A Pseudo-espiritualidade do Rudra “Osho”
Muito foi falado sobre o ótimo documentário a respeito da comuna da seita de “Osho” no Óregon. Pouco, no entanto, foi falado de um ponto de vista budista ou tântrico.
Há muitos professores que soam budistas, mas que ensinam visões errôneas1 de acordo com o darma. Há outros que apenas ensinam versões diluídas, que se tornam distrações perante o que poderia vir a se tornar uma prática coesa dos ensinamentos do Buda. O que também é uma grande infelicidade.
O recente documentário sobre o Osho/Rajneesh causou alguma controvérsia. Aqueles que veem qualidades nesse professor consideram que sua principal regente e administradora (Sheela2) infelizmente o traiu e causou uma série de confusões e crimes. Ele mesmo, para alguns, segue “perfeito”, pelo menos em letra. O documentário é bastante bem feito e imparcial. Porém, basta entender rudimentos do budismo para ver que o ensinamento de Osho3, mesmo sem entrar nas confusões e crimes perpetrados, sempre foi absolutamente incompatível com o que o Buda ensinou.
Há algumas semelhanças superficiais. Por exemplo, Osho é bom em copiar certa atitude radical e aparentemente transgressora dos ensinamentos budistas. (Que aliás, é de fato uma peculiaridade do budismo na Ásia, embora algo dessa atitude também ocorra no taoísmo.)
Isso, no entanto, não é novidade. Os transcendentalistas e o movimento Beat já vinham aplicando esse “marketing budista” do espírito independente por pelo menos 100 anos. E formas distorcidas de budismo com essa veia “revolucionária” ou “libertária” existiam desde que os românticos alemães se apropriaram do zen.4 Basicamente, tudo se resume a “azar o seu se minha liberdade e espiritualidade causam incômodo ou crise ambiental, ou se meu fedor de asa o incomoda, você que não está 'vivendo o momento'”. Espiritualidade como uma justificação para olhar de cima, aprontar o que quiser, e se sentir “meditador”.
Osho parece de fato ter criado um produto com o que sugou de várias tradições do subcontinente indiano, envenenando esse grude gosmento com o capitalismo mais básico, e o que quer que estivesse em voga na mente dos alunos a prospectar. Com que propósito ele fez isso? Difícil de dizer, mas provavelmente o de ser uma pessoa poderosa e viver bem, o que não é propriamente uma motivação espiritual.5 Pode até não ter sido sempre assim, ou mesmo não ter começado assim, mas é evidente que, pelo descontrole que se produziu na comunidade, algo bem podre era fomentado naquele reino. E possivelmente isso começava com o líder. Ou o líder só não tem responsabilidade quando as coisas dão errado? Quando está todo mundo em êxtase, a causa central é ele, quando há corrupção e violência, daí são os alunos que não entenderam nada?
A ideia central de que a espiritualidade pode existir em meio ao luxo e ao poder é efetivamente algo presente no tantra budista e hindu.6 No entanto essas tradições são embasadas não no capitalismo competitivo, mas numa forte base ética tradicional (da cultura mesmo)7 e em votos bastante estritos. Um grande professor budista já falecido costumava dizer que Osho foi um “quebrador de samaya” — isto é, alguém que rompe compromissos tântricos, a forma mais séria de compromisso. Uma quebra que leva ao pior resultado possível, a transformação num “Rudra”, ou uma forma petrificada do ego — ironicamente, uma forma extremamente arraigada de ego cheia de discurso espiritual sobre como “ir além do ego”.8 Isso não é algo incomum, de fato, o tantra é considerado um sistema perigoso e foi sempre abusado e mal utilizado por muitas pessoas.
