Eu não nasci equipada com o cabeamento da imanência e minha relação como divino sempre foi de uma transcendência abissal – receptor com defeito de fábrica. Nunca me senti confortável rezando, não se trata de não acreditar que haja algo ‘além’ para me escutar, mas de pudor. Educada por uma avó católica e outra espírita, eu não entendia em meus seis anos a razão delas não terem vergonha de pedir tanta coisa aos santos e espíritos. Incrédula, ficava imaginando criaturas louras com asas deixando de cuidar de doentes e de dar assistência às guerras para vir atender os pedidos de uma casa de classe média nordestina com mesa farta.
Ao longo da vida, essa percepção, como quase todas as ‘impressões’ formadas na infância, permaneceu basicamente a mesma. Com a Filosofia, entendi que esse pudor era a manifestação de uma tendência precoce para o ceticismo, na esfera racional, e de uma inclinação atávica para enxergar o mundo pelo viés realista – de maneira rasteira, a ideia de que as coisas existem independente de eu percebê-las, pensá-las ou conhecê-las. (Esse realismo é o responsável pela minha angústia de conhecimento, um desespero que me acompanha desde que aprendi a ler, um temor de morrer sem ter estudado ou conhecido o suficiente.)
Como sempre me interessei pelos estudos culturais ligados à religião, trabalhei muitos anos em uma organização católica e fiz minha dissertação de mestrado sobre um filósofo judeu e exegeta do Talmud, resolvi usar socialmente o rótulo de ‘agnóstica’ para encurtar as conversas derivadas da pergunta recorrente ‘qual é a sua religiaaaaaaaão?’.
Deus, o misticismo, são para mim coisas tão sérias que me recuso a discuti-las fora da esfera sociológica; simplesmente não me considero aparelhada para levantar uma hipótese sequer que eu não considere estupida, estou certa de que tenho uma incapacidade funcional para entender os mistérios da existência e tenho um ego conformado com a impossibilidade de intuir o que é incomensurável.
Nesse sentido, o zen tem me ajudado muito – embora eu permaneça agnóstica, o espírito do zen é deliciosamente antidogmático e não dá a menor bola pra isso. Além de se conformar à minha personalidade pragmática, dedicar boa parte de sua prática à compaixão e ser um memento para a disciplina moral e a humildade, ajuda a aliviar o incômodo daquele espinho, àquele que só dói quando rimos: o temor de que, apesar de não acreditamos neles, os deuses existam à despeito, apesar e por nós. Como (quase) diz o texto abaixo de Jan Chozen, [parece] sem sentido, mas temos que fazê-lo.
O Paradoxo da OraçãoPor Jan Chozen Bays | 15 nov 2014
Tradução Ana Calazans
Os zen budistas rezam? Esta questão foi levantada online recentemente entre professores zen quando alguém em uma área afetada pela seca solicitou que outras pessoas se juntassem a eles em um esforço de oração “rogando a bênção da chuva de qualquer maneira que faça sentido para elas.” A conversa online que se seguiu deixou claro que não existe uma “linha de partido” em relação à oração. Uma professora chamou a prece de “superstição bem-intencionada”, semelhante à fricção de cristais ou ao sacrifício de cabras; no entanto, a mesma depois confessou ter rezado arduamente quando seu filho estava muito doente. Outro professor se preocupou com o fato de que se orássemos para que um recurso como a chuva caísse em uma área seca, estaríamos efetivamente pedindo que essa chuva fosse desviada de outra área. Acontece que não é o caso, mas isso poderia implicar mais evaporação dos oceanos e lagos, o que poderia resultar em violentas tempestades e inundações. Causa e efeito são complicados. Um cientista que consultei sobre a questão aconselhou: “Cuidado com o que você pede na oração.”
Muitos professores responderam que rezavam. Mas, em uma religião não-teísta, isto levanta algumas questões: Para quem? Para quê? Na prática zen diária parece que muitas vezes estamos orando para nós mesmos, para o self de nosso ciclo-de-vida-individual-limitado e nosso imenso EU de ilimitada-inter-existência. Nós não estamos orando por ganho material pessoal; em vez disso, estamos orando a fim de transformar os nossos corações e mentes para as qualidades positivas da compaixão e da clareza. Estamos expressando a aspiração de que nos tornemos capazes de estender a compaixão e sabedoria para nós e para os outros.
Sabemos também que há presenças invisíveis ao nosso redor. Há comédias, tragédias, novelas, música rap e chamadas para o número 911 da polícia, mas não podemos ouvi-los se não temos o receptor certo, como um rádio, computador, telefone celular ou tv. A faixa de luz e som que nossos corpos humanos são capazes de perceber é bastante estreita. Parece inteiramente possível que existam muitas formas invisíveis da existência ao nosso redor. Talvez elas habitem em outras dimensões do espaço-tempo. Por que não sermos humildes e pedir-lhes assistência? Nosso pedido nos torna um receptor, um veículo através do qual eles podem ser capazes de se mover e agir.
