O QUE EXPLICA A RECENTE ONDA DE CENSURA A LIVROS NO BRASIL E NO MUNDO?

 Livro pegando fogo

O que explica a recente onda de censura a livros no Brasil e no mundo?

Guerra cultural tem causado banimento de obras clássicas e contemporâneas em vários países — inclusive no Brasil. Especialistas analisam as raízes dessa censura

Por Caio Delcolli, com edição de Luiza Monteiro

24/02/2024 11h12  Atualizado há 9 horas


No romance Fahrenheit 451 (1953), bombeiros não são encarregados de apagar incêndios — ao contrário: eles incendeiam livros. O enredo tem como pano de fundo um governo autoritário que quer coibir a disseminação de conhecimento. A obra do estadunidense Ray Bradbury é um romance distópico e, portanto, perturba o leitor ao tentar responder à pergunta “e se?”. E se fazer fogueiras de livros fosse uma política de Estado? O título, inclusive, é uma referência à temperatura em que o papel pega fogo (em Celsius, 233°C). Mas esse assombro não está apenas na ficção.


Assim como nazistas faziam na Alemanha cerca de 90 anos atrás, no auge da perseguição a intelectuais — uma das inspirações para Bradbury escrever Fahrenheit 451 —, há casos atuais de livros sendo literalmente queimados em praça pública.

Em 2023, no México, títulos didáticos foram incendiados por opositores à reforma educacional do governo do esquerdista Andrés Manuel López Obrador, também conhecido pela sigla AMLO. Influenciada pela “pedagogia do oprimido”, filosofia do pedagogo brasileiro Paulo Freire, a proposta da reforma é levar informação aos alunos pela ótica dos direitos humanos e do olhar crítico.

Mas vários opositores, inflamados por uma teoria conspiratória da direita mexicana de que a iniciativa teria o objetivo de tornar os estudantes “comunistas” e “homossexuais” — além de apontarem erros factuais em textos —, decidiram que queimar livros era a solução.

Já no Brasil e nos Estados Unidos, casos de banimentos a obras literárias não terminam necessariamente em uma pilha de cinzas, mas na retirada deles das prateleiras de bibliotecas de escolas públicas. Em novembro de 2023, o governo de Santa Catarina, liderado por Jorginho Mello (PL), mandou retirar nove livros de escolas públicas. Alguns deles são Laranja Mecânica (1962), de Anthony BurgessA Química entre Nós (2012), de Larry Young e Brian Alexander; e It: A Coisa (1986), de Stephen King.

O governo alegou que haveria a necessidade de adequar leituras a faixas etárias. O ofício pedia a retirada dos títulos e que eles fossem armazenados “em local não acessível à comunidade escolar.” O texto não argumenta a decisão. Em nota enviada a GALILEU, a Secretaria de Educação afirma que se trata de uma prática recorrente, em que livros disponíveis nas escolas são analisados e distribuídos de maneira compatível com diferentes idades e contextos educacionais. Não se trata de censura, diz a nota.

Em abril do mesmo ano, o romance Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (2005), de Marçal Aquino, foi retirado da lista de leituras requeridas no vestibular da Universidade de Rio Verde (UniRB), em Goiás, após o deputado bolsonarista Gustavo Gayer (PL) afirmar que o livro contém “absurdos pornográficos”. Em nota à imprensa, a UniRB afirmou ter optado pela “exclusão imediata” ao tomar ciência do conteúdo da obra.

Outros exemplos não faltam. Em 2019, a Bienal do Rio esteve no centro de um acontecimento do qual você talvez se lembre. O então prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), hoje deputado federal pelo RJ, mandou retirar do evento a história em quadrinhos Vingadores: Cruzada das Crianças (2012), que contém uma cena de beijo gay. A decisão foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Prefeituras sequer têm poder jurídico para isso. Representantes de Gayer e Crivella não responderam ao pedido de GALILEU por um posicionamento.