Porém, segundo os ensinamentos genuínos, a pessoa não deveria nem beber da mesma água ou partilhar uma refeição, ou sentir o cheiro do perfume, de um quebrador de samaya, sobre o risco de prejudicar a própria prática, particularmente se a pessoa é um aspirante ao tantra. Normalmente esses cuidados, enfatizados o tempo todo por professores fidedignos, são ignorados por professores que querem angariar alunos rápido e simplesmente aumentar seus movimentos, provavelmente com objetivos mundanos. Tradicionalmente, o tantra era ensinado em grupos pequenos, e em segredo.9
Assim, quando você é um praticante do budismo, particularmente do budismo tibetano (que em sua totalidade tem raízes tântricas), e vê alguém defendendo o Osho, e você entende tanto o que o Osho fez quanto o que você pratica, você se afasta dali o mais rápido possível. Se você é um praticante do tantra, uma pessoa que defende o Osho é simplesmente um objeto de compaixão, e uma fonte de contaminação para sua prática. Você não entra em contato sem usar máscara de risco bioquímico, e talvez precise aquele macacão de proteção com que se trabalha com material radioativo! O que os tantras ensinam, literalmente, é que se você já tem uma prática, e houver um traço que seja de controvérsia com relação a um guru, você não deve se aproximar. O Kalachakra Tantra, por exemplo, diz que devemos evitar ao máximo os “gurus loucos”, que agem de qualquer jeito, e não seguem linhagem ou qualquer critério senão seus próprios hábitos mentais. Esse texto é bastante antigo, e portanto parece que esse tipo de professor falso sempre existiu. Guru Rinpoche, na verdade, disse que professores falsos são muito mais comuns do que professores verdadeiros, numa proporção maior do que vinte para um.
Para que se colocar em perigo dessa forma?
Ademais, Sua Santidade o Dalai Lama considera que o enfraquecimento da tradição budista na Índia, que levou a sua destruição em sucessivas invasões muçulmanas perto do ano 1000, se deve, espiritualmente, ao fato do tantra ter sido distorcido e ensinado muito abertamente, se tornando fonte de reprovação pública por parte do establishment tradicional muçulmano e hindu (não tântrico). É preciso repetir: o aspecto secreto do tantra é enfatizado por todos os professores genuínos.
Não é de surpreender, no entanto, considerando a operação de “tablóide de fofoca tântrica” que Osho operou, que o termo “tantra” tenha a conotação de “sexualidade espiritual” devido exatamente a esse movimento. Pergunte a qualquer pessoa ignorante e a palavra “tantra” estará ligada, top of mind, a anúncios de “massagistas com final feliz” e livros do Osho. Esse é o legado que ele deixou para o termo “tantra” em nossa cultura. Isso por si só é de uma degeneração sem fim, uma vez que, embora o tantra utilize mesmo forte simbolismo sexual (e de violência, e esse é um aspecto que Osho ignorou em seus livros — o que por si só, considerando tentativas de assassinatos e pessoas andando armadas em seus centros, pode facilmente mostrar que ele tomou o tantra errônea e literalmente também em outros sentidos, apenas não era popular falar sobre o assunto. Ele nunca escreveu a respeito.) — há muita teoria e prática desvinculada de violência e sexo, tanto no budismo quanto no hinduísmo. A maior parte da tradição tântrica não está obsessivamente focada nesses elementos.
Considerando isso, uma pessoa seriamente interessada no tantra acharia o que do Osho mesmo? Quem é, afinal de contas, o mestre de Osho? Qual é sua linhagem? Ele foi um professor de filosofia que se descobriu guru — sem nenhuma base social e tradicional que pudesse estabelecer os “controles de qualidade” necessários ao tantra. A maioria das pessoas que eu vejo defendendo Osho está envolvida no mesmo tipo de distorção dos ensinamentos tântricos em que ele mesmo se engajou. Provavelmente vendendo uns cursos duvidosos com um aspecto mal e mal semelhante ao, com algum detalhe que outro, tradicional. Provavelmente fazendo propaganda de uma suposta “independência” e “originalidade”, quando de fato apenas vende algo incerto, e mais provavelmente pior que isso. E, assim, tem que entrar num escafandro para chegar perto deles e não sentir o cheiro da quebra de samaya, e não prejudicar a própria prática. O maior cuidado é preciso.
