Numa das áreas
de maior aridez e calor do Brasil, Serra das Almas regenera frondosa e colorida
Na divisa entre o Ceará e o Piauí,
jardim suspenso do sertão serve de lar a animais como a onça-parda, ao jacaré
sertanejo alpinista e ao raro tatu-bola
Por Ana Lúcia Azevedo —
Crateús (CE)
01/01/2023 05h01 Atualizado há um ano
Um lugar cujo nome alude à morte espalha a vida numa das áreas de maior aridez e calor do Brasil. A Serra das Almas se ergue no sertão onde Ceará e Piauí se encontram. Jardim suspenso do sertão, ela abriga uma floresta de árvores altas e frondosas, cuja copa inunda de verde o horizonte e serve de lar a animais como a onça-parda e ao raro tatu-bola.
Há rios e nascentes que não desaparecem nem sob a seca mais severa. Nuvens de borboletas brancas e amarelas fervilham nas trilhas e se reúnem numa cachoeira. Mais que um éden, é privilégio no Semiárido, lembrado como lugar de galhos secos e terra rachada.
Serra das Almas regenera
A floresta das Almas parece fruto de encanto. Mas não se trata de milagre ou magia. Brotou do trabalho. Ali, a ação humana e da natureza restauraram uma caatinga que desafia o imaginário coletivo e o nome, que significa mata branca tupi, em alusão à cor dos troncos na seca.
A floresta é uma experiência que já dá literais sementes em outros sertões e sopra o vento da regeneração, a palavra-chave do meio ambiente num tempo de mudança climática.
— A caatinga arbórea é pouco conhecida e está desaparecendo por pressão de desmatamento e do clima. Quando se fala em extinção no Brasil se pensa em Amazônia, mas a Caatinga é muito mais ameaçada, não existe nada com mais urgência. A Serra das Almas é a área de maior biodiversidade do Ceará e uma das mais ricas do Nordeste. Precisamos de mais lugares assim — destaca Hugo Fernandes-Ferreira, coordenador da Lista Vermelha de Espécies em Extinção do Ceará e professor da Universidade Estadual do Ceará.
A Reserva Natural Serra das Almas (RNSA) foi criada há 22 anos, após a compra de dez fazendas e hoje é coordenada pela Associação Caatinga, uma ONG criada para preservar o bioma. A reserva particular e aberta à visitação tem 6.285 hectares, mas a associação tem trabalhado para a criação de outras unidades de conservação (UCs) públicas e privadas, formando um corredor verde no meio do sertão.
Algumas das UCs são pequenas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), com menos de 5 hectares, em Piauí e Ceará. Outras, parques estaduais e a Área de Proteção Ambiental (APA) Boqueirão do Poti com 63.332 hectares, em três municípios do Ceará (Crateús, Poranga e Ipaporanga).
— As UCs foram criadas a partir da articulação e estudos realizados pela Associação Caatinga. Estas áreas são estratégicas para formação de corredores ecológicos e ampliação do esforço de proteção da biodiversidade presente na Serra das Almas. Todas as unidades de conservação têm potencial para o ecoturismo e inclusão de comunidades rurais no processo, gerando oportunidades de geração de renda — afirma Daniel Fernandes, coordenador da Associação Caatinga.
As áreas protegidas e recuperadas produzem água, o recurso mais crucial numa região sob a marca da seca. O Rio Melancias, um riacho cuja origem do nome se perdeu no tempo, não chega a mais de um metro de largura, a água bate nos joelhos.
Cercado de jatobás, cajazeiras, ingazeiras dentre outras é o coração da serra e de um ambiente abrigado do sol que ferve em outras bandas. Reúne colibris, gaturamos, saíras, galos da campina e uma miríade de outras aves. Em suas margens bebem pacas, veados, tatu, gatos selvagens.
Ele segue por cerca de dez quilômetros por florestas, forma cachoeiras até se unir ao bem maior Rio Poti. O Melancias verte água o ano todo. É fonte de vida. Pequeno nas medidas, é um Amazonas em importância numa região seca.
