'Comer donut
não vicia como as drogas', diz pesquisador do Instituto Nacional
de Saúde dos EUA
Pesquisador afirma que consumo de
milkshake não repete efeito das drogas no sistema de recompensa do cérebro;
outras análises são necessárias para entender porque esse tipo de alimento
causa calorias em excesso
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— São Paulo
05/07/2024 05h06 Atualizado há 21
horas
A cartilha para levar a saúde com mais equilíbrio conta com algumas máximas bem conhecidas (e que funcionam). Está lá a boa noite de sono, o consumo de água ao longo de todo dia, a agenda de exercícios e, claro, a predileção por alimentos frescos aos industrializados. Especialistas, contudo, se debruçam sobre uma classe totalmente fora do que se convém como bem-estar, os ultraprocessados, para compreender seus malefícios no organismo — e assim poder, no futuro, criar alimentos cujo efeito no organismo seja menos nocivo.
Um dos maiores especialistas no tema, o pesquisador Kevin Hall ligado ao Instituto Nacional de Diabetes e Doenças Digestivas e Renais, ligado ao Instituto Nacional de Saúde, nos Estados Unidos, e que esteve no Brasil para o Congresso Internacional de Obesidade (ICO 2024), têm se dedicado intensamente a compreender o que os efeitos de alimentos altamente processados, como um milkshake gorduroso e açucarado, causam no nosso corpo. Sabe-se, por um lado, que comer ultraprocessados em larga escala aumenta o volume de calorias consumidas em um dia, por outro lado, um novo estudo ainda preliminar sugere que, diferente do que se acreditava, esse tipo de alimento não afeta o sistema de recompensa do cérebro. "Não estou dizendo que os ultraprocessados não causam vício, mas por essa via que reconhecemos no uso de drogas não acontece", afirmou em sua palestra.
O especialista falou sobre o que se sabe dessa categoria de alimentos e, garante que, ainda estamos longe de compreender plenamente o mecanismo de funcionamento desses alimentos ‘fabricados’ em nosso organismo.
Os alimentos ultraprocessados são viciantes?
Houve a crença de que a combinação de açúcar e gordura possivelmente aumentariam os níveis de dopamina no mecanismo de recompensa do cérebro. Já foram feitos estudos em que, após o uso de cocaína, metanfetamina e heroína, por exemplo, há um grande aumento de dopamina nesse mesmo sistema. Isso, porém, não foi estudado com ultraprocessados com alto índice de açúcar e gordura. Por meio do mesmo mecanismo em que se estuda o uso de drogas, a tomografia por emissão de pósitrons (PET), estudamos a reação de 50 pessoas, e a ideia é que se a dopamina subisse (mediante o consumo de um milkshake composto de açúcar e gordura), teríamos indicativo. O impressionante é que, com os ultraprocessados, não vimos esses efeitos. Essa é uma narrativa que as pessoas repetem há anos e anos.
É outro mecanismo…
Nosso estudo demonstra que não é isso que acontece, é um efeito de dopamina muito menor do que as drogas. Essa ideia de que os ultraprocessados são tão viciantes quanto as drogas não parece bem sustentada pelos estudos.
Parece uma boa notícia, não?
As pessoas não deveriam achar que o donut que elas comem de manhã são tão viciantes quanto a heroína, o que é uma narrativa comum. Estamos explorando, estamos gerando, talvez tornar o milkshake (do estudo) ainda mais prazeroso. Mas acho que você está certa, é uma boa notícia. O milkshake que contém gordura e açúcar refinado não causa a mesma resposta no organismo que causa as drogas viciantes. Pode causar alguma resposta, mas abaixo do detectável.
Qual foi a mais recente descoberta que tivemos em relação aos ultraprocessados?
Descobrimos, em 2019, que pessoas tendem a consumir calorias em excesso quando uma grande quantidade de suas dietas é composta por alimentos ultraprocessados. A grande questão é: por que isso acontece? Então, no estudo, nós combinamos nos dois grupos os nutrientes necessários, além de açúcar, fibras, sódio, entre outros componentes. Orientamos as pessoas que elas comessem o tão pouco quisessem, mas não era um estudo para ganho de peso. E por algum motivo, as pessoas que tinham a dieta composta 80% por ultraprocessados comeram 500 calorias a mais por dia. E quando olhávamos para o grupo que comia 80% de alimentos minimamente processados eles naturalmente perdiam peso.
E então vocês voltaram ao tema?
