FÓSSEIS ENCONTRADOS EM TANQUES DE PEDRA AJUDAM A RECONSTRUIR PASSADO DE ANIMAIS PRE-HISTÓRICOS NO NORDESTE


Tanques naturais de Itapipoca se revelaram verdadeiros depósitos de fósseis — Foto: Thiago Gaspar/SVM

Tanques naturais de Itapipoca se revelaram verdadeiros depósitos de fósseis — Foto: Thiago Gaspar/SVM

Fósseis encontrados em tanques de pedra ajudam a reconstituir passado de animais pré-históricos no Nordeste

Formações rochosas naturais, os tanques encontrados em Itapipoca são verdadeiras 'minas de ouro' para a paleontologia e trazem pistas sobre o passado do Nordeste.

Por Leonardo Igor, g1 CE

19/11/2023 04h31  Atualizado há 4 horas

Em 1961, um grupo de pesquisadores do Museu Nacional do Rio de Janeiro desembarcou em solo cearense e se dirigiu ao sítio paleontológico João Cativo, na zona rural do município de Itapipoca, a 130 quilômetros de Fortaleza. A expedição tinha o objetivo de descobrir o que vinham acumulando em seu interior, ao longo de milhares de anos, as depressões rochosas conhecidas como tanques naturais, que abundam em Itapipoca.

A resposta veio logo: lá dentro, os pesquisadores encontraram água, sedimentos e muitos fósseis. Nas décadas seguintes e até hoje, os tanques naturais da região se mostraram como uma das principais fontes de peças fossilíferas do estado.

    Além de uma mina de ouro para paleontólogos, os tanques naturais têm sido usados há décadas por habitantes como cisternas naturais, uma vez que, durante a quadra chuvosa, os tanques acumulam água e a preservam por meses a fio.

    Atualmente, já foram identificados mais de 100 tanques em Itapipoca e mais de 12 mil peças de fósseis - desde fósseis centimétricos até aqueles de grande porte - já foram extraídas por pesquisadores do Ceará.

    Entre os fósseis encontrados nos tanques naturais de Itapipoca, estão animais extintos como mastodonte, preguiça-gigante, tigre-dentes-de-sabre, cervo-gigante e toxodonte, um mamífero de casco de porte semelhante ao rinoceronte.

    São todos espécimes pertencentes à chamada megafauna, termo usado para denominar os animais de grandes proporções que habitaram a maior parte do planeta no período logo após a última era do gelo.

    Tanques naturais de Itapipoca se revelaram verdadeiros depósitos de fósseis — Foto: Thiago Gaspar/SVM

    Tanques naturais de Itapipoca se revelaram verdadeiros depósitos de fósseis — Foto: Thiago Gaspar/SVM

    O estudo dos fósseis recuperados, inclusive, já traz dados inéditos: alguns fósseis encontrados no município datam de 6 a 3,5 mil anos, considerado um período bastante recente em termos geológicos, o que indica que Itapipoca pode ter sido um dos últimos refúgios de megafauna nas Américas, conforme o paleontólogo Celso Ximenes, que conduz a pesquisa na região.

    “Aquela região de Itapipoca é especial porque a grande quantidade de tanques que tem ali concentrado propiciou um acúmulo de água por mais tempo. [...] Então os animais iam buscando água, precisam de água, e vão se concentrando ali, vão morrendo e vão seus restos ficando ali, por isso que a gente tem essa grande concentração”, explica Ximenes.

    Celso atua na região desde a década de 1990. Ele divide a curadoria do Museu de Pré-História de Itapipoca (Muphi) com o arqueólogo Agnelo Queirós. A instituição, atualmente fechada para obras, reúne a maior parte do material encontrado nos tanques naturais e obtido através das escavações realizadas nos sítios paleontológicos do município.

