Nagarjuna presta homenagem ao Buddha Shakyamuni, enaltecendo-o como o mestre que formulou a filosofia do vazio, segundo a qual todas as coisas e eventos carecem de existência intrínseca ou identidade intrínseca; e que, apesar de carecerem de identidade e existência, ainda funcionam com sua capacidade de produzir efeitos e assim por diante. Pode-se entender isso pela compreensão da natureza dependente ou interdependente da realidade. Nagarjuna homenageia o Buddha Shakyamuni, que propôs a doutrina do vazio da realidade intrínseca ao ensinar a natureza dependente dos fenômenos.
De um modo geral, encontramos na literatura Madhyamaka várias formas de raciocínio que visam a estabelecer a ausência de existência intrínseca e identidade intrínseca dos fenômenos. Incluem a tentativa de analisar como as coisas surgem em termos nominais e conceituais; ao examinarmos essa natureza, chegamos à conclusão de que as coisas carecem de realidade intrínseca. Além disso, encontramos as formas de argumentação conhecidas como "exame de identidade e diferença dos fenômenos". Também encontramos outros tipos de argumentação ou raciocínios que examinam os fenômenos pela perspectiva causal, isto é, pela perspectiva de sua capacidade de produzir efeitos e assim por diante.
Entre todas essas formas de raciocínio, no entanto, a mais poderosa é a do raciocínio da origem dependente, empregado por Nagarjuna. Quando uma coisa ou evento determinado é considerado, através de sua natureza de origem dependente, como desprovido de realidade, existência e identidade intrínseca, descobrimos que não estamos negando a existência dos fenômenos; estamos tentando compreender sua existência e identidade em termos de seus relacionamentos com outros fenômenos. Num certo sentido, pode-se dizer que a existência e a identidade afloram em relação a outros fenômenos.
O que há de tão singular nessa forma de raciocínio baseado na natureza interdependente da realidade, é o fato de que possui a capacidade de chegar ao "caminho do meio". É uma posição livre do extremo do absolutismo, porque não está ligada a algum tipo de realidade intrínseca; contudo, ao mesmo tempo, também está livre do extremo do niilismo, porque não nega a existência e identidade dos fenômenos. Aceita-se uma existência formal, que é dependente, que é emergente e que é compreendida em termos de sua interação e inter-relacionamento.
Assim, no Ingresso no Caminho do Meio (sânsc. Madhyamakavatara), encontramos Chandrakirti declarando que, depois que a compreensão da existência e da identidade dos fenômenos é desenvolvida, com base na noção da natureza interdependente da realidade, e como identidade e existência são derivadas desse inter-relacionamento, isso permite à pessoa entender o conceito buddhista fundamental da causalidade, em que nossa compreensão da natureza da realidade deriva do reconhecimento da mera condicionalidade. Dessa maneira, é possível refutar a idéia de fenômenos sem produção e sem causa, porque as coisas passam a existir através da interação com outros fatores, em decorrência de causas e condições. E através dessa percepção sobre a natureza interdependente da realidade, também é possível refutar a idéia da criação por alguma espécie de ser absoluto e independente, porque se compreende a causalidade em termos de mera condicionalidade. Da mesma forma, é possível refutar a idéia de que uma coisa pode passar a existir como dependente de causas idênticas a ela. É possível se livrar de todos esses extremos e aceitar a idéia da causalidade em seu verdadeiro sentido.
Mas quando tentamos compreender o que significa mera condicionalidade, ou como coisas e eventos surgem em total dependência de outras causas e condições, há muitas áreas problemáticas que temos de lembrar.
Vamos tomar como exemplo nossos próprios agregados, os skandhas. Se examinarmos o contínuo do agregado mais sutil, a consciência, e também o senso do "eu", ou do "ego", vamos verificar que a identidade pessoal baseia-se no contínuo do agregado sutil, o senso geral do "eu" que é desprovido de qualificações, seja como um ser humano, como uma pessoa de origem étnica específica etc. Em suma, não há qualificação. O mero senso do "eu" ou mera identidade, aquele "eu" ou senso do ego que deriva do contínuo do agregado sutil, não tem princípio em relação a esse contínuo. Portanto, não se pode dizer que o "ego" ou "eu" associado à nossa identidade como um ser humano é específico de uma única vida. Não podemos dizer que é um ser humano; não podemos dizer que é um animal. Mas podemos dizer que é um ser.
Em termos do contínuo, podemos dizer que o eu junto com a base do senso do eu, que é o agregado sutil, deriva de seu momento anterior, que por sua vez deriva de um momento anterior e assim por diante, porque há um processo contínuo. Contudo, não podemos dizer que é um produto do karma, porque o karma, em termos de seu processo contínuo, não tem participação na continuação do processo. É simplesmente um fato natural que esse contínuo leva adiante.
Mas se examinarmos num nível um pouco mais rude, por exemplo, no nível da existência humana, então temos o corpo humano e a identidade humana, que levam a pessoa a dizer: "Sou um ser humano". Esse senso do eu, assim como os agregados em que a identidade se baseia, pode ser considerado um produto do karma. Isso acontece porque ao falarmos de "corpo humano" e "existência humana" estamos nos referindo à conseqüência ou fruto do karma positivo, as ações virtuosas acumuladas no passado. Portanto, o karma desempenha um papel.