Para Richard Ovenden, autor de Queimando Livros (Globo Livros, 2022) e bibliotecário da Universidade de Oxford, na Inglaterra, esse cenário no Brasil, no México e nos Estados Unidos é, em parte, causado pela ascensão da extrema direita à presidência em vários países, como Donald Trump nos EUA (2016-2020) e Jair Bolsonaro no Brasil (2018-2022). “O autoritarismo por meio do controle de conhecimento e do subfinanciamento de bibliotecas públicas está intimamente ligado”, analisa Ovenden, em entrevista a GALILEU.

O governo Trump foi um período delicado para as bibliotecas públicas estadunidenses: elas passaram a ser boicotadas pelos orçamentos gestados pelo governo federal. E, sob a atual presidência do democrata Joe Biden, também por legisladores estaduais republicanos de estados como Louisiana, Iowa, Indiana e Tennessee, por exemplo. Segundo reportagem do site Vox, os parlamentares começam tentando banir livros e, quando não conseguem, boicotam os repasses de verbas. As ameaças tendem a acontecer nos estados em que legisladores também buscam restringir direitos de pessoas trans à saúde, performances de drag queens e discussões sobre gênero, sexualidade, raça e história nas escolas — os mesmos temas dos títulos perseguidos.

No Brasil, a realidade não é tão diferente. Perdemos ao menos 764 bibliotecas públicas entre 2015 e 2020, segundo o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) divulgou em 2022. Sob gestão da então existente Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, o SNBP afirmou que o número real poderia ser ainda maior em decorrência da extinção do Ministério da Cultura no governo Bolsonaro e da falta de controle efetivo pelos sistemas estaduais.

“As bibliotecas públicas em muitos municípios são um elo fundamental da cultura”, afirma Cibele Araújo, professora do curso de biblioteconomia da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em entrevista ao Jornal da USP em setembro de 2022. “Elas podem ter ações culturais muito importantes para a formação do indivíduo, para o desenvolvimento da sua cidadania.”

Guerra cultural

Durante a Reforma Protestante, na Europa do século 16, a disputa entre o catolicismo e o protestantismo causou, na Inglaterra e na Escócia, ataques a centenas de bibliotecas e a destruição de dezenas de milhares de livros. No Holocausto do século 20, foram destruídos mais de 100 milhões de volumes, e bibliotecas inteiras foram confiscadas e queimadas. São dois exemplos notórios dentre vários outros episódios históricos.

Registro de queima de livros na Alemanha, em 1933. — Foto: Getty Images
Registro de queima de livros na Alemanha, em 1933. — Foto: Getty Images

E o fogo segue crepitando. A PEN America — ONG fundada em 1922 que se define como “na intersecção da literatura e dos direitos humanos para proteger a livre expressão nos Estados Unidos e no mundo” — registrou em levantamento 3.362 ocorrências de banimentos de livros de salas de aula e bibliotecas de escolas públicas nos EUA, do ensino primário ao secundário, no ano letivo de julho de 2022 a junho de 2023.

Trata-se de um aumento de 33% em relação ao mesmo período de 2021 a 2022. As ocorrências somam 1.557 títulos e impactam o trabalho de 1.480 autores, ilustradores e tradutores. De acordo com a PEN, isso é fruto do empenho de dois atores políticos: grupos que, em termos numéricos, são minoritários, mas que se organizam entre si e assim fazem muito barulho; e a pressão legislativa.

A maior parte dos banimentos aconteceu na Flórida: em 33 escolas de seus distritos estaduais, foram registrados 1.406 casos. Já os estados do Texas e do Missouri tiveram 625 e 333 casos, respectivamente, enquanto Utah somou 281 e Pensilvânia, 186. Segundo o relatório, uma retórica exagerada e inverídica tem causado a remoção das obras das prateleiras.

Alguns exemplos de títulos na mira são O Conto da Aia (1985) e Os Testamentos (2019), de Margaret Atwood; Maus (1986), de Art SpiegelmanAmada (1987), de Toni Morrison1984 (1949), de George Orwell; Gênero Queer: Memórias (2019), de Maia Kobabe; Este Livro É Gay (2014), de Juno Dawson; O Sol É para Todos (1960), de Harper Lee; e, claro, Fahrenheit 451.