As florestas das almas ainda absorvem e estocam carbono. Cada hectare acima do solo estoca 91 toneladas de CO2. No total, são 563 mil toneladas de CO2 ou a emissão de 350 mil habitantes de uma cidade como São Paulo em um ano.
O coordenador técnico da Associação Caatinga, Samuel Portela, explica que esse volume deve ser ainda maior porque a maior parte da biomassa da Caatinga está sob o solo em raízes profundas e isso ainda não foi totalmente medido.
— A mata de Caatinga é um sorvedouro importante de carbono e tem sido ignorado. É um potencial a mais para uma região que precisa de renda — salienta Portela.
A Serra das Almas se eleva a mais de 750 metros sobre a vasta planície sertaneja entre os municípios de Crateús (CE) e Buriti dos Montes (PI). É refúgio de 230 espécies de aves, 33 de anfíbios e 45 de mamíferos. Chama a atenção a relativa abundância da jaguatirica, um felino selvagem escasso em outras áreas. Há 45 espécies de répteis. Biólogos já registraram lá inclusive jacarés.
— É um mistério. Mas tem jacaré no sertão — conta Marcos Marques, guarda-parque que um dia já foi caçador e hoje dedica a vida a proteger os animais. Conhecedor da região, ele se maravilha com a volta das onças-pardas depois que a reserva foi criada e a caça combatida e se intriga com o jacaré sertanejo alpinista.
Há orquídeas, bromélias, aroeiras, cedros, anjicos, essas três últimas espécies, árvores altas praticamente ausentes de outras partes devido à exploração de sua madeira nobre. Chamam a atenção gameleiras (figueiras) colossais, de mais de 40 metros _ uma delas, visível a quilômetros de distância.
A reserva abriga remanescentes de caatinga arbórea e de mata seca, ambos ecossistemas da Caatinga extremamente ameaçados e dos quais restam apenas algumas poucas “ilhas”, como a das Almas, em todo o Semiárido.
É uma obra em andamento, une a resiliência da natureza com a ciência e a persistência humanas. Há pouco mais de duas décadas, o destino da floresta arbórea de Caatinga _ o único dos biomas exclusivamente brasileiro _ remanescente na Serra das Almas parecia ser a mesma sina das pessoas que perderam a vida na serra e foram enterradas ali mesmo. Estava fadada ao desaparecimento. Sua madeira dia a dia virava lenha.
Com encostas íngremes, grandes blocos de rocha e sol sem clemência, a serra sempre foi um obstáculo formidável e custou a vida de muitos daqueles sertanejos que enfraquecidos por doença ou fome tentavam atravessá-la a pé ou carregados em lombo de animais e redes. Era tão dura a travessia que o lugar passou a remeter às almas dos caídos.
Com o avanço do desmatamento ao longo do século XX, não apenas os seres humanos, mas os animais e as plantas também se foram.
Com cerca de 844 mil quilômetros quadrados (10% do território brasileiro), a Caatinga se estende por nove estados. Dados do MapBiomas mostram que ela perdeu 10% da vegetação nativa de 1985 a 2021. O desmatamento é causado principalmente pela pecuária. Só no Ceará houve aumento de 320% das áreas de pastagens nesse período.
Com a criação da reserva, em 2000, as coisas mudaram na Serra das Almas. A mata remanescente pode se espalhar pelas áreas vizinhas. Em outras partes coube ao ser humano replantar a floresta.
Hoje, a associação mantém uma rede que inclui catadores de sementes nativas de 40 espécies, cultivadores de mudas, projetos e treinamento para a restauração. Estudos científicos também são apoiados. Tudo dentro do escopo do projeto No Clima da Caatinga, para enfrentar os efeitos das mudanças climáticas e patrocinado pelo programa Petrobras Socioambiental.
Mais de 40 comunidades do entorno da Serra das Almas já foram beneficiadas. Mas o caminho é longo até que as matas voltem a cobrir o sertão. Sementes não bastam, é preciso educação, enfatiza Daniel Fernandes.
A história do agricultor Raimundo Soares, de Crateús, exemplifica o motivo. Soares foi o primeiro agricultor a entrar no programa de restauração. Com a ajuda da associação, plantou 2.500 mudas em 2012. Hoje já tem uma florestinha e colhe os frutos _ literalmente. Sua mulher vende cajás nas feiras locais. Colhe água também. O riacho que havia secado não apenas voltou quanto ainda resiste, ainda que menor, na seca.