Publicamos um trabalho em 2023 onde tentamos descobrir quais as propriedades das refeições que poderiam prever quantas calorias a pessoa iria comer (considerando a quantidade). Há alguns caminhos. O maior impulsionador parece ser a quantidade de calorias que há por grama de cada alimento naquela refeição, excluindo as bebidas. Alimentos ultraprocessados tendem a ter mais calorias por grama pois têm muita extração de água de seus componentes, para fazê-los durar, e então há mais calorias concentradas. Um outro elemento é que mesmo combinando carboidratos, sal, açúcar, gordura e macronutrientes pode ultrapassar um limite que uma pesquisa recente chamou de “hiperpalatáveis”, o que motivaria o consumo de mais calorias. Por fim, tem a velocidade em que as pessoas comem, quanto mais rápido há a maior tendência de consumir mais calorias. Há um estudo em andamento agora em que estamos reformulando a dieta com ultraprocessados. Ainda teremos um grupo com 80% da alimentação composta por ultraprocessados, ainda combinando macronutrientes, açúcar e sódio e fibras. Mas diferente do estudo em que tínhamos pessoas comendo alimentos com alto grau de processamento e que eram compostas de alimentos hiperpalatáveis e com muita concentração de calorias por grama, vamos fazer uma sem alimentos hiperpalatáveis e com baixa concentração calórica. A ideia é tentar descobrir o mecanismo no corpo.
E o que buscam entender?
A ideia é entender se é possível fazer refeições que não induzam ao consumo excessivo. Estamos no meio desse estudo.
Há alimentos que se dizem ricos em fibras e outros nutrientes mesmo sendo ultraprocessados. Mas ser ultraprocessado não quer dizer que a comida será ruim para a saúde de qualquer jeito?
Não penso assim. Não pelo menos para países como os Estados Unidos onde 60% das calorias consumidas vêm de alimentos ultraprocessados. Acho que não é tudo igualmente ruim. Claro, há opções que realmente são ruins e levam ao consumo excessivo, deveríamos prestar atenção nisso. Há algumas que são neutras, não causam tantos efeitos. Há algumas categorias que são as maiores causadoras dos efeitos (nocivos), as carnes processadas, por exemplo. Mas há os pães integrais, também processados, que parecem ir em uma direção mais saudável.
Pode explicar melhor?
Os ultraprocessados são uma categoria muito grande de alimentos. A questão é se podemos usar o que aprendemos sobre nutrição para se aplicar a essa categoria. Claro, há os grandes aditivos e preservadores, mas também grãos integrais ricos em fibras, baixo teor de gordura saturada e de açúcar. Temos que estudar profundamente quais são os mecanismos dos alimentos ultraprocessados. Podemos identificar quais são esses alimentos ruins? Mesmo que seja para legislar sobre o tema. Ou para recriá-los, sem esses mecanismos ruins. São muitas opções. Mas as coisas, por exemplo, podem ser diferentes no Brasil, onde estima-se que 20% das calorias vêm desse tipo de alimento, muito diferente dos EUA.
Vamos falar brevemente sobre obesidade? Os médicos levantam muito a importância do aspecto hereditário para falar sobre o sobrepeso. Mas qual é o papel da dieta no aumento do sobrepeso que estamos vendo globalmente?
A genética é o que vai determinar sua susceptibilidade para as mudanças no ambiente. Então há pessoas que têm a combinação certa de genes, e devem ter milhares que contribuem para o aumento de peso, acho que há pessoas que estão mais suscetíveis às mudanças no ambiente. Há todo tipo de coisas que estão mudando (menor exercício físico, maior consumo de alimentos calóricos) e algumas pessoas têm sido muito suscetíveis, talvez a alguns aspectos, outras a outros fatores, e é por isso que vimos a distribuição do IMC mudando para cima nos últimos anos. Isso quer dizer que as pessoas menos suscetíveis mudaram um pouco. Enquanto as mais suscetíveis, que poderiam ter peso normal há 100 anos, encontram-se em posição bem diferente agora.
Como as famílias deveriam lidar com os ultraprocessados dentro de suas casas?
No Brasil as coisas são bem diferentes, pois a fatia de mercado é menor, cerca de 20%. Mas como vivo nos Estados Unidos, escolho bem quais desses alimentos são potencialmente são mais saudáveis para mim. Com baixo teor de açúcar, gordura saturada e sódio.
É curioso, no Brasil os restaurantes de fast food estão localizados em áreas mais nobres na cidade e não em lugares de menor renda, como nos EUA…
Nos Estados Unidos contamos com esses restaurantes em áreas nobres também. Sabe, meu filho tem uma tradição de ir almoçar no McDonald 's a cada três treinos de futebol americano que ele faz. E há muitas famílias no mesmo restaurante fazendo o mesmo, muitas famílias. Claro, isso é uma coisa anedótica que estou te contando, mas não vejo muitas pessoas com obesidade ali, talvez seja por um estigma.
O senhor não é um radical. Vê um pequeno espaço para essa comida industrializada?
Não sei dizer nem se é pequeno. Se realmente entendemos o real mecanismo dessa comida, mas se sabemos de tudo que o corpo precisa, como promover a satisfação, não vejo problema para que essa comida seja ultraprocessada. Claro, ainda não estamos nenhum pouco perto disso nesse momento. Há muito ainda o que aprender.
Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/07/05/os-ultraprocessados-podem-nao-ser-viciantes-como-se-acredita-diz-especialista-do-instituto-nacional-de-saude-dos-eua.ghtml
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