Vale a pena
reclamar? Por que expressar desconforto pode trabalhar contra você
Os principais centros de pesquisa do
mundo começaram a registrar cientificamente o quanto e o que uma reclamação
produz no organismo de uma pessoa
Por
Flávia
Tomaello
, Em La Nacion
24/06/2025 04h30 Atualizado há 4 dias
À medida que o descontentamento generalizado se espalha por todas as áreas da vida humana, seja por tédio, hábito, infundado, como último recurso, por descrença ou como um ato reflexo, os principais centros de pesquisa do mundo começaram a tomar nota de sua existência e começaram a registrar cientificamente o quanto e o que uma reclamação produz.
Um antigo estudo da Universidade de Stanford, realizado em 1996, afirmava que uma pessoa, em média, reclama entre 15 e 30 vezes por dia. Natalie Biderman, atualmente pesquisadora do departamento de psiquiatria da instituição, confirma que esses dados não foram atualizados, mas que eles se aprofundaram em outros aspectos da pesquisa. "Conseguimos identificar que 64% das pessoas acham que reclamar prejudica sua saúde mental. E que, ao mesmo tempo, 96% das pessoas insatisfeitas não reclamam", diz ela.
No entanto, um estudo da Universidade de Harvard, liderado por David Weil, professor de economia, descobriu que as pessoas reclamam em média 48 vezes por dia. Enquanto isso, a empresa de treinamento em inteligência emocional Talent Smart mostrou em suas últimas pesquisas que elas fazem isso, em média, uma vez por minuto.
Um estudo realizado pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) descobriu que 1 em cada 3 americanos afirma ter cortado relações com pessoas que reclamam demais, enquanto 1 em cada 4 afirma que, se pudesse escolher um assunto sobre o qual nunca mais ouviria reclamações, seria política. O estudo descobriu que quase 48% das reclamações eram sobre o preço das coisas, enquanto 33% eram sobre o trânsito.
A mesma pesquisa afirma que quase 3 em cada 5 americanos reclamam com colegas de trabalho, e outros 42% afirmam desabafar com o chefe. Eles argumentaram que "pessoas fora do escritório não necessariamente entendem as frustrações do dia a dia".
Reclamar é uma expressão de sofrimento emocional gerado pela discrepância entre as expectativas e a realidade. "É um mecanismo para evitar assumir responsabilidades. Mantendo a pessoa no reino da impossibilidade. Isso a leva a se sentir cada vez mais frustrada", diz Cristina Veiga, psicóloga da Fundação Aiglé.
Além disso, ela afirma que reclamar é uma forma de "passar a responsabilidade para os outros, evitando assumir responsabilidades", o que as colocam em uma posição de vitimização.
"Torna-se prejudicial quando mantido por muito tempo e pode se tornar uma ferramenta de manipulação, gerando culpa no outro", acrescenta.
No entanto, o velho ditado "não reclame se não for reclamar" é inspirado na sabedoria popular de que "reclamar é uma espécie de catarse", diz Laura Markham, psicóloga clínica da Universidade de Columbia e autora de Peaceful Parents, Happy Kids. "Ao expressar nossos sentimentos em vez de reprimi-los, nos sentimos melhor."
Um artigo científico publicado na Biblioteca Nacional de Medicina, liderado por Robin Kowalski, especialista do Departamento de Psicologia da Universidade da Carolina Ocidental, afirma que reclamações são definidas como expressões de insatisfação, sejam elas vivenciadas subjetivamente ou não, com o propósito de extravasar emoções ou alcançar objetivos pessoais. Sua pesquisa indica que "reclamar envolve uma equação em que a utilidade e o propósito da reclamação desempenham um papel central. Posso me sentir muito insatisfeito, mas ao mesmo tempo avaliar que, se reclamar, perderei algo. Ou posso não me sentir tão insatisfeito, considerando que reclamar atrairá a atenção dos outros e receberá apoio e carinho de familiares ou amigos."
Os motivos pelos quais as pessoas reclamam são tão diversos quanto as queixas que expressam. "Pode ser um comportamento saudável ou prejudicial", diz Carolina Palavezzatti, psicóloga da Fundação Aiglé. "Se estivermos em uma situação social com estranhos, reclamar pode facilitar a interação social."