Mas os vizinhos de Soares ainda encaram com desconfiança semear o que para eles é mato. O desmatamento avança onde a falta de educação prolifera. E é por isso que uma das frentes do projeto é a educação ambiental, frisa Fernandes.
— Sonho em plantar cinco mil mudas. O triste é que sonho sozinho. Tem gente que mato dá cobra e mais nada. Pior, acham que a fumaça das queimadas é que faz chover. O povo precisa aprender que é o contrário. Queimar só traz coisa ruim — diz ele.
Este ano, com chuvas acima da média devido ao fenômeno da La Niña, o sertão ficou verde no auge da seca e aumentou a esperança. Choveu no dia de São José, 19 de março, sinal de muita água. Em 2023, os sertanejos esperam mais.
— Esperamos que em 2023 o sertão também fique bonito de chover — afirma Soares.
O canto da floresta
Na Serra das Almas, a última Lua cheia de 2022 começou a brilhar quando o entardecer ainda pintava o céu de rosa e o chão de areia e rocha, de azul. Como na letra do clássico “Luar do Sertão”, de Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), a Lua nasceu “por detrás da verde mata” e parecia “um sol de prata prateando a solidão”.
Mas não foram vozes humanas que se fizeram ecoar pela vastidão sob o luar. Quem cantava era uma das criaturas mais raras da Caatinga, que aos poucos começa a voltar a seu antigo habitat. Prova de que a floresta amadurece, se regenera e se cura.
A voz do guariba-da-caatinga ou guariba-de-mãos-ruivas (Alouatta ululata) tudo ocupa. Ora rugido, ora metálica, vem das profundezas do mundo selvagem. Os outros bichos se calam. O joão-corta-pau, um bacurau pequeno da Caatinga cujo nome é uma onamatopeia do som que produz, silencia. As corujas emudecem. Os grilos fazem acompanhamento, ao fundo.
— Estamos assistindo uma espécie reconquistar seu território. Ainda está bem no início, mas começou — afirma Robério Freire Filho, coordenador do Projeto Guariba e pós-doutorando da Universidade Federal do Piauí.
Freire Filho fez sua tese de doutorado justamente sobre a espécie, um dos macacos mais raros e ameaçados do Brasil. O guariba sertanejo vive no limite. Habita a copa das árvores. Normalmente, a seca que desfolha e tira seu alimento (folhas e frutos) e o sol que castiga já são desafios potencialmente letais. Mas a espécie enfrenta ainda o ser humano que a caça e desmata seu habitat.
O pesquisador conta que há uma relação delicada entre homens e macacos. Por um lado, algumas pessoas acreditam que o guariba dá sorte, que anuncia a chuva e traz boas novas. Por outro, sua carne ainda agrada muita gente, a despeito da proibição da caça.
Esse guariba soube se adaptar ao calor extremo e a longos períodos sem água, mas não tem defesa contra o desmatamento e a elevação das temperaturas já altas e do prolongamento da estação seca.
As últimas matas secas, como a da Almas, são sua esperança. Na reserva há dois grupos familiares, cada um com não mais que cinco macacos. Eles nascem loiros e vão escurecendo. Os machos são escuros com as extremidades ruivas e o flanco aloirado. As fêmeas são claras.
De tão tímidos, são como espíritos que cuja presença se sente, mas jamais se deixam ver.
— É pouco, mas é um começo. Ainda são extremamente desconfiados da presença humana, impossíveis de observar. Os vemos apenas nas imagens de armadilhas fotográficas. Mas um dia, esperamos que essas vozes se tornem comuns e encham o sertão, e que eles se mostrem sem medo — enfatiza o cientista.
A repórter viajou a convite da Associação Caatinga e do programa Petrobras Socioambiental
Fonte:https://oglobo.globo.com/brasil/meio-ambiente/noticia/2023/01/numa-das-areas-de-maior-aridez-e-calor-do-pais-serra-das-almas-regenera-frondosa-e-colorida.ghtml
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