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Dostoiévski, 200 anos: como o autor de 'Crime e castigo' conquistou o Brasil
Na pandemia, a artista plástica carioca Anna Carolina Albernaz, de 78 anos, foi acometida por uma “febre de eslavismo”, cujo principal sintoma é a leitura frenética de autores russos — em especial, de Fiódor Dostoiévski , cujo bicentenário de nascimento é comemorado na quinta-feira (11). Albernaz lera “Os irmãos Karamázov” na adolescência, mas passou as décadas seguintes distante dos russos.
No ano passado, começou a fazer cursos de literatura russa e não demorou a se apaixonar por Dostoiévski. Leu “Os demônios” e, em seguida, “Crime e castigo”, seu preferido até agora. Depois, enfrentou as quase 1.200 páginas de “Dostoiévski: um escritor em seu tempo”, de Joseph Frank. Comprou, pela internet, uma cópia em VHS do filme “O jogador”, dirigido pelo húngaro Károly Makk, e se encantou com a história de amor entre Dostoiévski e Anna Grigórievna, que ajudou o escritor, imerso em dívidas e jogatina, a concluir, em poucos dias, o romance que garantiria seu sustento.
— Não devia ser muito difícil se apaixonar por Dostoiévski. Mas quem me arrebatou mesmo foi Raskólnikov — conta Albernaz, em referência ao anti-herói de “Crime e castigo”. — Nas aulas, a gente até briga ( de brincadeira, é claro ), porque o fã-clube de Tolstói também é forte, mas eu não largo o meu Dostoiévski.
Importada da França, a febre de eslavismo contamina periodicamente os brasileiros desde os anos 1930. No livro “Dostoiévski na Rua do Ouvidor” (Edusp), Bruno Barreto Gomide identifica dois surtos de russofilia durante a Era Vargas. No primeiro, de 1930 a 1935, foram editados 63 livros russos (11 de Dostoévski). Na “segunda febre”, entre 1943 e 1945, saíram 83 obras russas (uma média de 3,5 por mês), sendo 17 de Dostoiévski.
Autor de “Como ler os russos” (Todavia), o tradutor Irineu Franco Perpetuo afirma que Dostoiévski esteve presente em momentos-chave de difusão da literatura russa no Brasil. Em 1935, foi publicado no país o primeiro livro sobre um autor russo: “Dostoiewski”, de Hamilton Nogueira. Em 1943, a José Olympio anunciou a “Coleção Dostoiévski”, a primeira dedicada a um autor estrangeiro, com traduções assinadas por escritores como Rachel de Queiroz e Lêdo Ivo. Em 1944, Boris Schnaiderman , o maior divulgador da literatura russa no Brasil, lançou, pela Vecchi, sua primeira tradução: “Os irmãos Karamázov”. Em 2001, Paulo Bezerra publicou, pela Editora 34, uma tradução de “Crime e castigo”, um dos primeiros sintomas da atual febre de eslavismo.
— Essa edição de “Crime e castigo” foi um marco. A partir daí, as traduções diretas do russo se tornaram obrigatórias — diz.
As primeiras traduções diretas do russo foram lançadas entre 1930 e 1932, pela Edição Cultura, do letão Georges Selzoff. Ele adaptava o texto russo para seu português de imigrante, e os escritores brasileiros retocavam a tradução. No entanto, o que imperava à época eram as traduções indiretas, feitas com base nas mal afamadas edições francesas. Segundo Fátima Bianchi, tradutora e professora da USP, os tradutores franceses (e, consequentemente, os brasileiros) embelezavam a prosa de Dostoiévski, “caracterizada por um aparente (mas intencional) mal acabamento estilístico”. Alguns chegavam a suprimir trechos muito filosóficos. Halpérine-Kaminsky se atreveu a formular um novo final para “Os irmãos Karamázov”. Na tradução afrancesada de “Crime e castigo” assinada por Rosário Fusco e publicada pela José Olympio, um personagem diz: “Mas creia-me, por quem é! Por que razão enganá-lo?, pergunto-lhe”. Já na tradução de Bezerra, lê-se: “Mas pode acreditar! E por que cargas-d’água eu iria esconder de você, quer fazer o favor de me dizer?”