Eu nunca consigo o que quero
Reclamar "reprograma o cérebro e é prejudicial à saúde", disse Travis Bradberry, coautor de Inteligência Emocional 2.0. Segundo o especialista, o cérebro prefere a eficiência e opta por evitar trabalho desnecessário. "Repetir um comportamento como reclamar faz com que os neurônios se ramifiquem", indica, "tornando mais fácil que esse comportamento ocorra com o ato repetido, talvez sem que você perceba". O cérebro se adapta por meio da neuroplasticidade.
Outro estudo da Universidade Stanford mostra que reclamar reduz o tamanho do hipocampo (a estrutura cerebral localizada na face medial do lobo temporal). "A exposição a reclamar por 30 minutos por dia reduz o tamanho do hipocampo, cujas principais funções estão relacionadas à memória episódica de longo prazo (eventos pessoais) e à regulação emocional", explica Veiga.
Também afeta o processamento cognitivo e a aprendizagem, já que o hipocampo se conecta à amígdala, responsável pelo processamento emocional, e ao córtex pré-frontal. "Isso impacta a tomada de decisões com base em memórias e no tálamo, responsável pela recepção de sinais sensoriais", acrescenta.
Reclamar repetidamente reconfigura seu cérebro, aumentando a probabilidade de você reclamar novamente. "Com o tempo", acrescenta Bradberry, "você descobre que é mais fácil ser negativo do que positivo, independentemente do que esteja acontecendo ao seu redor. Reclamar se torna seu comportamento padrão."
O luto desencadeia outros tipos de efeitos no corpo. "Ele libera cortisol, o hormônio do estresse", diz Markham. "Essa substância nos coloca em modo de luta ou fuga, desviando oxigênio, sangue e energia para lidar com o perigo sobre o qual está alertando", diz.
O excesso de cortisol a médio prazo enfraquece o sistema imunológico: aumenta o risco de depressão e prejudica a cognição, o que afeta a tomada de decisões e a resolução de problemas.
"Além disso, quando nos sentimos infelizes, a adrenalina é liberada", acrescenta Veiga, "o que aumenta a frequência cardíaca, a pressão arterial e a tensão muscular. A longo prazo, pode levar à insônia, ao enfraquecimento do sistema imunológico e ao risco cardiovascular."
Outro efeito prejudicial ocorre nos neurônios-espelho, "que inconscientemente replicam o humor das pessoas ao nosso redor", alerta Veiga. "Ouvir as queixas dos outros ativa as mesmas respostas fisiológicas."
A pessoa que reclama afeta a pessoa que ouve e, ao mesmo tempo, a interação entre quem reclama e quem ouve é recíproca. "A psicologia prevê que, se a queixa não for expressa de forma ameaçadora ou destrutiva, a pessoa que ouve geralmente será construtiva e solidária", explica Palavezzatti. "Mas se o conteúdo e a forma da queixa forem depreciativos, a pessoa que a recebe tenderá a responder com hostilidade."
O inconformista Calimero
Carlo Peroni (Perogatt) foi um quadrinista italiano que criou um personagem de galinha insatisfeita que se tornou um anime famoso. Nunca satisfeito com suas aventuras, ele se sente incompreendido e não para de reclamar. Foi daí que o psicanalista francês Saverio Tomasella tirou seu nome para definir a síndrome de Calimero. Ele afirma que, por trás das queixas, geralmente há sofrimento real, "uma necessidade emocional repetidamente ignorada", explica. Para ele, este é um fenômeno da nossa época, "típico de uma sociedade à beira da implosão", indica. "Muitas vezes, quem reclama excessivamente já sofreu injustiças anteriores e teme vivê-las novamente."
Todos nós reclamamos, mas aparentemente não da mesma forma. "Pessoas que são mais propensas a direcionar sua atenção para dentro, focadas em si mesmas, são mais propensas a reclamar", alerta Palavezzatti. "Estados emocionais como ansiedade e depressão podem nos levar a voltar nossa atenção para dentro. O mesmo acontece com o tédio e a dor física."
Alguns traços de personalidade também estão relacionados à reclamação. "O neuroticismo, uma tendência relativamente estável a responder com emoções negativas a ameaças, frustrações ou perdas, é outro fator associado à reclamação", acrescenta Palavezzatti. "Aqueles com maior neuroticismo tendem a reclamar mais." A amabilidade, por outro lado, produz o oposto: "Aqueles que são mais agradáveis reclamam menos", acrescenta.
