MACONHA: À MEDIDA QUE O USO CRESCE NOS EUA, AS DOENÇAS PSIQUIÁTRICAS ENTRE JOVENS TAMBÉM AUMENTAM, COMPROVAM MÉDICOS
Maconha: à
medida que o uso cresce nos EUA, as doenças psiquiátricas entre jovens também
aumentam, comprovam médicos
Legal em grande parte do país, a droga
é amplamente vista como não viciante e segura. Para jovens em especial as
suposições são perigosamente erradas
Por
Megan Twohey
,
Danielle Ivory
e
Carson Kessler
, Em The New
York Times
09/10/2024 04h30 Atualizado há uma
semana
Do estado de Washington à Virgínia Ocidental, psiquiatras tratam um número crescente de pessoas cujo uso de drogas provocava delírios, paranóia e outros sintomas de psicose. Nas salas de emergência de pequenos hospitais comunitários e grandes centros médicos acadêmicos, médicos encontram pacientes com vômitos graves induzidos por essa substância — uma condição ambiental devastadora que antes era rara, mas que agora, segundo eles, é comum. "Esses pacientes parecem tão doentes", opina um médico em Ohio, que os descreve como estivessem “se contorcendo de dor”.
À medida que a legalização da maconha se acelera em todo o país, profissionais da saúde lidam com os efeitos de uma explosão no uso da droga e sua intensidade. Uma indústria de 33 bilhões de dólares se distribuiu, produzindo uma gama cada vez maior de produtos à base de cannabis, tão intoxicantes que pouco lembram a maconha disponível há uma geração. Dezenas de milhões de americanos usam a substância, para fins médicos ou recreativos — a maioria deles sem problemas.
Mas, com mais pessoas consumindo cannabis mais potente com mais frequência, um número crescente, principalmente usuários casuais, está enfrentando sérias consequências à saúde.
Os danos acumulados são mais amplos e severos do que relatado anteriormente. As lacunas nas regulamentações estaduais, mensagens limitadas de saúde pública e restrições federais à pesquisa deixaram muitos consumidores, funcionários do governo e até profissionais médicos às escuras sobre esses estágios.
Repetidamente, o The New York Times encontrou equívocos perigosos.
Muitos usuários acreditam, por exemplo, que as pessoas não podem se tornar viciadas em cannabis. Mas milhões se tornarão.
Cerca de 18 milhões de indivíduos — quase um terço de todos os usuários com 18 anos ou mais — já relataram sintomas de transtorno pelo uso de cannabis, de acordo com estimativas de uma análise de dados realizada apenas para o Times por um epidemiologista da Universidade de Columbia. Isso significa que você continuará a usar drogas, apesar dos efeitos negativos que ela pode trazer à suas vidas. Desses, cerca de três milhões são considerados viciados.
As estimativas são fundamentadas nas respostas ao levantamento nacional sobre o uso de drogas dos EUA de 2022 de pessoas que relataram qualquer consumo de cannabis no ano anterior. Os resultados são especialmente alarmantes entre jovens de 18 a 25 anos: mais de 4,5 milhões usam a droga diariamente ou quase diariamente, segundo as estimativas, e 81% desses usuários atendem aos critérios para o transtorno.
— Significa que quase todos que a usam diariamente estão relatando problemas — observa Wilson Compton, diretor-adjunto do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas, que não participou da análise. — Esse é um sinal de alerta muito claro.
A maconha é conhecida por aliviar náuseas. Mas, para alguns usuários, tem o efeito oposto.
Jennifer Macaluso, uma cabeleireira em Elgin, em Illinois, recorreu à droga aos 40 anos, quando um médico sugeriu o uso para ajudar com suas enxaquecas graves. A partir de 2019, sempre que sentia uma dor de cabeça se aproximando, ela usava um vaporizador de maconha e consumia um comestível de um dispensário de cannabis medicinal. Funcionou.
Mas, após vários meses, ela desenvolveu dores de estômago. Um funcionário do dispensário aconselhou-a a aumentar a dose, e eventualmente ela passou a usar a droga quase todos os dias. Dentro de meses, surgiram episódios de náusea e vômito tão debilitantes que ela teve que parar de trabalhar.
