'JOSÉ SARAMAGO ERA ABSOLUTAMENTE FEMINISTA' DIZ PILAR DEL RIO VIÚVA DO NOBEL DA LITERATURA

 Pilar del Río e José Saramago em sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias

Pilar del Río: 'José Saramago era absolutamente feminista'

Viúva do Nobel de Literatura lança livro sobre o cotidiano do autor em Lanzarote, ilha onde eles se exilaram após tentativa de censura em Portugal

Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

04/09/2022 04h31  Atualizado há um ano


Certo dia, José Saramago provocou sua mulher, a jornalista espanhola Pilar del Río: “E se fôssemos morar em Lanzarote?” Era 1992, e o governo português ameaçava censurar “O evangelho segundo Jesus Cristo”, acusado de blasfêmia. Em Lanzarote, a mais oriental das Ilhas Canárias, arquipélago espanhol, onde viveu até a morte, em 2010, o único Nobel de Literatura lusófono escreveu obras-primas como “Ensaio sobre a cegueira” e recebeu visitas ilustres como o fotógrafo Sebastião Salgado, o cineasta Bernardo Bertolucci e María Kodama, viúva de Jorge Luis Borges, a quem ele perguntou como era o “amor” com o escritor argentino.


Presidente da Fundação José Saramago, Pilar costurou as recordações d’A Casa, como era chamada a residência canária dos dois, hoje convertida em museu, em “A intuição da ilha”, um dos lançamentos que marcam o centenário do escritor, comemorado em 16 de novembro deste ano. Em São Paulo, ela conversou com O GLOBO sobre o legado político do marido, o crescimento da extrema direita da Península Ibérica e por que devemos ser “Ensaio sobre a lucidez”, romance no qual a população vota em branco para protestar. E falou tudo isso em legítimo portunhol:

— Saramago me dizia: “Toda vez que tentas falar português, Portugal treme”.

O escritor português José Saramago, sua esposa, a jornalista espanhola Pilar del Río, e seus cachorros de estimação em Lanzarote, nas Ilhas Canárias — Foto: Fundação José Saramago
O escritor português José Saramago, sua esposa, a jornalista espanhola Pilar del Río, e seus cachorros de estimação em Lanzarote, nas Ilhas Canárias — Foto: Fundação José Saramago

Os romances de Saramago nasciam da pergunta “e se...?” E se todos ficássemos cegos? E se Jesus Cristo não fosse Deus? “A intuição da ilha" nasceu de um e se...?

É interessante pensar “e se...?” E se houvesse bondade onde há corrupção? E se fôssemos solidários? “A intuição da ilha” nasceu da proposta de Alba Cantón, que trabalha na Casa e fundou a magnífica editora Itineraria. Esse nome vem da epígrafe de “A viagem do elefante”, tirada do “Livro dos itinerários”, inventado por Saramago. Na tristeza da pandemia, ela me dizia: “Pilar, escreve sobre José, escreve sobre A Casa”.

Como Lanzarote influenciou a obra de Saramago?

Fomos para Lanzarote porque Saramago não queria conviver com a censura. A ilha não o isolou. Lá, ele pôde se conectar com o tempo e o universo inteiros. Sua obra se tornou menos portuguesa e mais universal. À ilha chegavam as vozes humanas, não o ruído social que dificultava seu trabalho em Lisboa, onde sempre havia um jantar para ir. Ele pôde respirar e escrever. No fundo, havia em Saramago um sentimento de ilha, uma vontade de navegar.

Escrito em Lanzarote, “Ensaio sobre a cegueira” ressurgiu durante a pandemia...

Reli “Ensaio sobre a cegueira” na pandemia. E li Machado de Assis com um grupo de amigas! Relendo “Ensaio sobre a cegueira”, senti muita compaixão por todos nós. Somos cegos que, vendo, não vemos. Provocamos a pandemia com nosso desrespeito ao meio ambiente e consumo voraz. A distopia de Saramago virou realidade. Em Madri, cadáveres eram empilhados em pistas de dança. Sobre o Brasil nem precisamos falar, né?

