão binária e “natural” da
  sociedade em dois sexos, pressupondo assim a
  heterosexualidade.    O que se problematiza é a
  desnaturalização do próprio sexo biológico como marco definidor das relações
  sociais e sexuais. 
Meu
  argumento é que nem o sexo biológico nem o gênero nem as práticas sexuais
  podem dar uma defnição do ser humano, atestando uma essência qualquer ou uma
  substância estável de homogeneidade individual. Como sublinha N icole Claude Mathieu, a ênfase desliza da diferença entre os sexos para o processo de diferenciação social dos sexos e da criação de corpos sexuados.[xxx] E assim acrescenta, “[…] é a idéia da heterogeneidade entre sexo e gênero que leva a pensar não que a diferença de sexos é ‘traduzida’pelo gênero, mas que o gênero constrói o sexo.[…] entre sexo e gênero se estabelece uma correspondência socio-lógica e política.” Para Haraway,[xxxi] os corpos são nós geradores materiais e semióticos cujas fronteiras se definem na interação social. Mas como objeto de saber, não existem enquanto tal antes de sua criação, são “projetos de fronteira” que se materializam de acordo com as práticas normativas e dão origem aos corpos sexuados, à instalação de diferenças na construção do binômio natureza/ cultura. A heterossexualidade é assim posta em questão. 
Afinal, a ênfase dada à
  diferença física é relativa às matrizes de sentido que presidem  a
  construção cultural dos gêneros, como por exemplo, a reprodução enquanto
  critério máximo de “naturalização” do binômio sexo/gênero. Se por um lado, a
  contestação da heterosexualidade contribui para um aprofundamento do debate
  na modificação das estruturas mentais e representacionais, o próprio
  lesbianismo é uma questão enquanto categoria, pois na dissolução das
  identidades em frações infinitesimais , o que significa ser lésbica? 
De
  fato, se a prática ou a preferência sexual constrói um ser social – a lésbica
  – a prática heterossexual constrói a fêmea , igualmente um ser social
  cujo  naturalização torna inquestionável o biológico . Mas o leque de
  práticas que compõem esta categoria – a sexualidade-  tem suas
  polaridades enfatizadas segundo a importância que recebem da rede de sentidos
  na qual estão inseridas, o que Butler chama de “matrizes de
  inteligibilidade”. [xxxii] 
A
  apreensão do mundo e dos seres se faz assim num quadro de pensamento ordenado
  por certas categorias, por imagens e representações sociais que designam os
  lugares e os papéis em sua atividade incessante de constituição e criação do
  real. O imaginário instituinte, tão bem descrito por Castoriadis [xxxiii] se inscreve deste modo em um
  tempo e um espaço determinados e torna as categorias instituídas evidentes,
  indiscutíveis. 
Este é o caso do sexo e da
  sexualidade, tantas vezes confundidos e imbricados cujo pregnância sobre o
  social repousa somente na importância que lhes damos. Entretanto, as matrizes
  de sentido que balizam nossa interpretação do mundo impedem-nos de perceber a
  construção social e linguística do que consideramos inevitável, natural e
  biológico. 
Assim, em várias autoras
  feministas como Haraway, Butler, de Lauretis, Baidrotti, entre outras, a
  crítica do sexo biológico enquanto dado natural e do gênero como categoria
  fundamental  de análise social ganham importância e penetram o debate
  geral do feminismo traduzindo a inquietação “pós-moderna” de identidades
  múltiplas e disseminadas. 
Isto significa que, na economia
  do desejo, a homologia entre o sexo e o gênero tende a se desfazer e isto não
  apenas nos quadros exóticos dos estudos antropológicos; esta quebra se faz
  também sob nossos olhos na expansão de sexualidades múltiplas. 
Nesta
  ótica, assim como os estudos feministas se debruçavam sobre “o que é uma
  mulher? podemos repetir nossa indagação primeira : o que é uma lésbica?” E as
  questões continuam a  se desdobrar: Mulheres que amam mulheres? Que
  fazem sexo com outras mulheres? Que se sentem atraídas mas não ousam o 
  sexo? Que amam outras mulheres e fazem sexo com homens?  A própria
  bisexualidade que hoje se desvela torna irrelevante as defnições em torno de
  práticas.[xxxiv] 
A crítica feminista atual se
  debruça sobre os quadros de pensamento que ordenam as categorias sexo/ gênero
  na produção do saber e os efeitos de poder que assim são engendrados. Isto
  significa que a pesquisa teórica se volta para a genealogia do quadro binário
  e sua pregnância sobre o imaginário social e suas representações. 