Cerca de uma dúzia de médicos diagnosticaram incorretamente o problema. Um removeu sua vesícula biliar, além de seus implantes mamários. Vários atribuíram os sintomas à menopausa.
Após pesquisar online em 2022, Macaluso suspeitou que tinha síndrome de hiperêmese canabinoide, uma condição causada pelo uso intenso de cannabis e marcada por náusea, vômito e dor. Pode levar a desidratação extrema, convulsões, insuficiência renal e parada cardíaca. Em casos raros, causa mortes — pelo menos oito nos Estados Unidos, incluindo algumas recentemente identificadas pelo Times.
Desde que a síndrome foi documentada pela primeira vez em 2004, os médicos disseram ter observado um aumento acentuado nos casos. Como não é registrado de forma consistente em prontuários médicos, a condição é quase impossível de rastrear com precisão. Mas pesquisadores estimam que até um terço dos usuários de cannabis (que a consomem quase diariamente) nos Estados Unidos podem ter sintomas da síndrome, variando de níveis mais leves a severos. Isso equivale a cerca de seis milhões de pessoas.
Eventualmente, um novo médico confirmou o diagnóstico de Macaluso, ao obervar que novos casos estavam surgindo toda semana.
— Fui brava por os médicos não terem percebido e por eu ter sofrido tanto — declara Macaluso, que continuou usando a droga por acreditar "que estava ajudando”.
Enquanto isso, à medida que mais pessoas recorrem à maconha para ajudar com ansiedade, depressão e outros problemas de saúde mental, poucos sabemos que ela pode causar psicose temporária e está cada vez mais associada ao desenvolvimento de transtornos psicóticos crônicos.
Lauren Moran, psiquiatra do Hospital McLean em Belmont, em Massachusetts, é uma das médicas que mais se depara com casos de esquizofrenia que acreditam estar ligados ao uso de cannabis. Ela disse enfatizar aos pacientes que “a maconha é uma substância benigna para a maioria das pessoas, mas também é um fator de risco”.
— O fato de você estar aqui mostra que provavelmente não é benigno para você. — orienta.
Para avaliar os riscos à saúde do uso de cannabis, o Times examina prontuários médicos e dados de saúde pública e seguros; revisou pesquisas científicas; e entrevistou mais de 200 autoridades de saúde, médicos, reguladores e consumidores. Os repórteres também pesquisaram mais de 200 médicos em cerca de meia dúzia de especialidades e quase 600 pessoas que sofrem de síndrome de hiperêmese canabinoide.
Alguns dos efeitos negativos foram relatados em estudos acadêmicos ou notícias nos últimos anos. Os dados e entrevistas revelaram não apenas novas e evidências de riscos à saúde, mas uma crescente preocupação entre profissionais da saúde e pesquisadores.
Em entrevistas, reconheceram que a maconha pode oferecer benefícios à saúde de certos pacientes. A maioria é a favor da legalização da droga. Porém muitos ficaram preocupados com lacunas significativas no conhecimento sobre os efeitos, na regulamentação do mercado comercial e na divulgação de riscos.
— A cannabis não deve ter carta branca como algo seguro porque é legal, ou seguro porque é natural. Na verdade, causa danos em vários dos meus pacientes — destada Scott Hadland, que supervisiona a medicina adolescente no Mass General for Children e é professor associado da Faculdade de Medicina de Harvard.
Quando os estados chegaram a legalizar a maconha há quase três décadas, inicialmente para uso médico, iniciaram um experimento de saúde pública não intencional. Vinte e quatro estados e o Distrito de Columbia agora também permitem o uso recreativo da droga, e após as medidas de votação deste outono na Flórida, Dakota do Sul e Dakota do Norte, pode ser legalizada em mais da metade do país. Internacionalmente, os Estados Unidos são uma exceção: apenas alguns países permitem tais vendas.
Todavia a cannabis permanece ilegal sob a lei federal e define como uma substância de controle rígida, o que dificultou a supervisão e o estudo científico. E os estados têm padrões adotados inconsistentes e outras regulamentações, descobertas pelo Times.