Para o tradutor Paulo Bezerra, o maior desafio imposto aos tradutores são os diálogos. Dostoiévski deixa seus personagens falarem à vontade e de acordo com as idiossincrasias de seu meio social.
— No primeiro capítulo de “O idiota”, por exemplo, o epilético príncipe Míchkin faz um discurso muito empolgado. A fala vai ganhando uma rapidez alucinante, a sintaxe se torna descontínua, as palavras se atropelam. Ele quebra um vaso de estimação e depois tem um ataque de epilepsia. Manter o ritmo é um desafio para o tradutor — explica Bezerra.
O “Crime e castigo” traduzido por Bezerra já teve 24 reimpressões e é o livro russo mais vendido pela Editora 34, que, publicou toda a ficção de Dostoiévski: 24 volumes. Segundo o editor Danilo Hora, a publicação da obra completa de Dostoiévski no Brasil foi um “trabalho coletivo” que, em grande medida, partiu da iniciativa de tradutores. Para celebrar o bicentenário, a 34 lança três livros críticos sobre o autor: “O estilo de Dostoiévski”, de Nikolai Tchirkóv, “Dostoiévski: vida e obra”, de Konstantin Motchulski, e “Problemas da obra de Dostoiévski”, de Mikhail Bakhtin (redação original do clássico “Problemas da poética de Dostoiévski”). Tchirkóv mostra como o autor descreveu os problemas do desenvolvimento capitalista na Rússia do século XIX. Já Motchulski privilegia o Dostoiévski filósofo da religião.
Em seu estudo sobre a recepção de Dostoiévski na Era Vargas, Gomide mostra que o autor fez sucesso no Brasil polarizado dos anos 1930 e 1940 porque, diferentemente de Tolstói, mais associado à esquerda, agradava a todos: comunistas, nacionalistas e religiosos. Na juventude, Dostoiévski se enturmou com intelectuais revolucionários e foi condenado a trabalhos forçados na Sibéria, onde teve uma iluminação religiosa e se converteu em súdito fiel do czar e da Igreja Ortodoxa. Segundo Flávio Ricardo Vassoler, autor de “Dostoiévski e a dialética”, o russo lutou para conciliar as duas obsessões do século XIX: “o socialismo e a morte de Deus”. Dostoiévski, diz ele, condicionou as utopias sociais à reconciliação do homem com Deus.
— Para Dostoiévski, o socialismo ateu e o capitalismo eram galhos da mesma árvore — diz Vassoler.
Responsável por contaminar Anna Carolina Albernaz com a febre de eslavismo, o professor César Marins tenta dispersar a “névoa existencialista” que recobre a obra de Dostoiévski em seus cursos — ele é autor de perfis sobre literatura russa nas redes sociais. Nas aulas,ele mostra como Dostoiévski se inseria no debate que dividia a Rússia no século XIX: apostar numa modernização à europeia ou voltar-se sobre as próprias tradições?
— Embora fosse um moralista, ele soube diagnosticar muito bem as aberrações produzidas pela modernidade— diz.
Ex-operário e ex-militante comunista que estudou filologia na Universidade Lomonóssov, de Moscou, Bezerra afirma que Dostoiévski “escarafuncha mais fundo os desvãos da alma humana”.
— Dostoiévski dizia que o homem é um mistério que precisa ser decifrado. E acrescentava: “Eu me dedico a esse mistério porque quero ser um homem”. Por isso, continua atual. Porque o homem é esse ser em permanente construção, sempre volátil, sempre desafiando escritores e artistas.
Fonte:https://oglobo.globo.com/cultura/livros/dostoievski-200-anos-como-autor-de-crime-castigo-conquistou-brasil-1-25266128
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