Neste sentido, o sexo biológico
  é posto em questão enquanto elemento pré-discursivo, natural, pois o lugar
  que lhe é dado faz parte de um sistema de sentido dado. Assim, perde sua
  evidência enquanto significante geral das relações sociais, solo da divisão
  binária da sociedade. 
A
  prática héterosessexual que Tereza de Lauretis nomeia “Sex Gender System”, seria
  “[…] um construto socio-cultural, un aparelho semiótico e um sistema de
  representações” [xxxv] que confere uma significação
  à sexualidade em uma rede de valores: sobre o binário “natural”do sexo
  biológico eleva-se um edifício de hierarquias e assimetrias,[xxxvi], um sistema simbólico fundado
  sobre sua representação que adquire a evidência da enunciação repetida, da
  tradição cultivada, de uma memória cuidadosamente elaborada em história. 
Para de
  Lauretis[xxxvii] a instituição da
  heterossexualidade obrigatória chama-se heterosexismo, categoria que
  fundamentaria o binário universal como base de elaboração do gênero. Para
  esta autora, o heterosexismo “recupera o potencial epistemológico radical do
  pensamento feminista no interior da casa do senhor.”[xxxviii]Quebrar o binário seria assim abrir
  as portas de um sistema de significações que obscurecem o múltiplo em uma
  coesão identitária em torno do sexo biológico. E isso nos leva à questão da
  identidade, questão que anima o debate atual. 
Se
  deixamos de lado as “evidências”naturais que encontrarm seu sentido no
  cultural, se nos desembaraçamos da essência do ser, da ilusão du sujeito
  fundador de seus discursos e de suas práticas, encontramo-nos diante do
  múltiplo cuja identidade delimita-se apenas pelas imposições do social. De
  fato, o que é o feminino, o que é o masculino quando a categoria do gênero se
  insere igualmente no processo de produção do corpo, um apparatus construído
  pelo imaginário heterosexual, binário?[xxxix] 
Com
  efeito, Butler considera que não existe identidade de gênero atràs da
  expressão do gênero; esta identidade em seu entender, seria constituída pela
  expressão da qual ela deveria ser o resultado. Assim, para Butler, a
  continuidade identitária “[…] não é feita de características lógicas ou
  analíticas da personalidade mas socialmente instituída e mantida nas normas
  de inteligibilidade”.[xl] Nesta ótica, os mecanismos de
  construção de uma identidade generizada, estabelecida em bases relacionais de
  sexo, gênero, prática sexual e desejo, derivam de normas reguladoras da
  heterossexualidade obrigatória. A “verdade do sexo”em suma. O que acontece
  com as práticas que fogem à esta verdade, que opõem o múltiplo à unidade, a
  dispersão à coerência do eu dotado de gênero? 
O que é
  afinal o lesbianismo em uma rede de sentidos dominada pela heterossexualidade
  , tal como se apresenta em grande parte das teorias feministas? Práticas
  desviantes, ligadas à sexualidade? Sentimentos que se dirigem às pessoas do
  mesmo sexo? Uma erótica particular? Uma escolha política, como nos primeiros tempos
  do feminismo, as heterodykes? Ou práticas de recuo e de frustação diante dos
  homens como aparece em de Beauvoir? 
Não é
  possível esquecer a frase de Wittig : “uma lésbica não é uma mulher”,[xli] definição em negativo, locus
  maior de resistência ao patriarcado. Mas esta própria designação supõe um quadro de epistemológico que coloca o lesbianismo num conjunto de práticas cuja referência axial é a sexualidade e o sexo. A visibilidade lésbica, as maneiras de se vestir , de ser diferente, de sublinhar uma singularidade não fazem senão interinar a ordem binária na medida que expõe uma diferença e a diferença supõe um modelo. 