De acordo com dados da PEN, os temas mais perseguidos são violência e abuso (44%), saúde (38%), raça e racismo (30%) e LGBTQIA+ (26%). Sexo, saúde e gravidez também figuram na lista. A categoria young adult (jovens adultos) contabiliza 56% das ocorrências de banimentos. Entre as justificativas dadas para a retirada desses volumes das prateleiras estão: “pornô nas escolas”, “sexualmente explícito”, “nocivo” e “inapropriado para a faixa etária.

Os grupos que atuam para banir livros são anti-woke, ou seja, contra o discurso identitário hoje tão presente na esfera pública. A Flórida, por exemplo, governada pelo republicano Ron DeSantis, aprovou em 2022 a lei apelidada de Stop WOKE Act, sigla de Stop Wrongs to Our Kids and Employees Act (lei “Pare de Errar com Nossas Crianças e Funcionários”, em livre tradução), também conhecida como Individual Freedom Act (lei da liberdade individual).

A norma regula o teor de instruções e treinamento em escolas e locais de trabalho. Seu objetivo é proibir conteúdos que sugiram que raça, cor, sexo ou origem nacional sirvam de motivo para indivíduos se responsabilizarem ou se sentirem culpados, angustiados ou tenham qualquer forma de incômodo psicológico por causa de atos históricos de racismo.

A lei ainda proíbe que seja dito que indivíduos são “privilegiados” ou “oprimidos” por causa de sua raça ou sexo. Um dos alvos da Stop WOKE Act é a critical race theory (“teoria crítica da raça”), campo acadêmico que estuda os impactos da raça e da etnia na sociedade — não necessariamente culpando indivíduos, tendo-se em vista o aspecto sistêmico do racismo. O Moms for Liberty (Mães pela Liberdade), fundado na Flórida, é um exemplo de grupo que tem atuado para extinguir títulos literários — com apoio declarado de legisladores.

De acordo com Sabrina Baêta, coordenadora do programa Liberdade para Ler da PEN, trata-se de uma crise. Tudo começa, segundo ela, com pessoas — que podem ser pais, responsáveis ou simplesmente indivíduos da vizinhança — gritando em reuniões e tirando trechos dos livros de contexto. Pouco depois, os títulos são removidos das escolas.

A ironia é que existem mecanismos que poderiam impedir a situação de chegar a esse ponto, mas eles estão sendo ignorados. “Pode-se ter conversas com o professor, passar ao aluno uma tarefa paralela e usar formulários para você dizer se tem problema com algum livro”, afirma. “Um comitê de avaliação deve ser formado por professores, bibliotecários, pais, estudantes e diretores e, dessa maneira, decisões seriam tomadas a partir da leitura.”

"Há fortes similaridades com a destruição de livros na Berlim de 1933. É parte da guerra cultural em que há a remoção de ideias diversas da esfera pública"
— Richard Ovenden, autor de Queimando Livros (Globo Livros, 2022)

A avaliação dos livros acontece um a um, a cada determinado período de anos — então, se um título for banido, ele pode permanecer indisponível até a próxima avaliação acontecer. O medo de intimidação acaba motivando as escolas a se autocensurar, mesmo que com base em ideias vagas. Ninguém quer arranjar encrenca com o governo estadual, diz Baêta. “Nos EUA, vemos uma epidemia de controle autoritário e antidemocrático”, observa Ovenden. “Há fortes similaridades com a destruição de livros na Berlim de 1933. É parte da guerra cultural em que há a remoção de ideias diversas da esfera pública. Conhecimento é poder.”

Reescrevendo a história

Se tem quem queira banir livros, tem quem queira reescrevê-los. Com o objetivo de remover trechos que possam soar ofensivos para minorias, a prática da leitura sensível, que tem sido recorrente no mercado editorial nos últimos anos, também rendeu acusações de censura. Agatha Christie, Ian Fleming e Roald Dahl são exemplos de autores consagrados e já mortos cujas obras têm sido editadas após recomendações feitas por “profissionais da leitura sensível”. Basicamente, a prática consiste em identificar esses trechos e recomendar mudanças ao editor e ao autor, que podem ou não aceitá-las.