Apenas dois estados limitaram os níveis de THC, o componente intoxicante da planta, na maioria dos produtos de maconha recreativa vendidos em suas jurisdições. Apenas dez exigiram que os produtos venham com advertências de que a cannabis pode ser viciante. Menos ainda fizeram alertas sobre a síndrome de hiperêmese canabinoide ou psicose. Nenhum está monitorando — ou está preparado para avaliar — o escopo total dos desfechos de saúde.
— Não há outra "medicina" na história do nosso país onde seu médico diria: "Vá experimentar e me diga o que acontece” — critica Carrie Bearden, psicóloga clínica e neurocientista da Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Em 2017, as Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina publicaram uma revisão da pesquisa sobre os efeitos à saúde da cannabis e alertaram que a falta de informações baseadas em evidências representa um risco à saúde pública. No mês passado, a organização emitiu outro relatório, criticando as políticas desarticuladas de cannabis do país e pedindo uma ação urgente dos governos federais e estaduais.
Líder do relatório e neurologista, Yasmin Hurd pontua que o campo médico está ficando para trás em sua compreensão da droga, que está mudando rapidamente.
— Até que façamos pesquisas sobre a cannabis drasticamente transformada em todas as suas formas, acho que colocar-la sob a guarda-chuva de uma droga segura e legal é errada — alerta ela — Isso engano, no melhor dos casos, e perigoso, no pior.
Debilitante e Não Diagnosticada
Um sinal característico da Síndrome de Hiperêmese Canabinoide (SHC) é que o calor muitas vezes alivia temporariamente a náusea e o vômito. Centenas de pessoas relataram ao The Times, em entrevistas e respostas a questionários, que passaram horas em banhos quentes e chuveiros. Algumas se queimaram com água escaldante. Um adolescente se feriu ao pressionar seu corpo contra um carro quente, em um momento de desespero.
Os pesquisadores não sabem por que o calor acalma a síndrome, conhecida como SHC, nem por que certos usuários crônicos de maconha a desenvolvem e outros não. No entanto, o surgimento parece estar relacionado à maneira como a substância interage com o sistema endocanabinoide do corpo, uma rede de moléculas sinalizadoras e receptores que ajudam a regular funções vitais como sono, digestão e percepção da dor. Pessoas com sintomas severos frequentemente necessitam de atendimento de emergência.
Quando Kennon Heard, um médico de emergência do Hospital da Universidade do Colorado, em Aurora, ouviu falar da SHC. pela primeira vez, ficou surpreso. Durante a residência médica, na década de 1990, ele aprendeu que problemas relacionados à cannabis eram raramente vistos no pronto-socorro. Agora, relata que seu hospital trata pacientes com a síndrome todos os dias:
— Começamos a vê-la repetidamente.
Brittany Tayler, uma clínica geral e pediatra do Centro Médico Hurley, em Michigan, conta ver tantos pacientes com a síndrome que os membros da equipe comentam entre si: “Aqui vem mais um.”
Uma pesquisa de 2018 com pacientes do pronto-socorro do Hospital Bellevue, em Nova York, revelou que, entre os de 18 a 49 anos que relataram consumir cannabis pelo menos 20 vezes por mês, um terço atendia aos critérios para a síndrome. Com base nessas taxas, pesquisadores estimam que atualmente cerca de seis milhões de usuários diários de maconha nos Estados Unidos possam ter sintomas de SHC.
O surgimento da síndrome nas últimas duas décadas coincide com a expansão da legalização da maconha nos Estados Unidos.
Legisladores e eleitores começaram a legalizar a maconha medicinal estado por estado na década de 1990, movidos por testemunhos de pacientes com AIDS e câncer que relataram alívio em seu sofrimento, e por profissionais da saúde que descreviam seus efeitos terapêuticos.
O impulso subsequente para permitir o uso recreativo, particularmente em estados com tendência democrática, foi alimentado, em parte, pela crescente resistência a políticas que encarceravam pessoas — um número desproporcional delas negras — por pequenas infrações relacionadas à maconha. Os defensores também argumentaram que um mercado regulamentado seria mais seguro e geraria receita tributária.
A indústria comercial que se seguiu promoveu os produtos como benéficos, enquanto focava não em desenvolver usos médicos da maconha, mas em criar um efeito mais rápido e intenso.