De acordo com um estudo liderado por Evangelia Demerouti, especialista do Departamento de Ciências da Inovação da Universidade de Eindhoven, na Holanda, pessoas mais inteligentes reclamam menos. "Confirmamos que aqueles que expressaram sua raiva estavam com pior humor, sentiam menos satisfação e orgulho de seu trabalho e eram significativamente mais propensos a se sentir menos felizes e a experimentar menor autoestima", diz Demerouti. Eles atribuíram as causas ao fato de que reclamar de um evento negativo envolve vivenciá-lo duas vezes: quando aconteceu e ao revivê-lo na reclamação . Assim, eles confirmaram que aqueles que "desabafam sua raiva avaliando como farão melhor na próxima vez" se sentem menos frustrados com o evento em questão.
De fato, Daniel Goleman, o fundador do conceito de educação emocional , afirmou em Inteligência Emocional que uma das diferentes facetas desse valor é “a capacidade de expressar queixas em forma de crítica positiva”, o que hoje conhecemos como assertividade.
Demerouti descobriu que os reclamantes frequentemente preenchem uma ou mais destas condições: tendem a não deixar o passado para trás, tendem a assumir pouca responsabilidade pelos acontecimentos e transferi-los a terceiros , são atraídos pelo lado negativo das coisas, são inflexíveis, percebem-se confortáveis com o problema e não aceitam críticas positivas.
O lado iluminado da lua
“Reclamar pode ser tão negativo quanto positivo”, afirma Margot Bastin, especialista em relacionamentos da KU Leuven, na Bélgica, sacudindo algumas ideias. Para a pesquisadora, a chave é linguística. Ela acredita que algumas opções, como desabafar e resolver problemas, não devem ser incluídas no conceito de reclamação. “Uma reclamação prejudicial”, ressalta, “é aquela que nos leva a ruminar sobre um arrependimento. Mas, quando é a expressão consciente de algo e é possível desvendar seu propósito, pode ajudar a articulá-lo estrategicamente.”
Compartilhar o que nos incomoda de forma amigável e não ameaçadora facilita o recebimento do apoio necessário. "Transformar as reclamações em um caminho para resolver os problemas que nos causam esse incômodo transforma a reclamação em um caminho positivo para a ação", sugere Palavezzatti." Reconhecer o que pode ser mudado e o que não pode é outra maneira apropriada de canalizar a frustração. Nem tudo tem solução. Aceitação é positiva." Veiga acrescenta: "Se a reclamação for voltada para a mudança, ela fortalece os relacionamentos e promove a empatia." Permite a liberação emocional, contribui para a conexão social e estimula a busca por apoio.
Por outro lado, nunca reclamar é uma expressão de imaturidade emocional. "Fazer um esforço para nunca se sentir mal está associado a efeitos fisiológicos negativos", diz Bastin. "Identificar seus sentimentos e expressá-los sem deixar que se tornem o único assunto de conversa pode ajudar a reduzir o sofrimento que eles causam."
Quando você se liberta da rotina de reclamar como se estivesse respirando, você consegue se conectar com o aborrecimento ou a frustração, oferecer um caminho a eles sem cair em uma ladainha e perceber que, como disse Mario Benedetti, "sempre tem alguém pior", para colocar as coisas em perspectiva.
O que podemos fazer para parar de reclamar tanto?
- "Reclamar é permitido se for para expressar insatisfação e buscar uma solução. Isso nos aproxima de receber apoio e carinho e é o primeiro passo para resolver ou aceitar o que nos afeta", explica Carolina Palavezzatti.
- “Estar ciente de como isso pode afetar negativamente o próprio humor e o dos outros reduzirá a motivação para reclamar”, diz Natalie Biderman.
- "Transforme reclamações em ações concretas e evite generalizações negativas. A psicoterapia ajuda a identificar padrões disfuncionais e substituí-los por estratégias mais adaptativas ", diz Cristina Veiga.
- "Reconheça os seus próprios sentimentos e os dos outros. Quando alguém estiver chateado, tente demonstrar empatia", diz David Weil.
- “Para nos ajudar a sentir menos pena, também é uma boa ideia praticar a gratidão pelas coisas positivas que nos acontecem o máximo possível ”, diz Carolina Palavezzatti.
- “Reduza o tempo que você tem para reclamar. É difícil, mas você pode se permitir reclamar um certo número de vezes por dia ou reclamar apenas pela manhã, por exemplo”, sugere Laura Markham.
- “Quando você se deparar com um desafio, substitua a reclamação por um pedido de feedback construtivo de pessoas em quem você confia”, acrescenta Travis Bradberry.
- “Transforme reclamações em ações. Encontre soluções concretas. Pergunte a si mesmo: o que vou fazer a respeito?”, acrescenta Cristina Veiga.
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