No Brasil, Monteiro Lobato é um dos nomes que frequentemente estão no centro de debates sobre mudanças em suas obras — no caso dele, sob acusações de racismo. A própria bisneta do autor, Cleo Monteiro Lobato, esteve à frente de mudanças na série Sítio do Pica-Pau Amarelo. A personagem Tia Nastácia, por exemplo, era chamada de “negra de estimação” pelo narrador de Reinações de Narizinho (1931). Após as edições, ela se tornou amiga de Dona Benta, em vez de empregada doméstica do sítio.

Nas ilustrações, passou a vestir roupas coloridas típicas da África. “Também sou a favor da leitura do texto original, com uso de notas de rodapé, prefácio e posfácio explicativo”, disse Cleo Lobato à revista Veja. “Assim, em vez de censurar, abrimos sua obra para debate.”

Já a psicóloga Ester Calland de Sousa Rosa, doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e professora na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), discorda. “Textos complementares podem ajudar o leitor a entender que a obra foi gerada em um certo contexto. Isso tira a força das histórias, por tirar o inconsciente, nossos medos, nosso eu mais complexo, as coisas que a gente não sabe nomear”, diz. Para Sabrina Baêta, da PEN America, a discussão é essencial. “É importante termos diálogos a respeito disso, e a crise de banimento de livros não quer o debate, quer apenas se livrar do material”, afirma.

Mas há também quem encare essas alterações como censura. A Constituição brasileira é muito clara: o artigo 220 veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística — e é o que deve sempre prevalecer nas decisões. No caso de livros, eles não recebem classificação etária, como filmes e programas de TV, mas ainda assim, um editor pode, por iniciativa própria, informar o conteúdo dele. “É uma questão de informação para o público”, avalia Gustavo Martins de Almeida, advogado do Sindicato Nacional dos Editores (Snel). “Acho bom informar para o consumidor o tipo de conteúdo [em uma obra]. Você compatibiliza a liberdade de expressão com o direito do consumidor à informação.”

“A literatura traduz valores, visões de mundo e de relações humanas. É um campo que também está em disputa”
— Ester Calland de Sousa Rosa, psicóloga e professora na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Já sobre o conteúdo dos livros, é importante lembrar que vivemos em uma sociedade complexa e a literatura não está apartada disso. “A literatura traduz valores, visões de mundo e de relações humanas. É um campo que também está em disputa”, analisa Rosa. Até poucos anos atrás, o entendimento sobre o cânone literário se restringia a autores principalmente homens e brancos, mas hoje se vê um empenho de trazer à tona obras escritas por mulheres, negros e indígenas, por exemplo. “A censura que vemos hoje talvez seja uma resposta a esse movimento entre os educadores e de quem trabalha com literatura. Mas a literatura por si só, como disse o [crítico literário] Antonio Candido, não edifica e nem corrompe.”

A psicóloga acrescenta, ainda, que os jovens não leem apenas para se identificar com a leitura e adotar comportamentos semelhantes ao dos personagens. Eles leem para imaginar realidades que não são exatamente a deles, em busca de possibilidades humanas. No caso de uma obra que trate de violência sexual, por exemplo, decidir usá-la em sala de aula para falar sobre o assunto não quer dizer que você esteja defendendo o crime.

“Você pode criar elementos para as crianças serem alertadas sobre isso não ser algo bom e até dar oportunidade, no ambiente protegido que a escola deveria ser, aos alunos que sofram violência sexual de conversar sobre isso”, observa. “Não conversar sobre o tema não faz com que a realidade deixe de existir.” Da mesma forma, banir obras literárias — com fogo ou com a lei — não é a solução para impor certos pontos de vista e extinguir outros. Já aprendemos isso nos livros de história.


Fonte:https://revistagalileu.globo.com/cultura/livros/noticia/2024/02/o-que-explica-a-recente-onda-de-censura-a-livros-no-brasil-e-no-mundo.ghtml

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