
O impactante documentário sobre ocupações na Cisjordânia que ganhou o Oscar
Mallory Moench- Da BBC News
Um palestino e um israelense conversam em uma vila na Cisjordânia à noite.
Eles se perguntam em voz alta se o palestino Basel poderá visitar livremente a casa do israelense Yuval em Israel, se a vila de Basel obterá licenças de construção e se um dia terão estabilidade.
Por anos, os amigos têm filmado a destruição de casas, um poço e uma escola pelo exército israelense depois que uma ordem judicial declarou a comunidade de Basel ilegal. Eles dizem um ao outro que esperam mudar essa realidade.
Agora, esse filme ganhou um dos maiores prêmios do cinema internacional.
O filme Sem Chão ("No Other Land", no título em inglês) ganhou o Oscar de melhor documentário na premiação realizada por Hollywood no domingo (2/3).
A produção acompanha a luta por Masafer Yatta, uma comunidade de cerca de 20 vilas, e a amizade entre Basel Adra e o jornalista israelense Yuval Abraham.
No filme, Basel quase é detido após um protesto, seu pai é preso e um soldado atira no pescoço de um membro da comunidade enquanto confisca um gerador, levando à paralisia e morte do homem.
O discurso de aceitação foi um dos momentos mais abertamente políticos da premiação do Oscar.
O israelense Yuval Abraham disse que sua vida era muito diferente da de seu colega, o jornalista palestino Basel Adra.
"Quando olho para Basel, vejo meu irmão, mas somos desiguais", Abraham disse à plateia.
E continuou: "Há um caminho diferente, uma solução política, sem supremacia étnica, com direitos nacionais para ambos os nossos povos."
"E eu tenho que dizer, como estou aqui, a política externa neste país [Estados Unidos] está ajudando a bloquear esse caminho." O público aplaudiu.
Adra agradeceu à Academia pelo Oscar e disse que se tornou pai há dois meses.
"Espero que minha filha não tenha que viver a mesma vida que estou vivendo agora, sempre temendo a violência dos colonos, demolições de casas e deslocamentos forçados."
Ele disse que o filme refletia "a dura realidade que temos suportado por décadas".
Basel e Yuval criaram o filme junto com Hamdan Ballal e Rachel Szor ao longo de cinco anos.
'Amanhã vai ser um novo dia'
O debate sobre Masafer Yatta começou na década de 1980, quando Israel declarou a área uma zona militar fechada, o que significa que ninguém tinha permissão para viver lá.
De acordo com notas de uma reunião de 1981, o então Ministro da Agricultura israelense Ariel Sharon ofereceu aos militares áreas de treinamento adicionais para restringir a "expansão dos moradores árabes das colinas em direção ao deserto".
Israel argumentou que os moradores não viviam lá permanentemente. A população palestina levou seu caso à Suprema Corte de Israel, argumentando que as comunidades viviam lá há gerações e apontando para um mapa de 1945 mostrando algumas aldeias.
Em 2022, a Suprema Corte decidiu a favor de Israel e permitiu a demolição de casas e a expulsão de mais de mil moradores.
Cenas do documentário premiado com o Oscar mostram uma escavadeira destruindo uma escola primária, um caminhão despejando lama em um poço e máquinas esmagando uma casa enquanto os moradores enfrentam o exército.
Uma menina chora, e quando perguntam à mãe se ela tem outro lugar para ir, ela diz: "Não temos outra terra".
O documentário também registra momentos humanos íntimos, como quando a mãe, que se muda para uma caverna, beija a filha e lhe diz: "Você é meu amor... Amanhã será um novo dia."

O documentário explora a amizade de Basel e Yuval. Embora tenham quase a mesma idade e compartilhem valores semelhantes, a desigualdade está sempre presente entre eles.
Enquanto Yuval pode viajar livremente em Israel e na Cisjordânia, Basel não pode viajar para Israel sem uma autorização, como parte do que diz serem medidas de segurança.
No filme, Basel lamenta que, embora tenha estudado direito, só conseguiu encontrar trabalho na construção civil em Israel e, quando pensa muito sobre isso, sente "uma enorme depressão".
O filme não foge da tensão criada pela identidade de Yuval, com um palestino perguntando a ele: "Como podemos continuar amigos, quando você vem aqui, e pode ser seu irmão ou amigo que destruiu minha casa?"
Yuval disse à BBC que se sentia "responsável pelo que está acontecendo com a comunidade de Basel" porque "no final das contas, o combustível nas escavadeiras é meu dinheiro de impostos".
No ano passado, Yuval enfrentou uma reação negativa por seu discurso de aceitação do prêmio de melhor documentário no Festival de Cinema de Berlim, ao lado de Basel, no qual ele criticou uma "situação de apartheid" e pediu um cessar-fogo em Gaza.
O cineasta americano Ben Russell, que estava presente e usava um cachecol keffiyeh palestino, disse que Yuval se opôs ao "genocídio" em Gaza. Israel nega veementemente a acusação de genocídio.
Mas a ministra da Cultura alemã Claudia Roth disse que as declarações no Festival de Cinema foram "chocantemente unilaterais e caracterizadas por um profundo ódio a Israel". E o prefeito de Berlim Kai Wegner postou nas redes sociais que o discurso foi uma "relativização intolerável" e que "o antissemitismo não tem lugar em Berlim".
