‘Vivemos o sexo fora do script’: tudo que pessoas
trans querem que você saiba sobre prazer
Marie Claire ouviu pessoas trans,
travestis e não binárias para que definam por elas próprias suas relações com o
sexo, o que é prazer para elas e como reinventaram o erotismo para si mesmas
Por
, em colaboração para Marie Claire — São Paulo (SP)
15/05/2025 16h42 Atualizado há 4
semanas
Sexo e prazer parecem ser carregados de um significado imutável e experimentado do mesmo jeito por todo mundo. Mas não é bem assim: acontece que o lugar que cada pessoa ocupa no mundo pode mudar — e muito — a maneira de encarar e viver o sexo. Tesão é subjetivo, e a maneira de senti-lo vai variar de pessoa para pessoa justamente porque cada uma tem sua própria bagagem. Direto ao ponto: a maneira de viver o sexo entre pessoas trans e cisgênero pode ter nuances diferentes.
Apesar de hoje se falar muito mais sobre vivências trans do que há alguns anos, os holofotes costumam apontar para as estatísticas e para a violência — como o Brasil ser um dos países que mais consome pornografia trans, ao mesmo tempo que é o que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo. É certo que a estrutura em que vivemos dificulta a duras penas a existência plena de pessoas trans, mas pouco se fala sobre as experiências, alegrias e desejos.
Infelizmente, o comum segue sendo ver pessoas trans reduzidas ao fetiche e à objetificação, quando não o apagamento e a violência — lugares em que são colocadas pela cisheteronormatividade, sem pedir por isso. É aí que está a chave: falar francamente de sexo vivendo nessa estrutura pode abrir um espaço para reconhecer histórias de prazer, liberdade, afeto e conexão — que são, sim, possíveis para pessoas trans. Tão importante quanto liberdade e segurança de se expressar sexualmente é ouvir da boca delas próprias o seguinte: o que é sexo para você? E prazer? E o que você gostaria que pessoas cis hétero soubessem sobre sua maneira de enxergar o prazer?
Marie Claire estende o microfone para diversas mulheres e homens trans, travestis, pessoas transmasculinas e não binárias para dizerem o que gostariam que você soubesse sobre sexo.
‘Meu prazer está em me sentir desejada e não ser reduzida a um fetiche’
“Ainda não me sinto completamente confortável com relação ao sexo como gostaria. Muitas das minhas vivências como uma pessoa trans me provaram que preciso ficar alerta com algumas dinâmicas que tiram a fluidez e a espontaneidade do sexo. Tento evitar situações em que eu me sinta extremamente objetificada, fetichizada e usada. Para muitos caras, estar com uma mulher trans é um grande tabu. Tratam como algo proibido, que precisa ser escondido, e acham que põe em xeque a masculinidade deles. Por isso, gostaria que as pessoas cis hétero (sobretudo os homens) se conhecessem melhor, entendessem mais seus próprios desejos e bancassem suas preferências de forma honesta. Pode parecer piegas dizer isso, mas o que mais me dá prazer no sexo é sentir que existe intimidade, um espaço seguro e que estou sendo desejada por quem sou, não apenas por fazer parte de uma fantasia fetichista pornô.” Gui Takahashi, jornalista, 37 anos
‘Não me encaixo na sexualidade heteronormativa, em que precisa existir um homem sempre ativo na relação’
“Me sinto muito confortável com sexo, mas sinto que existe um abismo na falta de conhecimento sobre sexualidade de uma maneira que não seja heteronormativa. Principalmente para corpos como o meu, em que fica projetada aquela masculinidade ativa, praticamente o papel do homem na relação. Mas como eu sou uma pessoa não binária, não me encaixo nesse parâmetro. Sou bem versátil e sinto que as pessoas tendem a, cada vez mais, buscar prazer e não querer proporcioná-lo. Sinto prazer em dar prazer também, mas não quero ser colocado apenas nesse lugar.” Júpiter, rapper, 32 anos
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‘Ser uma pessoa trans me libertou ainda mais sexualmente’
“Tenho bastante liberdade com meu corpo, gosto do jeito que ele é, isso faz eu me sentir bem confortável em relação a sexo. Sinto que o fato de eu ser uma pessoa trans foi o que me libertou ainda mais sexualmente. Porque antes de não só me entender, mas de me colocar sendo essa pessoa trans no mundo, sentia que tinha muitas amarras. Como se estivesse sempre dentro de uma caixinha, como a do ‘gayzinho afeminado’. Achava que tinha que ser uma pessoa passiva e agir de uma forma específica. Depois que eu transicionei, foi quando realmente descobri do que gostava. Gosto de ser muito mais ativa, sentir prazer ao conversar e falar sobre o sexo. Comecei a entender que os desejos são personalizáveis. O que me dá muito prazer no sexo é perceber o nível do desejo, e a vontade de aprender e entender sobre as particularidades do meu corpo. Se sinto que esse desejo existe, vou retribuir desejando ainda mais e podendo ter essa troca gostosa de prazer. Acho que o que eu queria que as pessoas cis hétero soubessem sobre sexo é que ele começa antes de estarmos pelados na cama. Começa naquela conversa, naquele flerte, naquele desejo. Digo isso porque desejar uma pessoa vai muito além da genitália. Se você for transar com uma outra pessoa cis ou com uma pessoa trans, é preciso conversar de forma transparente, sem pressuposições do desejo de nenhum dos dois lados. É isso que faz o sexo ser muito bom. ” Bielo Pereira, apresentadora, 32 anos