Como foi ler Machado na pandemia?

Maravilhoso! Nos esbaldamos com a ironia e a inteligência de Machado. Mas nem ele nem Jorge Amado conseguiriam inventar o Brasil de hoje, que não cabe na imaginação de nenhum escritor. Se algum autor escrevesse sobre a visita do coração em formol de um rei, o editor diria: “Dê-se ao respeito! Isso não é verossímil!”

Voltando a Saramago: depois da leitura pandêmica de “Ensaio sobre a cegueira”, o que ler para enfrentar o presente?

“Ensaio sobre a lucidez” é absolutamente urgente. Não acho que os brasileiros devam votar em branco. Quero ver milhões dizendo (bate no peito): “Este país é meu! Este povo é o meu povo! No meu país, ninguém vai passar fome! Quero outro Orçamento! Quero outra política!”

Este ano está sendo divulgada a “Carta universal de deveres e obrigações dos seres humanos”, inspirada no discurso de Saramago ao receber o Nobel de Literatura. Por que destacar o legado político do autor em seu centenário?

Nos romances de Saramago, há um desejo de liberdade, felicidade e harmonia. Em 1948, aprovou-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tais direitos vêm sendo sistematicamente violados em países signatários do documento. Saramago acreditava que talvez os direitos humanos fossem desrespeitados porque nós, cidadãos, permitimos isso ao não assumir nossos deveres. É nosso dever exigir que os governos cumpram nossos direitos a salários justos, moradia. O conceito de dever é progressista. Implica que somos nós os donos do poder e o exercemos ao votar e exigir que se cumpra o programa do governo que elegemos.

Embora Portugal e Espanha sejam governados pela esquerda, a extrema direita avança nos dois países. Em Portugal, crescem os episódios de xenofobia. Como você vê a situação?

Portugal e Espanha vieram de mais de 40 anos de ditadura fascista. Isso ficou no sangue de muita gente. As pessoas não se transformaram em outras no dia seguinte ao fim da ditadura. A extrema direita permaneceu calada, aguardando a oportunidade de emergir, que veio com a crise econômica. O fascismo e a xenofobia sempre existiram e foram sustentados por governos e pela Igreja. O fascismo é perigoso para os indivíduos e para a coletividade, como podemos ver aqui no Brasil. O fascismo mata, condena à ignorância e à pobreza, escraviza muitos para que uns poucos vivam bem.

Você é feminista. Saramago também era?

Antigamente, as mulheres não podiam ser artistas, escritoras ou governantes. Nosso único poder era o da observação. Saramago sabia disso e colocou em seus livros mulheres lúcidas: Blimunda (“Memorial do convento”) vê, a mulher do médico (“Ensaio sobre a cegueira”) vê, Maria Madalena (“O Evangelho segundo Jesus Cristo”) vê. Saramago era feminista. Falou sobre a indignidade dos homens que maltratam mulheres e que aqueles que não condenam a violência e não lutam pela igualdade são cúmplices. Era absolutamente feminista.

Qual mensagem as comemorações do centenário de Saramago pretendem transmitir?

Ler Saramago nos oferece ajuda, nos dá força, nos transmite energia. Ele é nosso contemporâneo. Em “Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas”, livro em que trabalhava quando morreu, ele escreveu que se fabricamos armas, temos que fabricar conflitos. Ninguém fabrica tantas armas para matar a si próprio ou a seus filhos, mas para matar os filhos dos outros. Gostaria de sublinhar isso.

Capa de "A intuição da ilha", livro de Pilar del Río, publicado pela Companhia das Letras — Foto: Divulgação
Capa de "A intuição da ilha", livro de Pilar del Río, publicado pela Companhia das Letras — Foto: Divulgação

Serviço:

“A intuição da ilha”

Autora: Pilar del Río. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 304, Preço: R$ 99,90.


Fonte:https://oglobo.globo.com/tudo-sobre/livro/noticia/2022/09/pilar-del-rio-jose-saramago-era-absolutamente-feminista.ghtml

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