A substância fumada na década de 1990, tipicamente contendo cerca de 5% de THC, foi transformada. As empresas lançaram vaporizadores discretos, comestíveis de ação rápida, cigarrilhas pré-enroladas infundidas com intensificadores de potência e concentrados com até 99% de THC. (Esses são diferentes dos concentrados de CBD, um componente não intoxicante da planta de cannabis, também considerado amplamente terapêutico e ganhou popularidade.)
O mercado comercial se expandiu ainda mais em 2018, quando o Congresso legalizou o cânhamo, uma planta de cannabis usada em produtos industriais, e, inadvertidamente, legalizou compostos derivados do cânhamo altamente intoxicantes, como o Delta-8 THC.
À medida que novos produtos surgiram — tanto em dispensários legais quanto no mercado ilícito — e os hospitais em todo o país testemunharam um aumento de casos de C.H.S., os pesquisadores pediram mensagens de saúde pública sobre a síndrome e mais educação para os profissionais médicos. No entanto, a conscientização foi lenta para se espalhar.
Um obstáculo é a falta de um código diagnóstico específico para a síndrome no sistema usado por prestadores de serviços de saúde nos Estados Unidos, o que tornou o rastreamento da condição desafiador.
Os códigos que existem não capturam precisamente todos os efeitos adversos da cannabis. Por exemplo, diagnósticos relacionados a ela aumentaram mais de 50% em todo o país entre 2016 e 2022 — de cerca de 341.000 pessoas para 522.000 — de acordo com dados do Instituto Health Care Cost sobre pacientes com menos de 65 anos com seguro pago pelo empregador. Mas esses números são quase certamente subestimativas, disse a organização.
A maioria dos estados que legalizaram a maconha não menciona SHC nos sites de saúde pública. E a indústria em geral não abordou a síndrome. Quando Alice Moon, 35 anos, uma proeminente vendedora de cannabis, foi diagnosticada em 2018, ela tentou educar colegas em conferências e em artigos publicados. As respostas variaram de desdenhosas a hostis, relembra ela.
— Recebi muito ódio — recorda. — Fui intimidada. Pessoas na indústria dizem que sou uma agente da Big Pharma.
A maioria das aproximadamente 600 pessoas com SHC que responderam à pesquisa do Times disseram também ser desacreditadas por colegas, amigos ou familiares, ou acusadas de tentar sabotar a legalização da maconha.
Muitos dos respondentes, que estão em um grupo de apoio no Facebook, disseram que começaram a consumir a droga na adolescência, para se automedicar por ansiedade ou depressão ou apenas para se divertir, e eventualmente escalaram para o uso de concentrados de THC ou outros produtos de alta potência várias vezes ao dia.
Assim como Macaluso, a cabeleireira, muitos relataram buscar ajuda médica por meses, até anos, antes de finalmente obter um diagnóstico correto. Alguns também passaram por cirurgias desnecessárias. Muitos disseram que se sentiram fracassados pelo sistema médico.
Mecca Irby começou a fumar maconha aos 15 anos. Logo, estava vaporizando concentrados com mais de 90% de THC várias vezes ao dia. Ela lutou contra ansiedade e depressão e achou que a droga “era capaz de me dar um pouco de paz”.
Mas no dia do seu 18º aniversário, a jovem acordou com uma terrível dor de estômago, começou a vomitar e não conseguiu parar. Dois dias seguidos, seu pai a levou a um hospital, onde foi estabilizada e mandada para casa sem um diagnóstico. Alguns meses depois, um médico em outro hospital lhe disse que ela tinha SHC, uma notícia difícil de aceitar.
— Isso me ajudou em tantas coisas, isso não pode ser algo que poderia potencialmente me matar — recorda ela, agora aos 19 anos e vivendo em Seattle.
Ela conseguiu fazer a única coisa que cura a síndrome: parar de usar cannabis. Mas nem todos conseguem.
Entre as fatalidades identificadas pelo Times estava Kevin Doohan, um eletricista de 37 anos na Califórnia, com uma noiva e uma filha pequena. Ele morreu em 2020 após viver com SHCpor uma década.
Ele parou de ir aos hospitais quando os sintomas apareciam porque não queria ficar longe de banhos quentes, segundo sua mãe, Kim Holdredge. No entanto, durante aquele último ciclo de doença, ao banhar-se e desmaiar, ele nunca acordou.
