'NADA SE COMPARA A REALIDADE, FOI ALGO DE OUTRO MUNDO', DIZ PESQUISADOR DE DESASTRES QUE AJUDOU RESGATES NO RIO GRANDE DO SUL-BRASIL

 Maurício Paixão, do IPH/UFRGS, participa de resgate das vítimas das enchentes

'Nada se compara com a realidade, foi algo de outro mundo', diz pesquisador de desastres que ajudou em resgates

Vivi para Contar: Maurício Paixão é do IPH/UFRGS e trabalha com monitoramento e prevenção de catástrofes; ele deixou o escritório e usou barco da universidade para salvar vidas

Por 

Lucas Altino

 — Rio de Janeiro

29/05/2024 04h31  Atualizado há 9 horas

Eu sempre trabalhei em campo, com monitoramento e prevenção de desastres. Nosso desejo é que no futuro cada região tenha seu próprio sistema de alerta, de acordo com as características locais, de vazão de rios e transporte de sedimentos. Quando começaram as notícias das enchentes, sabia que a gente precisava contribuir. Eu e alguns colegas articulamos com a direção do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) a liberação de barcos da instituição, normalmente usados para pesquisa e ensino.


Atuamos em resgates nos bairros mais atingidos de Porto Alegre e nas cidades de Eldorado do Sul e Guaíba. Foram pelo menos seis dias seguidos de resgate. Eu já tinha participado de treinamentos, em Kyoto, onde cursei parte do doutorado na área de desastres, e no Brasil. Mas nada se compara com viver a realidade, foi algo de outro mundo. Eram muitos perigos envolvidos, como cabos de luz que poderiam enroscar no motor. Num contexto de 2,5m de profundidade de água, às vezes batia no teto de um carro submerso. Era um medo constante, mas a gente sabia que precisava ajudar.

Alguns resgates foram muito dramáticos, como o caso de um senhor com suspeita de fratura na coluna. Ele estava no segundo andar da casa, mas a maca rígida não conseguia passar, então ele foi retirado pela janela. Um resgate de um casal ficou muito na minha memória. Entramos dentro de um condomínio e o casal gritou por ajuda. Quando entraram, choraram muito, o rapaz me deu um abraço muito emocionado e disse: "Ninguém mais estava passando por aqui, e eu e minha esposa estávamos rezando, pedindo para que alguém viesse. Quando acabamos de rezar, ouvimos a chegada de vocês. Foi Deus que mandou vocês". Isso fez o barco inteiro chorar.


Segurança era uma preocupação. Depois que passamos por uma loja de colchões que estava sendo saqueada, ouvimos tiros. A partir do terceiro dia, ia sempre alguém de força de segurança. A presença da polícia era importante também para o convencimento das pessoas a saírem de suas casas, pois se sentiam mais confortáveis.

Resgatamos mais de 200 pessoas, e muitos cachorros. Não existia um padrão, resgatamos as pessoas mais diversas possíveis, desde alunos da universidade a uma senhora com bolsa de colostomia, um senhor com perna quebrada e uma grávida de 9 meses. Passamos por casebres e casas maiores. Os resgatados eram levados até os portos improvisados em área seca, de onde saíam os barcos e onde havia equipe de voluntários, enfermeiros e médicos para atendimento inicial. Depois iam para abrigos ou outras casas.


Até tenho dificuldade em descrever meus sentimentos nos regates. Mas sentia que não podia de forma alguma ficar em casa. Eu, pelo meu treinamento, conseguia controlar e bloqueava as emoções durante os atendimentos. Mas quando baixava a adrenalina, em casa, vinha toda a carga emocional. A saúde mental tem que estar em dia, foi muito emocionante e exaustivo. Ao mesmo tempo, é gratificante conseguir salvar uma pessoa. A universidade está mobilizada, tem abrigo, monitoramento, estudos. Está dando um exemplo do quanto ela contribui e o quanto pode contribuir para a sociedade.

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