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‘Quero sentir prazer, não só proporcionar’
“Sempre tive medo de ser vista como objeto de desejo pelas pessoas. No começo da transição, não me sentia tão confortável com sexo por muitos motivos. Hoje me conheço melhor e tenho mais confiança comigo mesma. Consigo me sentir confortável e enxergar minha sexualidade como algo muito natural. A coisa que mais me traz prazer é o toque físico, o beijo, as preliminares e sentir que está sendo prazeroso para ambos. Sempre prezo conhecer pessoas que também sejam dessa forma e que levem o sexo com tranquilidade. Também queremos sentir prazer, não só proporcionar. O sexo com uma pessoa trans ou com qualquer outra pessoa vai muito além disso. Sendo assim, é sempre bom ter o mínimo de cuidado para entender o que atrai e satisfaz sua parceria.” Micaella Cattano, modelo e performer, 23 anos
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‘Vivemos o sexo fora do script e reiventamos a linguagem do prazer’
“Vivo grande parte do tempo em uma cultura sex-positive e sou perigosamente autêntique quando se trata da minha sexualidade. Isso significa que estou confortável com meus desejos e com a forma como os expresso. Há um poder imenso em reconhecer a força vital que nos atravessa quando damos espaço ao desejo com consciência. Depois de muitos anos dedicados ao autoconhecimento e à cura de abusos sofridos na infância, posso dizer que me permito viver meus desejos com liberdade — sem medo, vergonha ou culpa. Prazer, para mim, é quando o sexo vira rito. Quando nos despimos não só das roupas, mas também dos papéis. O orgasmo ali não é só clímax, é revelação. Muites de nós (especialmente pessoas que nasceram com corpo de fêmea humana) fomos marcades por abusos, silenciamentos e vergonhas profundas em relação ao corpo e ao prazer. E, por isso, o sexo pode carregar dor, medo, culpa. Mas também pode ser o espaço da cura — um verdadeiro portal se for vivido com presença, respeito e verdade. Criar o Instituto [SSEX BBOX], um projeto pioneiro sobre sexualidade e gênero, foi também parte essencial da minha jornada de cura. Esse caminho se tornou um espaço de experimentação sensível, de transgressão e transcendência. O sexo não é uma linha de chegada, mas uma jornada sensorial, simbólica e energética. Além disso, nós, pessoas não binárias, autistas ou dissidentes temos muito a ensinar sobre sexo, porque o vivemos fora do script. Reinventamos a linguagem do prazer a partir da dor, do exílio, da coragem — e, por isso, muitas vezes acessamos níveis mais profundos de conexão, entrega e sabedoria corporal.” Pri Bertucci, artista social, cineasta e fundadore do Instituto SSEX BBOX, 46 anos.
‘O que você gosta no sexo não define seu gênero e sexualidade’
“Minha relação com o sexo é muito mais tranquila, confiante e feliz, mas foi um longo caminho até conseguir me sentir livre. Tinha receio de sentir vontade e medo de explorar meus desejos. Aflora muito o meu prazer sentir que a pessoa me quer e tem tesão por mim. Adoro criatividade no ato, seja representar um personagem mais lúdico, seja fazer uma cena, brincar. Acho que o sexo pode e deve ser descontraído.Todo mundo deveria entender que práticas sexuais não definem teu gênero ou sexualidade. Está tudo bem um homem cis hétero gostar de sentir prazer anal, por exemplo, porque é uma área super sensível. O sexo vai muito além de penetraçao ou oral: envolve toque na pele, beijos, mordidas, lambidas, palavrase todo o envolvimento na relação. Uma coisa específica para pessoas cis: na hora do sexo com uma pessoa trans, pergunte os limites dela. Por conta da disforia corporal [desconforto emocional e físico que geram sentimentos de angústia em relação a aparência do corpo], muitas não gostam que certas partes do corpo sejam tocadas. É muito importante conversar antes.” Samantha Greystorm, jornalista, 27 anos
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‘Gosto quando o sexo é leve, tem intimidade e quando há espaço para rir’
“Minha relação com o sexo já passou por muitas fases. Então, houve um tempo em que eu estava muito mais tentando performar algo do que realmente sentindo prazer. Como homem trans, é impossível separar essa vivência do corpo, da construção da sexualidade em si. Hoje em dia, me sinto mais confortável, mas foi um processo. Gosto quando o sexo é leve, tem intimidade e quando há espaço para rir, errar, explorar e não ficar paranoico com minha performance e meu corpo. O prazer vem ao sentir que meu corpo é desejado sem negociações ou correções; quando existe afeto, curiosidade e liberdade para expor o que eu gosto. Queria também que as pessoas entendessem que o prazer, além de não se limitar a penetração e o que é visto na pornografia, vem muito da escuta. Entender o que a outra pessoa quer na hora e os toques vai ajudar a saber até onde você pode ir, quais são os limites e como a pessoa está se sentindo em determinada situação. Cada corpo sente de forma diferente, e o fato do desejo ser diferente não é um defeito, só significa que nada é igual. Acho que pessoas cis precisam entender que corpos trans existem e não estão aí para ser objeto de desejo — a ponto de enxergar o sexo com uma pessoa trans como um fetiche.” Stefan Costa, comunicador social, 30 anos