Holdredge disse que teve que explicar a SHC ao legista para que fosse corretamente listada como causa primária da morte.
— Eles nunca tinham ouvido falar disso — lamenta.
Nos últimos anos, a síndrome tem recebido crescente atenção no campo médico. Entre os que falam sobre isso está Ethan Russo, um neurologista em Vashon, em Washington, que ajudou a desenvolver um dos poucos medicamentos derivados da cannabis aprovados pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA e continua a pesquisar os benefícios terapêuticos da maconha.
— Passei a maior parte dos últimos 30 anos apoiando usos medicinais da cannabis — atesta ele. — No entanto, também falei sobre os danos e armadilhas da cannabis, especificamente a síndrome de hiperêmese canabinoide. É um problema sério e uma razão genuína para que algumas pessoas não devem usar.
"Como se Estivesse Possuído"
Sharon Levy, chefe de medicina de dependência no Hospital Infantil de Boston, teve um paciente que acreditava que cabides e tênis haviam ganhado vida. Luke Archibald, psiquiatra especializado em dependência na Dartmouth Health, em Lebanon, Nova Hampshire, tratou de um paciente que foi acusado de invasão de propriedade após seguir as instruções de voz
Muitos médicos afirmam ter visto um aumento no número de pacientes com psicose temporária induzida por cannabis — que pode durar horas, dias ou até meses. Embora seja mais comum entre consumidores mais jovens, pode afetar pessoas de todas as idades, sejam usuários frequentes ou de primeira viagem, e com ou sem histórico familiar ou outros fatores de risco para psicose.
Levy e outros profissionais também notaram um aumento em distúrbios psicóticos crônicos, como a esquizofrenia, na qual acreditam que a substância seja um fator contribuinte.
O uso de maconha pode afetar o desenvolvimento cerebral, especialmente durante o período crítico da adolescência até os 25 anos. Este também é o período em que os distúrbios psicóticos normalmente surgem, e há evidências crescentes que associam os dois. Pesquisas recentes mostram que quanto mais potente a cannabis, mais frequente for o consumo e quanto mais precoce for a idade de consumo, maior será o risco.
— Nem todo mundo que fuma cigarros desenvolve câncer de pulmão, e nem todo mundo que tem câncer de pulmão fumou cigarros — pontua D’Souza, professor da Faculdade de Medicina de Yale e psiquiatra do VA Connecticut Healthcare Systems. — Mas agora sabemos, após negar isso por muitas décadas, que a associação entre os dois é muito importante. O mesmo vale para a cannabis e a psicose.
Embora os distúrbios psicóticos crônicos sejam raros, afetando de 1 a 3 por cento da população, eles estão entre as doenças mentais mais debilitantes.
Um estudo em 11 locais na Europa descobriu que pessoas que consumiam regularmente maconha com pelo menos 10% de THC tinham quase cinco vezes mais chances de desenvolver um distúrbio psicótico em comparação com aquelas que nunca a usaram. Um trabalho em Ontário constatou que o risco de tê-lo era 11 vezes maior para usuários adolescentes em comparação com não usuários. E pesquisadores estimaram que até 30% dos casos de esquizofrenia entre homens na Dinamarca, com idades entre 21 e 30 anos, poderiam ser atribuídos ao transtorno por uso de cannabis.
— Não é claramente causal neste ponto, mas há muitos fatos conhecidos até agora sobre a relação — completa Bearden da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que liderou uma recente revisão sistemática de estudos sobre cannabis e psicose crônica.
Bearden, que supervisiona uma clínica para jovens de 12 a 25 anos em que a esquizofrenia começa a se manifestar, estima que, quando a clínica foi aberta há 20 anos, cerca de 10% dos pacientes usavam maconha regularmente. Agora, estima que quase 70% o fazem.
Eles lhe dizem que a cannabis os acalma e oferece alívio temporário. A especialista acredita que isso pode ser verdade, mas também que o uso intenso da droga está contribuindo para a doença subjacente e comprometendo o tratamento, uma perspectiva compartilhada por outros profissionais da área.
— Poderia dizer que essa pessoa nunca teria desenvolvido esses sintomas se não fosse pelo uso de cannabis? — pondera Bearden. — Não com certeza. Mas me sinto muito confiante em dizer de que não está ajudando, e provavelmente está piorando as coisas.