O tantra não se resume a imagens ou simbolismo ligados a sexualidade e violência, mas o que fazer? Osho pisoteou o nome da tradição, alardeou os piores aspectos (ou pelo menos os mais secretos e mais difíceis de ensinar sem distorção) e os tornou senso-comum. E isso vai levar muito tempo para corrigir, se é que algum dia vai ser corrigido.
Sua Santidade o Dalai Lama ele mesmo é um professor tântrico, um dos maiores professores vivos do tantra. Você o vê promulgando sexo e armas por aí? Ou ensinando que os outros não importam, o que importa é você ser livre, com sua ideia de liberdade, passando por cima do que for?
Independente da motivação de Osho, no entanto, apenas ao analisar seus textos, o que vemos é uma espiritualidade, que como muita coisa no movimento de autoajuda, visa agradar hábitos e tendências do leitor. Ninguém lê um texto budista sem ficar desconfortável, porque sempre os ensinamentos apontam um descompasso entre o que acreditamos e o que é real. Porém, em Osho e na maioria da pseudo-espiritualidade e autoajuda, o que ocorre é uma confirmação de tudo que o leitor já acha — um mínimo denominador comum da espiritualidade de boteco média do clichê de maconheiro iletrado —, adicionado de algumas epifanias fabricadas, ao estilo de “puxa, eu não tinha pensado nisso”, mas que no fundo, era exatamente o que você sempre achou. Esse é o golpe desse tipo de livro, repetido vez após vez.
Qual o resultado? Pessoas justificadas em sua arrogância, como Sheela. Sheela não é um fenômeno bizarro ou extremo naquele ambiente. Ela estava usando o poder que Osho havia lhe outorgado, do jeito que Osho ensinava. Passe por cima dos outros. Ser canalha é o mesmo que ser espiritual. Ganhar dinheiro explorando os outros e gozar o sexo do jeito que for é sempre espiritual, nem pense duas vezes, vá em frente. Você é livre para dopar mendigos, e usar as pessoas como quiser, porque afinal de contas, você é uma espécie de super-homem nietzscheano espiritual. Ou pelo menos o “super-homem nietzschiano do leitor desavisado de Nietzsche”, que também é o mesmo leitor de Osho, diga-se de passagem — aquela pessoa sem cultura, sem critério, sem prática espiritual coerente.
Os meios justificam os fins, e os fins são você seguir no poder, gozando do bom e do melhor, cheio de gente ao redor achando você o máximo. E chamar isso de “iluminação”.
“Mas ele me levou ao darma” se ouve de alguns. Ora, mau carma seu ter começado por aí. Agora que você superou essa cachaça, não fique nisso.
Da mesma forma que outros divulgadores, talvez menos daninhos, como Eckhart Tolle, Jung, D. T. Suzuki, Krishnamurti, Alan Watts, (nenhum desses é tão ruim quanto o Osho, mas todos eles são no mínimo distrações perante o darma) está na ora de focar no darma mesmo, e não nessas tentativas distorcidas.
Temos professores genuínos, mais conteúdo fidedigno do que esses próprios autores puderam eles mesmos chegar a entrar em contato. Porque vamos ficar presos nessas tentativas fracassadas de entender o budismo? Ou pior ainda, em professores que deram tão evidentemente errado, como Osho?
1. ^ Visões errôneas são ideologias e ideias que levam a maior dificuldade na aplicação do treinamento da mente e a simplesmente mais sofrimento para si próprio e para os outros.
2. ^ Śīla, ironicamente, pronunciado “shila”, se traduz “ética” ou “moralidade” em sânscrito.
3. ^ Este título é concedido a grandes professores do Zen Budismo, e Osho apenas se autointitulou dessa forma, algo que não ocorre na tradição budista, onde títulos são sempre conferidos por outros mestres e pela comunidade, e não pela própria pessoa. Títulos conferidos pela própria pessoa a si mesma são, é óbvio, inerentemente fajutos.