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‘Meu corpo travesti têm direito de desfrutar carinho’
“De alguma forma, durante alguns anos da minha vida, entendia que o corpo travesti era um corpo objetificado e, portanto, condicionado a vivenciar apenas o sexo mecânico. Mas, com o passar do tempo, entendi que as afetividades deveriam fazer parte desse processo e que meu corpo travesti também tinha o direito de desfrutar do carinho, das preliminares, do namoro e das delícias do toque. Hoje, me sinto extremamente confortável com meu corpo, com como eu gozo, com meu sexo, com minha performance. Gosto do toque, do beijo, das palavras certas na hora certa. A troca de olhares que antecede o contato corporal. As provocações e a excitação que nasce mesmo antes das famosas preliminares me atraem muito. A penetração é só consequência dessa brincadeira. Queria que as pessoas heterocisnormativas entendessem que a ideia da mecanização do sexo não é saudável. Não é aquilo que se assiste editados em vídeos pornô. Não é uma testagem de performance”. Bia Crispim, professora e escritora, 48 anos
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‘Precisei desconstruir padrões sexuais para me relacionar de forma mais livre e autêntica’
“Minha relação com sexo e a sexualidade passou por diversos processos de autoconhecimento e aceitação. Foi necessário compreender meus desejos reais, reconhecer bloqueios internos e questionar moralidades que limitavam minha expressão sexual. Aprendi a me conectar profundamente comigo mesmo, o que me permitiu estabelecer conexões mais significativas com outras pessoas, indo além da superficialidade e da ideia de que o sexo tem como único objetivo o gozo. Hoje, o que me proporciona prazer é estar completamente presente, livre para me expressar e me doar ao momento. O único limite é o consentimento mútuo. A fluidez, a excitação e o tesão estão ligados à devoção e a entrega, permitindo uma conexão profunda de autoconhecimento e minha espiritualidade. Vivemos em uma cultura binária que define papeis rígidos para homens e mulheres, inclusive na esfera sexual. Como pessoa trans não binária e queer, precisei desconstruir esses padrões para me relacionar de forma mais livre e autêntica. Percebi o quanto certas relações eram limitadas por expectativas de dominação masculina e submissão feminina. Ser chamado de ‘mulherzinha’ durante o sexo, por exemplo, era visto como algo negativo, refletindo a desvalorização do feminino e a exaltação da dominação pelo masculino. Ao questionar esses padrões, enfrentei momentos de desconforto, como quando ouvi durante uma transa: ‘Não sou homem nem mulher’. Isso me desestabilizou, pois percebi o quanto nossas definições moldam comportamentos e expectativas, até mesmo durante o sexo. Acredito que é necessário coragem para explorar o próprio corpo e o do outro com quem estamos em contato. Muitas pessoas cisgênero e heterossexuais têm receio de se aprofundar em sua sexualidade, permanecendo presas a moldes preestabelecidos. Por exemplo, o sexo anal ainda é um tabu para muitos homens heterossexuais, o que revela uma dificuldade em lidar com a vulnerabilidade no sexo”, Van Marcelino, artista visual, 39 anos
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‘Existem muitas formas de prazer que não se limitam a penetração’
“Antes da transição, não me sentia confortável com sexo, principalmente por causa dos seios. Sentia muita disforia. Por mais bonitos que fossem, sentia que aqueles seios não pertenciam ao meu corpo. Quando fiz a transição, não teve um único dia em que eu não me sentisse bonito. A sensação de me reconhecer no espelho foi libertadora. Houve também uma mudança significativa na região genital. Com os hormônios, houve crescimento, o que para mim, só trouxe benefícios. Nunca me incomodou, na verdade. Ficou ainda melhor, tanto em termos de prazer quanto de autoestima. Sou casado com uma mulher cis maravilhosa, e nossa relação flui de forma muito natural. As pessoas ainda têm uma ideia limitada do que é o sexo entre homem e mulher, como se tudo girasse em torno da penetração com pênis. Acho importante falar sobre isso porque existem muitas formas de viver o prazer — o mais importante é o respeito e a conexão entre os corpos. No nosso caso, usamos brinquedos quando queremos, e eles atendem muito bem.” Bernardo Martinez, Coordenador de Marketing, 33 anos
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