Vamos verificar o caso de um corpo humano. Embora possamos dizer, de modo geral, que é um produto do bom karma, se quisermos traçar a origem material, a causa substancial que é a origem material, a causa substancial que é a origem material de nosso corpo, podemos fazê-lo através do princípio causal que é a instância anterior ou os fluidos regenerativos parentais, depois seguir mais e mais longe. Portanto, podemos traçar a origem material até um ponto — vamos tomar como exemplo este sistema universal específico — em que encontramos o espaço totalmente vazio. Segundo a cosmologia buddhista, antes da evolução de um sistema universal específico, todas as substâncias materiais eram inerentes ao que é conhecido como "partículas espaciais". Ou seja, em termos do processo do contínuo material, é um fato natural, uma lei natural, que o princípio causal impulsiona substâncias materiais para prosseguirem seu contínuo. Mais uma vez, não há papel para o karma aqui.
A questão agora é a seguinte: em que ponto, em que estágio, o karma entra em cena? No estágio do espaço vazio, as partículas espaciais prosseguirão no contínuo material, que darão origem a várias estruturas compostas de partículas, levando a uma estrutura molecular, segundo a teoria científica. Com uma complexidade cada vez maior, chegará um ponto em que a composição das partículas materiais fará uma diferença para os indivíduos que habitam o mundo. Em outras palavras, o material se tornará diretamente relevante para a experiência de dor e de prazer das pessoas. É nesse estágio, em minha opinião, que o karma começa a desempenhar um papel. Quero que vocês pensem a respeito dessas áreas problemáticas.
Por causa dessa complexidade, encontramos na literatura buddhista vários cursos de raciocínio e quatro princípios fundamentais, que acredita-se estarem arraigados no mundo natural. Os três primeiros são o princípio da lei natural, o princípio da dependência e o princípio das funções. Depois, com base nesses três princípios, pode-se aplicar a lógica. A menos que haja certas bases que possam ser usadas, não é possível adquirir o raciocínio ou a lógica.
Pode-se dizer que a razão pelas quais podemos avaliar as leis da química é porque há determinados princípios, conhecidos como "o princípio da dependência" e o "princípio das funções". Quando determinadas substâncias materiais interagem, dão origem a propriedades emergentes. Isso nos permite avaliar as funções que podem ser realizadas coletivamente, através da interação. Assim podemos avaliar as leis da química.
Cabe aqui a pergunta: "Por que há no mundo natural, como se fossem fatos determinados, o reino material e o reino mental — o reino espiritual ou o reino da consciência?". Não há uma resposta racional. É apenas um fato.
À luz dessas considerações filosóficas, chegamos à conclusão de que as coisas e eventos, em última análise, carecem de existência intrínseca ou identidade intrínseca. Só possuem existência e identidade em relação a outros fatores, causas e condições. Portanto, a percepção que apreende coisas e eventos como tendo uma existência intrínseca, possuindo uma identidade e posição intrínseca, é o estado de ignorância. Na verdade, é um estado de conceito equivocado. Assim, ao gerarmos percepção sobre a natureza vazia dos fenômenos, poderemos ver diretamente através da ilusão desse conceito equivocado. Afinal, essa concepção se opõe diretamente ao estilo de absorção do conhecimento errado. Em conseqüência, esse estado mental distorcido pode ser removido ou eliminado. Por esse motivo, acredita-se que não apenas a ignorância, como também os estados ilusórios derivados, enraizados nesse estado fundamental de ignorância, podem ser removidos.
Levando essa discussão adiante, Maitreya, em seu Sublime Contínuo (sânsc. Uttaratantra) dá três razões sobre a base em que se pode concluir que o estado búddhico impregna as mentes de todos os seres sencientes. Primeiro, ele diz que as atividades do Buddha irradiam-se no coração de todos os seres sencientes. Isso pode ser compreendido de maneiras diferentes. Primeiro, é a de que em cada ser senciente há uma semente de virtude e que se pode considerar a semente de virtude como um ato do Buddha completamente iluminado. E compadecido. Mas pode-se perceber também, em termos mais profundos, que todos os seres sencientes possuem o potencial para a perfeição. Portanto, há uma espécie de ser aperfeiçoado inerente em todos os seres sencientes, irradiando-se. Segundo, no que se relaciona com a suprema natureza da realidade, há uma total igualdade entre o estado samsárico e o nirvana. Terceiro, todos possuímos uma mente que carece de realidade intrínseca e existência independente, o que nos permite remover os aspectos negativos e os estados ilusórios que a obscurecem. Por esses motivos, Maitreya conclui que todos os seres sencientes possuem a essência do estado búddhico.
Contudo, para ativar essa semente inerente em nosso coração ou mente devemos desenvolver a compaixão. Através do cultivo da compaixão universal a pessoa será capaz de ativar essa semente, o que a torna mais inclinada para o caminho Mahayana. Para isso, a prática da paciência e da tolerância é crucial.
(S.S. o Dalai Lama. A arte de lidar com a raiva: o poder da paciência. Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos da tradução de Geshe Thubten Jinpa. Rio de Janeiro: Campus, 2001. Pág. 171-176)
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