    “Itapipoca é um enclave ambiental com muito potencial nessa área arqueológica e paleontológica, em estudos ambientais”, afirma Agnelo Queirós. “Essa formação [tanques naturais] hoje está evidenciando esse potencial da flora e da fauna extinta no nosso país, no planeta, e lá tem mostras muito interessantes dessa megafauna”.

    Tanques naturais: uma mina de ouro da paleontologia

    Escavação dos tanques naturais de Itapipoca em 1961 por equipe do Museu Nacional do Rio de Janeiro — Foto: Francisco de Alencar

    Escavação dos tanques naturais de Itapipoca em 1961 por equipe do Museu Nacional do Rio de Janeiro — Foto: Francisco de Alencar

    Os tanques naturais são verdadeiros buracos que se formam nas rochas, principalmente em rochas graníticas. Os tanques têm dimensões que variam de alguns centímetros até 20 metros de comprimento. Eles são formados através de processos de erosão e intemperismo, que é o enfraquecimento da rocha.

    O fenômeno ocorre em várias partes do mundo, mas costuma ser mais comum em regiões semiáridas como na Austrália, em partes do continente africano e no Nordeste do Brasil. O condicionante climático de semiaridez ou aridez em rochas graníticas é uma combinação perfeita para a formação dos tanques.

    Escavação no sítio paleontológico de Lajinhas, em Itapipoca — Foto: Agnelo Queirós

    Escavação no sítio paleontológico de Lajinhas, em Itapipoca — Foto: Agnelo Queirós

    “Quando a rocha ainda está no subsolo, a água que está ali vai enfraquecendo os minerais que compõem a rocha, ela fica enfraquecida, começa a ter um quebramento. Nos processos de evolução do relevo, essa rocha começa a vir para a superfície e, por erosão do solo ao lado, ela começa a aparecer na superfície. Aí os processos de erosão vão remover esses minerais enfraquecidos e vão então formar esses buracos”, detalha o paleontólogo Celso Ximenes.

    O município de Itapipoca, localizado na porção norte do Ceará, é conhecido como “a cidade dos três climas”, pois possui em seu território praias, serras e sertão. É justamente na depressão sertaneja, de predominância semiárida, onde estão localizados os principais sítios paleontológicos e a maior parte dos tanques naturais.

    Dois tanques encontrados no município são considerados “gigantes”. Um deles, localizado no sítio paleontológico Lajinhas, é chamado popularmente de Tanque do Criminoso. Conforme contam os moradores, uma criança e um homem adulto bêbado teriam morrido afogados há muitos anos nesse tanque, que possui 20 metros de comprimento e 6 de profundidade.

    Inicialmente, os pesquisadores que exploraram os tanques propunham que a maior parte dos fósseis de animais encontrados ali tiveram destino semelhante: os animais teriam se aproximado da beirada, teriam caído nos tanques e, sem conseguir sair, morreram afogados e tiveram seus restos depositados ali, onde foram enterrados por milênios de sedimentos.

    Hoje, no entanto, há uma nova perspectiva. Conforme os pesquisadores que trabalham nestes sítios paleontológicos, o cenário mais provável é que, na verdade, estes animais tenham morrido nos arredores dos tanques e, durante as chuvas, tiveram seus restos mortais arrastados para dentro dos buracos.

    Ossadas fossilizadas encontradas em tanque natural em Itapipoca — Foto: Museu de Pré-História de Itapipoca

    Ossadas fossilizadas encontradas em tanque natural em Itapipoca — Foto: Museu de Pré-História de Itapipoca

    "A gente afirma isso pelo fato de como a gente encontra esses ossos dentro dos tanques, geralmente. A gente nunca encontrou esqueleto inteiro. Não tem registro na ciência de descoberta de um esqueleto inteiro de um animal dentro de um tanque. [...] Então a gente não pode dizer realmente que o animal caia, é mais lógico pensar que eram restos de ossos que ficavam ali em volta e na estação seguinte, a chuva levava e depositava ali dentro do tanque. Isso a gente vê acontecendo até hoje", esclarece Ximenes.