“[F] inalmente você diz: ‘Por favor. Por favor, faça-me simples. Por favor, faça-me livre’”. No momento em que você clama, dizendo “por favor”, Avalokiteshvara[2] é chamado. Não há nenhum sujeito suplicando e não há objeto a quem apelar. Porque a pessoa que está pedindo algo é, simultaneamente, o objeto de sua procura. Isso é Avalokiteshvara.Se a nossa prática no ‘Monastério do Grande Voto’ é alguma indicação, a oração está viva e bem no zen do Ocidente. Nós permanecemos cantando nossos serviços quatro vezes ao dia, nos quais a palavra “rezar” surge de novo e de novo. Nós oramos para o bem-estar de uma lista de pessoas que estão doentes e para transições serenas para aqueles que morreram recentemente. Oramos para que o mundo seja livre de violência, guerra e desastres. Oramos para a assistência de todos os seres iluminados e santos que vieram antes de nós. Expressamos nossa profunda gratidão aos nossos ancestrais do dharma e rezamos para que seus votos sejam cumpridos através de nós. Rezamos para manter a prática constante até a hora de nossa morte e além. Um cântico começa, “a nossa mais profunda oração é ser firmes em nossa determinação de dar-nos completamente a maneira de Buda, de modo que nenhuma dúvida surja, por mais longa que a estrada pareça ser” e termina com “a nossa mais profunda oração não é para estarmos extremamente doentes ou sofrendo no momento da partida … [É ] para que possamos acalmar a mente para abandonar o corpo e nos fundirmos de forma infinita no universo “.
Oramos com as refeições. Refletimos com gratidão sobre todos os seres cuja energia da vida fluiu para a comida em nossas tigelas, sacrificados para que pudéssemos ter a vida mais abundante, e oramos para que todos os seres sejam bem nutridos como nós somos. Oramos para sermos capazes de transformar obstáculos em combustível para a iluminação. Oramos para cultivar uma mente como uma flor de lótus, com crescimento puro e reto para fora da água barrenta de ilusão.
Antes de iniciar nosso trabalho, oramos para que o nosso ofício purifique nossos corações, beneficie a terra e ajude a libertar todos os seres do sofrimento. Oramos para que possamos cultivar, realizar e manifestar o caminho iluminado juntos.
Não rezamos a uma pessoa ou deus chamado Buda. Rezamos para o todo que dá origem a ( e tem atuação através de) muitos. Oramos para que as qualidades iluminadas se tornem nosso caminho contínuo de vida, trazendo benefício para nós e para todos que encontrarmos. Nós dirigimos ‘metta’[1] ao nosso EU, rogando silenciosamente: “que eu possa ser livre do medo e da ansiedade. Que eu possa estar à vontade. Que eu possa ser feliz”. Uma vez preenchidos, voltamos essas orações para os outros. Nós também recitamos votos, que são uma espécie de intenção embrulhada em oração. “Os seres são inúmeros, eu me comprometo a libertá-los … O caminho de Buda é insuperável, eu me comprometo a tornar-me ele.”
Nesse ato de juramento encontramos a humildade e na humildade mais uma vez entramos em oração. Dainin Katagiri Roshi escreveu em ‘Retornando ao Silêncio’, “[F] inalmente você diz: ‘Por favor. Por favor, faça-me simples. Por favor, faça-me livre’”. No momento em que você clama, dizendo “por favor”, Avalokiteshvara[2] é chamado. Não há nenhum sujeito suplicando e não há objeto a quem apelar. Porque a pessoa que está pedindo algo é, simultaneamente, o objeto de sua procura. Isso é Avalokiteshvara.
A oração não é dirigida a nós mesmos, mas nós somos o lugar onde a oração é respondida.
Nossa forma mais pura de oração diária é zazen. No zazen, a atividade incansável que nos separa de tudo é dissolvida. Fronteiras desaparecem e nos tornamos luminosos e transparentes, completamente receptivos. Coração e mente se tornam claros e abertos. Em seguida, cada respiração é a respiração sagrada original, movendo-se em toda a face da terra. Som, luz e toque são o jogo de existência que surge infinitamente a partir do vazio. Não há nada faltando, nada a pedir, exceto que todo mundo seja capaz de experimentar esta tranquilidade perfeita.
Quando tudo se torna um todo unificado, como pode haver alguém para orar? Viver na consciência do dom contínuo, na manifestação de tudo o que existe, a partir da fonte inesgotável do incognoscível – isso não é uma forma calma e delicada de oração?
A prática zen nos pede continuamente para encontrar suavidade na tensão do paradoxo. Não temos para quem ou para quê rezar e, ao mesmo tempo, rezamos continuamente. Oramos para ninguém, e oramos para e por tudo. Não há sentido nisso, mas esta é a nossa prática. Como um professor mais velho disse recentemente após realizar um longo ritual da chuva dedicado ao bem-estar de plantas, animais e todos os seres vivos que sofrem com a seca, os incêndios e a fome, “isto é o mesmo que homens insensatos preenchendo uma fonte com neve. É sem sentido, mas temos que fazê-lo. ”
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[1] Estado da mente, ou intenção, voltada ao amor e à bondade. Nota da tradutora.
[2] O bodhisattva da compaixão, “aquele que ouve o clamor, ou a lamentação, do mundo”. Nota da tradutora.
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