A emissora pública de Israel chamou os comentários de Yuval de antissemitas.
Yuval, que afirma ter recebido ameaças de morte, disse à BBC que estava "muito furioso" com o rótulo, que está sendo "esvaziando de significado em um momento em que o antissemitismo está crescendo na direita e na esquerda".
Ele disse que era "absurdo" ouvir críticas como essa, sendo que a maior parte de sua família foi morta no Holocausto. Ele diz que aprender com essa história "deveria nos dizer para lutar contra a desumanização... não importa quem seja a vítima".
Apesar de ganhar vários prêmios internacionais, Sem Chão não encontrou um distribuidor oficial nos EUA — algo raro para um documentário que foi indicado ao Oscar.

Uma das últimas cenas do filme é de 13 de outubro de 2023, quando Basel gravou um colono atirando em seu primo — cujas mãos parecem vazias — no estômago. Em outras filmagens, colonos atiram pedras em casas enquanto soldados assistem.
As Forças de Defesa de Israel (IDF) disseram que o caso do tiroteio foi transferido para o gabinete do procurador do Estado, que a BBC abordou.
Atualmente em Masafer Yatta, Basel disse que os colonos têm "poder ilimitado" e há um "nível diário de assédio".
Ele disse que houve três grandes ataques de colonos em janeiro, incluindo um homem de 72 anos levado ao hospital após ser atingido na cabeça com pedaços de pau, e cerca de 15 pessoas presas nos dois dias antes de 30 de janeiro enquanto pastoreavam suas ovelhas ou afugentavam as ovelhas dos colonos.
A Polícia de Israel não respondeu a um pedido de comentário da BBC.
O Reino Unido sancionou três postos avançados de colonos e quatro organizações que, segundo ele, estão apoiando a violência contra as comunidades da Cisjordânia. Yuval pediu ao Reino Unido que sancionasse todos os colonos.
Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido disse à BBC que o secretário das Relações Exteriores "foi claro com os ministros israelenses que eles devem reprimir a violência dos colonos e acabar com a expansão dos assentamentos".
"Nós tomamos medidas regularmente contra a violência dos colonos, inclusive por meio de sanções direcionadas, e continuaremos a fazer tudo o que pudermos para garantir que os direitos dos palestinos sejam protegidos e que os responsáveis pela violência sejam responsabilizados", dizia a declaração.
"Eu realmente acredito que não há outro caminho a seguir, a não ser chegar a uma solução política justa e imparcial, onde os palestinos possam ser livres, verdadeiramente livres, e nosso povo, ambos, tenham segurança e autodeterminação", afirmou Yuval.
"Isso realmente me deixa irado, não apenas que meu governo esteja indo para o outro lado, mas que o mundo esteja permitindo que isso aconteça por tanto tempo."
No filme, Basel relembra uma visita de sete minutos do ex-premiê britânico Tony Blair à sua aldeia — após a qual Israel cancelou as ordens de demolição lá.
"Esta é uma história sobre poder", ele diz.
Agora, Basel obtém "força e poder das pessoas ao meu redor".
"Uma gota d'água não faz a mudança", ele diz durante um protesto no filme, "mas continue jogando a água e ela fará a mudança".
Conflito Israel-Hamas
Questionado sobre o homem que ficou paralisado, o exército israelense disse que fez uma investigação e não encontrou nenhum crime. Um porta-voz disse que durante uma operação contra "construção ilegal", dois palestinos agarraram um soldado pela arma e colete, levando ao tiro.
Testemunhas oculares palestinas disseram à mídia israelense que não foram contatadas como parte da investigação inicial e acreditam que o tiro tenha sido disparado intencionalmente.
Israel ocupa a Cisjordânia desde 1967. Os assentamentos israelenses no território são considerados ilegais sob a lei internacional, embora Israel conteste isso. Eles se expandiram nos últimos 55 anos, tornando-se um ponto focal de violência e reivindicações conflitantes sobre terras.
Em 7 de outubro de 2023, o Hamas atacou Israel, matando cerca de 1,2 mil pessoas e fazendo 251 reféns. Isso desencadeou uma campanha militar israelense que matou pelo menos 47,5 mil pessoas em Gaza, de acordo com o Ministério da Saúde administrado pelo Hamas.
Desde então, a violência relacionada a colonos na Cisjordânia aumentou, com 13 palestinos mortos por colonos, segundo a ONU.
Mais de 850 palestinos, muitos deles militantes, foram mortos por tropas israelenses na Cisjordânia no mesmo período, diz o Ministério da Saúde palestino. A ONU diz que 30 israelenses foram mortos por palestinos na Cisjordânia durante esse período.
Em 2024, a ONU registrou cerca de 1.420 incidentes de violência de colonos israelenses — o maior número que supostamente levou a vítimas, danos materiais ou ambos, desde que os registros começaram em 2006.
Ataques adicionais a palestinos vêm ocorrendo desde o retorno do presidente dos EUA, Donald Trump, ao poder, disse Basel, e os cineastas temem que isso possa piorar.
Fonte:https://www.bbc.com/portuguese/articles/czje41zw0jvo
Comentários
Postar um comentário