Assim, a questão espinhosa de
  “sair do armário”, de “ser ou não ser”não se coloca que se a
  heterossexualidade é obrigatória e que a homoliga sexo/gênero, sexualidade/
  desejo define a normalidade em sua exata correspondência.e de espaços de
  exclusão afirmam uma normalidade que apaga o múltiplo e naturaliza o binário.
  O “apparatus”de construção do corpo enquanto significante geral do ser define
  as fronteiras do sexo biológico do qual não nos desfazemos sem ameaçar a
  ordem instituída. 
É assim
  que o gênero estabelecido socialmente na heterossexualidade constrói o sexo
  biológico: não em sua materialidade, mas em sua apreensão mediatizada pelas
  constelações de sentido, pelas  redes de representações sociais que o
  definem enquanto diferença incontornável et que se apoiam sobre “[…] sistemas
  de pensamento mais amplos, ideológicos ou culturais, sobre um certo estado do
  conhecimento científico, assim como sobre a condição social e a esfera da
  experiência privada e afetiva dos indivíduos.”[xlii] 
Os
  discursos médicos, jurídicos, religiosos, educacionais bem como o senso comum
  são unânimes na afirmação do sexo biológico como um dado incontestável da
  natureza. Mas como sublinha Foucault, a respeito do sexo « […] deve-se
  falar como de algo que não devemos simplesmente condenar ou tolerar, mas sim
  gerir, inserir em sistemas de utilidade, regulamentar para o bem de todos[…]
  O sexo não se julga apenas, administra-se. Está no âmbito do poder
  público. » [xliii] 
Assim, a  norma
  heterossexual , a disciplinarização da prática sexual dentro de padrões
  delimitados por valores morais historicamente datados além de tornar-se
  instituição normatizadora , adquire caráter de verdade, de sexo e sexualidade
  verdadeiros, nucleares, de expressão máxima do ser humana . 
Neste sentido, desafiar os
  padrões , assumir a representação social da inversão e o nome dado às
  práticas ‘desviantes” legitima de certa maneira, a norma que determina as
  zonas de exclusão. Muitas vêzes, aliás, os casais de lésbicas reproduzem uma
  divisão generizada de papéis, num mimetismo cujo efeito de espelho é uma
  “mise en abîme” da assimetria e da hierarquia. A outra face da exposição
  aberta de uma identidade “invertida” é, como analisa Butler, seu aspecto
  performativo. A performance, para esta autora, das “drag queens” ou “drag
  kings” desmascara os efeitos de homologia sexo/gênero, na medida em que
  demonstra claramente o artifício que representa a aparência do SER mulher ou
  homem, seu caráter construído socialmente e arbitráriamente.  De toda
  maneira, tentar traçar um perfil Da lésbica ou Das lésbicas é uma tarefa
  impossível pois não há substancia à qual se prender, não há um bloco
  homogêneo e monolítico de coerência, não existe experiência unívoca que possa
  tomar o lugar de um referencial estável. Além disso, a própria noção de casal
  não é evidente, quer seja heterossexual ou homossexual: é a sexualidade que o
  define? O sentimento? A coabitação? Laços institucionais? Nenhuma resposta
  positiva compreende em si a noção de casal e seu conjunto pode ser desdobrado
  em séries inumeráveis. 
É muito fácil cair no
  essencialismo quando se reivindica uma identidade, quando se liga o ser à uma
  prática, à uma atração, à um gosto, nem tão particular assim. Uma definição
  já é um cerceamento, é demarcar um domínio que logo dará origem à novas
  exclusões. A necessidade de se dizer, de se explicar, de se traduzir pela
  sexualidade faz parte de notre quadro de pensamento, da época
  pós-psicanalítca; de fato, a questão que se colocaria é: porque temos
  necessidade de uma identidade senão para responder às exigências de uma
  moldura binária de pensamento ? 