4. ^ Há uma série de textos meus sobre o assunto.
5. ^ Sobre a motivação e perfil psicológico de “Osho”, o livro de Anthony Storr “Feet of Clay” (“Pés de Barro”) analisa algumas das estratégias de manipulação psicológica utilizadas por uma dúzia de professores falsos, incluindo ele, e é um livro que recomendo profundamente.
6. ^ Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche claramente diz que o problema de Osho não era os Rolls Royces, os relógios de ouro, a sexualidade, ou mesmo a transgressão da lei. Ele cuidadosamente, ainda que indiretamente, indica, porém, o fato de que havia um problema. “Tantra” se refere a um conjunto de tradições que existem no budismo e no hinduísmo, cuja “característica definidora” é o uso das aflições mentais como combustível no caminho espiritual. Assim, a raiva e o desejo (e o orgulho, a inveja) podem ser transmutadas e usadas, sempre com bastante cuidado, no contexto da prática espiritual. A condição essencial para o tantra (que se traduz como contínuo, linhagem) é uma tradição de alunos e gurus que remonte à própria fonte da sabedoria, o que em geral implica uma rede de professores que conferem controle de qualidade à prática e a não permitem degenerar. Professores “independentes” no tantra são, quando genuínos, extremamente raros, e de modo geral não haver clareza quanto a quem é o professor de um professor é o primeiro indício de que há um problema com ele. “Osho nunca menciona os próprios professores” (DJKR): uma linhagem que começa do nada, num homem, acaba também no mesmo homem — ou simplesmente continua nos alunos sob a forma de proliferação da neurose espiritual.
7. ^ Trungpa Rinpoche costumava dizer, do movimento Hare-Krishna (que é uma nova religião, ou hinduísmo modernista, mas que não se compara em termos morais ou de qualidade a um culto problemático como o de Osho), que o problema maior do hinduísmo no ocidente era a falta de raizes nativas, noção de comunidade e nação, ethos, etc. que permanecem a base do hinduísmo na Ásia. O hinduísmo veio muito tântrico, mesmo o movimento Hare-Krishna, e sem essas raízes tradicionais o tantra é inerentemente problemático.
8. ^ Rudra é um demônio que corporifica o apego ao eu. Segundo Khenpo Namdrol, há um tipo de rudra que é essencialmente um ser negativo, isto é, um ser tangível que nasceu numa forma maligna como resultado de compromissos tântricos quebrados em vidas passadas. Esse tipo de rudra geralmente está acompanhado por um séquito de outros seres malvados, e como grupo sua atividade principal é causar obstáculos para a propagação dos ensinamentos do tantra. Da Rigpa Wiki.
9. ^ Também, é fato, é um voto tântrico raiz não criticar gurus, sejam o que forem. Daí não se ver tanta indignação por parte da comunidade tântrica e do budismo tradicional quanto a Osho. É apenas quando se torna público e notório que alguém era apenas um criminoso (e não um guru) que podemos avisar, sem correr o risco de atacar um guru que simplesmente não entendemos. Entre os extremos de não criticar as ações de alguém como Jim Jones, e manter uma atitude não sectária e tolerante, existe também um caminho do meio. Após o documentário, por imparcial que tenha tentado ser, podemos enquanto budistas claramente assumir uma postura contrária, porque os fatos em torno da seita já são notórios na sociedade, e os que pensam diferente são apenas seguidores de fé cega que simplesmente ignoram qualquer objetividade. Explicitamente falando, Osho nunca foi budismo, nunca foi tantra confiável, mas podíamos evitar criticá-lo com base em algum exagero de tolerância, e em compromissos tântricos de não criticar o guru dos outros... agora não podemos assumir a postura de isentões e achar que Osho poderia ter sido um mahasiddha (um mestre genuíno mas com comportamento ultrajante) ou algo assim.
Fonte:https://tzal.org/a-pseudo-espiritualidade-do-rudra-osho/
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