Javonte Hill confessou não ter ideia de que a droga estava ligada à psicose até fumar um baseado de flor de cannabis, em um dispensário em Denver, no ano passado. Hill, um veterano da Marinha de fala suave, havia sido diagnosticado com PTSD, ansiedade e depressão antes de deixar o serviço, mas não havia buscado tratamento. Sua namorada, Eva Zamora, usava maconha ocasionalmente e disse que era uma boa maneira de relaxar. Uma mordida de um comestível alguns dias antes o deixou agitado. Um funcionário do dispensário ofereceu outro produto, dizendo que seria mais relaxante.
Mas Hill rapidamente ficou sobrecarregado com pavor, paranoia e alucinações. Cerca de uma hora após o início do episódio psicótico, enquanto seus dois cães começaram a brigar, ele subiu as escadas, pegou sua arma e começou a atirar, feriu Zamora e matou um dos animais.
— Era como se a realidade estivesse se dissolvendo diante de mim. Estava vendo representações do diabo no inferno e demônios — recorda Hill, de 33 anos.
Ele foi diagnosticado com alucinações induzidas por drogas, segundo os registros médicos, e está em liberdade condicional após se declarar culpado de crueldade animal e acusações de agressão. Está processando a cadeia de dispensários, ao alegar não ter sido advertido sobre o risco de psicose.
Alyssa Houlihan também não estava ciente do risco quando começou a vaporizar cannabis como estudante do ensino médio em Southbury, em Conn. A mãe, Lisa Ross, não estava preocupada. Ela se lembrava de fumar baseados em sua juventude e achava que a droga não representava perigo para sua filha, uma aluna nota A e jogadora de vôlei.
Mas em 2019, no início do terceiro ano, Houlihan perdeu o contato com a realidade. Ela começou a ouvir vozes e foi consumida por outras ilusões. Levou quatro meses em um hospital para estabilizá-la, e mais 18 meses para se recuperar completamente.
Quando um psiquiatra sugeriu que a cannabis havia causado seus sintomas, a família ficou devastada. Houlihan, agora aos 23 anos e estudante de enfermagem, não experimentou mais psicose.
— Isso me roubou meus anos de adolescência. — confessa ela.
Não conseguem comer, não conseguem dormir, não conseguem se concentrar
Mesmo sem psicose ou síndrome de hipermese canabinoide (SHC), a cannabis pode desestabilizar vidas.
Embora a droga possa ajudar o sistema endocanabinoide, aliviar alguns sintomas de doenças e fazer as pessoas se sentirem bem, doses regulares e altas podem desequilibrar o corpo. As pessoas precisam aumentar o uso para obter o mesmo efeito. E parar pode causar ansiedade, depressão e outros sinais de abstinência.
— Você não quer desligar o sistema que controla seu bem-estar — explica Bonni Goldstein, que dirige uma prática de cannabis medicinal em Los Angeles.
Nathanael Katz, 21 anos, está entre centenas de usuários que variam de adolescentes a pessoas na casa dos 70 que relataram ao The Times ter lutado contra o vício na substância. Ele começou a usar maconha aos 12 anos, quando um primo lhe deu um baseado em uma reunião familiar. Aos 13, consumia o dia todo, todos os dias, alternando entre baseados e vaporizadores, que podia usar sem ser notado na escola, em Manhattan.
Por um tempo, ele gostou de como a maconha aliviava sua ansiedade. Sentia-se mais relaxado em sala de aula e ao conversar com garotas. Mas, à medida que sua tolerância crescia e o uso aumentava, começou a se sentir mais ansioso e introvertido. Era difícil se concentrar na lição de casa, e ele não conseguia dormir ou comer sem cannabis.
— Foi aí que eu realmente soube que era um problema, porque pensava: "não gosto de como isso me faz sentir. Mas continuava fazendo constantemente — confessa Katz.
Ele eventualmente usou opioides e acabou em reabilitação. Agora, estando 14 meses sóbrio, ele orienta adolescentes que buscam parar com as drogas.
As pessoas são consideradas com transtorno por uso de cannabis se atenderem a dois dos 11 critérios, que incluem desejo pela droga, aumento da tolerância e continuidade do uso, mesmo quando interfere no trabalho e nas atividades sociais. Aqueles que atendem a seis critérios são considerados viciados.