Tomarei
  aqui no que diz respeito à identidade  lésbica as considerações que
  Braidotti tece sobre a identidade das mulheres em  geral: “[…] um
  conjunto de experiencias múltiplas, complexas, potencialmente contraditórias,
  atravessadas por variáveis como classe, idade, maneira de viver, preferências
  sexuais, etc.” .[xliv]Acrescentaria o espaço e tempo
  vividos, a linguagem e a língua e as constelações de sentido nas quais se
  constróem e se auto-representam os indivíduos. Uma identidade portanto em
  construção, móvel, fluida, nômade, transitória; uma identidade somente
  retrospectiva, que indica onde estivemos e não estamos mais, no que Braidotti
  chama a “cartografia nômade” do ser.[xlv] A identidade nômade é assim
  uma posição de sujeito ocupada em uma situação, em uma sociedade dada. E
  nesta ótica, eu não sou lésbica e vocês não são mulheres; de toda maneira não
  existe lésbica onde não existem mulheres. Não há cópias pois os modelos se
  esgotaram em sua busca de essência e de transcendência, em sua busca do ponto
  nodal e definitivo de significação, pois deus se suidiciou ao modelar o homem
  à sua imagem e semelhança. 
Neste mundo instituído por
  representações, a identidade é uma ficção e a incerteza e o paradoxo 
  são as conquistas maiores de nosso tempo para desmascarar as verdades de
  todos os tempos. 
Na disseminação da identidade,
  lesbianismo e feminismo não se encontram em polos opostos ou em termos de
  positivo/negativo, pois as posições de sujeito pontuais e locais serão palco
  de configurações identitárias na criação de estratégias de dissolução e
  resistência à violência da norma . 
O que é finalmente ser
  lésbica?  É o exercício da sexualidade, finalmente, que torna uma
  relação especial entre todas? De toda forma, a prática sexual nunca terá o
  mesmo perfil para todas , nunca responderá às mesmas expectativas , com os
  mesmos  resultados. Quem sabe a emoção despertada possa ser um indício,
  emoção restrita ou plural, num outro caminho livre de definições. 
Não existem respostas. Apenas
  um emaranhado de sentidos e representações que constituem o mundo:
  estratégia, opção, passagem, destino, recusa , cansaço , emoção. Cada qual
  seu desenho, sua fluidez. A volatização da essencia é a libertação da norma,
  da disciplina, da exclusão. Em Simone de Beauvoir tivemos a inspiração e os
  indícios desta démarche que na disseminação da identidade pode mudar a ordem
  do mundo, a ordem do pai, a ordem do falo.  
notes 
[i], Régine Robin( 1979)  Le
  cheval blanc de Lénine : ou l’histoire autre, Bruxelles, Complexe,
  pg.58. 
[ii] Simone de
  Beauvoir,op.cit.pg.185 
[iii] idem,ib.pg.184 
[iv] Adrienne Rich.
  Op.cit. pg32 
[v] idem,ib. pg 171 
[vi] idem,ib. pg 178 
[vii] idem, ib. pg.192 
[viii] idem,ib. pg. 179 
[ix] idem,ib. pg.171 
[x] idem, ib. 
[xi] Michel Foucault (1971) L’ordre du discours, Gallimard, Paris, pg.53 
[xii] ver em Ligia Belline (1987) A coisa obscura, , sodomia e inquisição no Brasil colonial, São Paulo, Ed. Brasiliense. . 
[xiii] Koogan Larousse (1979)
  direção de Antonio Houaiss, Ed. Larousse do Brasil, Rio de Janeiro, pg 507 
[xiv] idem, ib. pg.443 
[xv] Michel Foucault. (1988) A
  microfísica do poder, Graal, Rio de Janeiro, pg 244 
[xvi] Michel Foucault (
  1976) Histoire de la sexualité, la volonté de savoir, Gallimard, Paris, pg. 140/141 
[xvii]
  , Marie-Jo Bonnet.( 1995) Les relations amoureuses entre
  les femmes,
  Paris, Ed.Odile Jacob,   pg. 33 
.[xviii] Ovidio, Heroïdes, XV,
  Paris, Les Belles Lettres, 1965. Livro citado por Marie-Jo Bonnet, que faz
  algumas citações e mostra como o sucesso de suas numerosas traduções mostra
  que esta história, que serve de base biográfica para Sappho  e que apaga
  todas as especificidades sexuais da poeta ,cumpre nesta época uma outra
  função, a de desvalorizar a mulher letrada e através ela, as Précieuses. (Bonnet :75 
[xix] Marie Jo Bonnet,
  op.cit. pg.77 
[xx] [xx] Ovidio,
  Heroïdes, XV, Paris, Les Belles Lettres, 1965. Livro citado por Marie-Jo Bonnet, que faz algumas
  citações e mostra como o sucesso de suas numerosas traduções mostra que esta
  história, que serve de base biográfica para Sappho  e que apaga todas as
  especificidades sexuais da poeta ,cumpre nesta época uma outra função, a de
  desvalorizar a mulher letrada e através ela, as Précieuses. (Bonnet :75) 
[xxi] Marie Jo Bonnet,
  op.cit. pg.35 
[xxii] idem, ibid. pg.35/36 
[xxiii]
  Maria Clementina Pereira. Cunha “Loucura, gênero feminino: as mulhres do
  Juquery na São    Paulo do início do século XX, p. 121 a 144
  In Revista Brasileira de História, A mulher no espaço 
  público, SP, vol 9 n018 , 1989,
  pg.129 
[xxiv]
  Adrienne Rich (1981) La contrainte à l’hétérosexualité et l’existence
  lesbienne, Nouvelles Questions Féministes, Ed. Tierce, mars , n01, p.15-43, pg.32 
[xxv] Idem, ibid. 
[xxvi] 
  Geneviève Pastre. (1987) Athena ou le péril
  saphique. Octaviennes, Paris, pg.44 
[xxvii] Adrienne Rich,
  op.cit. 
[xxviii]Ti
  Grace Atkinson. ( 1975) Odyssée d’une amazone, Paris, Des Femmes, pg.
  155 
[xxix] A crítica aos estudos de
  gênero refere-se ao caráter relacional de construção social do feminino e do
  masculino , obscurecendo ou deixando completamente de lado a hierarquização e
  a assimetria desta configuração. 
[xxx] Nicole Claude Mathieu,
  op. cit.pg 256 
[xxxi] Donna J. Haraway, (1991). Ciencia, Cyborgs Y Mujeres. La reinvención de la naturaleza, Valencia : Ediciones
  Catedra., pg.345 
[xxxii] Judith Butler,
  op.cit.pg.17 
[xxxiii] 
  Cornelius. Castoriadis (1995). A Instituição Imaginária Da
  Sociedade, Rio
  de Janeiro,    Editora Paz e Terra. 
[xxxiv] 
  ver em Tania Navarro Swain, Au déla du binaire : les queers et
  l’éclatement du genre, in Lamoureux,Diane (org) Les
  limites de l’identité sexuelle, Montréal, Ed. Remue
  Ménage, 1998, 195 p. pgs135 a 150 
[xxxv], Teresa De Lauretis (1987). Technologies
  of gender, essays on theory, film
  and fiction , Bloomington, Indiana,
  Univ. Press, pg.3. 
[xxxvi],Christine Delphy 1991). «  Penser le genre, quels
  problèmes ? » , in  Hurtig, Maire Claude et   
  alli. Sexe Et Genre. De la hiérarchie des sexes. Paris : Ed. du CNRS, pg.91 
[xxxvii] Teresa de Lauretis,
  op.cit. pg.5 
[xxxviii] idem,ib. pg.2 
[xxxix] Donna Haraway,
  op.cit. pg. 357 
[xl] Judith Butler,
  op.cit. pg.25 
[xli] Monique Wittig  (1980) La pensée straight. Questions Féministes, Paris, Ed. Tierce, février,   n.7., pg.53 
[xlii],Denise Jodelet (1989). Les representations sociales, un domaine en
  expansion, dans Denise   Jodelet (dir) Représentations sociales, Paris, PUF pg.35. 
[xliii] Michel Foucault, Histoire
  de la sexualité,
  opc.cit. pg34/35 
[xliv] Rosi. Braidotti (1994).  Nomadic Subjects.Embodimentand sexual difference in contemporray feminist theory, New York : Columbia
  University Press,pg.4 
[xlv] idem,ibid. pg,35 | 

Fonte: http://www.tanianavarroswain.com.br/brasil/figuras_de_mulher_em_simone_de_b.htm
 
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