No ano passado, a Pesquisa Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde do governo federal descobriu que a taxa de transtorno por uso da substância entre pessoas de 18 a 25 anos era de 16,6%. Essa taxa alcançou a de transtorno por uso de álcool, que é de 15,1%.
— É um ponto de virada realmente significativo — avalia Deborah Hasin, professora de epidemiologia na Universidade de Columbia, que realizou uma análise única de outros dados da pesquisa para o Times.
Os jovens de 12 a 17 anos não mostraram aumentos notáveis no uso de cannabis na pesquisa, mas a taxa de transtorno por uso de cannabis está aumentando e é maior do que àquela por uso de álcool (5% contra 3%). Assim como o álcool, a maconha recreativa é ilegal para aqueles com menos de 21 anos.
Deb Hagler, pediatra que trabalha com uma comunidade majoritariamente rural no Maine, vê adolescentes e jovens adultos cujo uso crônico os faz perder marcos de desenvolvimento importantes, como obter uma carteira de motorista ou ter um emprego — “todas essas pequenas falhas de lançamento”, descreve ela.
Parar de usar maconha pode ser difícil. Pessoas com SHC normalmente enfrentam as maiores dificuldades, incluindo dor física semelhante à abstinência de drogas mais pesadas. Outras também têm dificuldade para comer, dormir e "funcionar" sem ela. Aqueles que recorreram à substância para ajudar a aliviar a ansiedade ou a depressão descobrem que esses problemas subjacentes pioram a princípio sem a cannabis.
Enquanto usuários de opioides podem obter algum alívio com medicamentos para ajudar a interromper o vício, não há drogas aprovadas pela F.D.A. para ajudar as pessoas a parar de usar maconha.
Ziva Cooper, diretora do Centro de Cannabis e Canabinoides da U.C.L.A., está buscando financiamento para estudar a abstinência dos concentrados de THC, cada vez mais populares. Pesquisas anteriores sobre abstinência foram feitos com cannabis contendo 3 a 7% de THC, tornando-os significativamente desatualizados.
— O que estamos discutindo agora, o que as pessoas estão usando, é uma coisa completamente diferente — sugere a profissional.
"As Pessoas Precisam Saber"
Em seu longo e complicado relacionamento com a maconha, os Estados Unidos, em momentos, elogiaram e temeram a droga, reverenciaram sua descolação, prenderam aqueles que a vendiam e adverteram as crianças a dizer não.
Agora, estado por estado, nesta nova era da cannabis, um número crescente de médicos e consumidores diz que há uma necessidade urgente de equilibrar o fácil acesso legal à droga com uma melhor proteção para o público.
Alguns esforços estão em andamento. A administração Biden, por exemplo, está buscando mover a cannabis para uma categoria de drogas menos restritiva, o que permitiria mais pesquisas sobre seus benefícios e riscos à saúde. E uma lei federal que entrou em vigor no ano passado visa facilitar outras barreiras ao estudo científico.
Alguns grupos de especialidades médicas estão emitindo diretrizes para tratar doenças relacionadas à cannabis. E o C.D.C. afirma que há planos para implementar um código diagnóstico distinto para a síndrome de hipermese canabinoide no final do próximo ano, o que poderia ajudar a determinar a extensão de tais casos.
Ainda assim, muitas pessoas entrevistadas ou pesquisadas pelo Times disseram que muito mais é necessário para identificar, acompanhar e abordar os danos.
— Nós, como cientistas, fizemos um trabalho muito ruim em educar o público em geral — afirma Dr. D’Souza, psiquiatra de Yale.
Macaluso, a cabeleireira em Illinois, disse que se soubesse que a cannabis poderia causar tanto sofrimento, não teria continuado a usar a droga depois que seus sintomas começaram — quanto mais aumentar seu consumo.
— Meu maior ponto é: as pessoas precisam saber. — faz um apelo: — Elas precisam ser avisadas.
Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/10/09/maconha-a-medida-que-o-uso-cresce-nos-eua-as-doencas-psiquiatricas-entre-jovens-tambem-aumentam-comprovam-medicos.ghtml?mrfhud=true
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