    Itapipoca: refúgio de megafauna

    Após a última era do gelo, o mundo foi habitado por animais de grande porte como mamutes, tigres-dentes-de-sabre, cervos-gigantes e outras centenas ou milhares de animais, muito deles com semelhanças com algumas espécies que encontramos hoje.

    Não é só uma coincidência. A ciência divide hoje a megafauna em dois tipos: a extinta e a vivente. Isso porque representantes da megafauna estão vivos nos tempos atuais, como é o caso dos dos elefantes, o maior animal terrestre do planeta; os leões, o maior felino do mundo; rinocerontes, girafas, entre outros.

    Outra parte da megafauna extinguiu-se nos últimos milênios por razões ainda não completamente determinadas, mas provavelmente relacionadas à incapacidade de se adaptar às mudanças climáticas do período.

    Os fósseis encontrados nos tanques de Itapipoca podem ajudar a explicar, em parte, os últimos anos de vida da megafauna extinta no Brasil. Isso porque na região foram encontrados fósseis com idades entre 6 e 3,5 mil anos, o que é considerado um período muito recente para estudos paleontológicos.

    A título de comparação, o fóssil do pequeno dinossauro Ubirajara jubatus, encontrado na região do Cariri cearense e recentemente devolvido ao Brasil pela Alemanha, é de um período entre 110 e 115 milhões de anos.

    Ilustração de alguns espécimes cujos fósseis foram encontrados em Itapipoca — Foto: Celso Lira Ximenes

    Ilustração de alguns espécimes cujos fósseis foram encontrados em Itapipoca — Foto: Celso Lira Ximenes

    Um dos fósseis mais recentes encontrados na região de Itapipoca foi no sítio paleontológico de Jirau, na qual uma peça de fóssil de um xenorrinotério – um animal de grande porte, semelhante a uma lhama, mas possivelmente com uma tromba – datou de cerca de 3,5 mil anos.

    Além do xenorrinotério, a lista de animais encontrados em Itapipoca inclui mastodontes, preguiças-gigantes, cervos-gigantes, tatus-gigantes, tigres-dentes-de-sabre, gliptodontes e macrauquênias. (Confira na imagem acima)

    Para o paleontólogo Celso Ximenes, as datas recentes, em um período em que se acredita que em algumas regiões esta megafauna já estava extinta, pode indicar que Itapipoca pode ter sido um dos últimos refúgios destes animais em território brasileiro.

    Tanque natural de Itapipoca já seco, no período de estiagem, e em processo de escavação — Foto: Museu de Pré-História de Itapipoca

    Tanque natural de Itapipoca já seco, no período de estiagem, e em processo de escavação — Foto: Museu de Pré-História de Itapipoca

    “Os animais da megafauna não eram animais de florestas e não necessariamente eram animais de umidade. Eles eram animais grandes que precisavam de muita comida e iam migrando pela América do Sul. [...] Mas quando eles vão sendo extintos, a extinção também não foi de uma vez, ela vai acontecendo por séculos, e vão formando redutos chamados refúgios ecológicos”, explica Ximenes.

    Convivência humana com a megafauna

    O período exato da extinção dessa parte da fauna ainda não foi determinado. Hoje, já se sabe que grupos humanos chegaram a conviver com esses animais, embora não se saiba por quanto tempo.

    É justamente esta convivência entre humanos e animais da megafauna que o arqueólogo Agnelo Queirós investiga se ocorreu na região de Itapipoca. “A gente está tentando entender as possibilidades de convivência dos primeiros grupos humanos que ocuparam aquela região com essa megafauna. Então cada dia está se aproximando, através dos vestígios encontrados juntos”, pontua.

    Conforme o pesquisador, investigações no ramo da estratigrafia - área da geologia que estuda a formação das camadas das rochas – apontam proximidade entre os materiais fossilíferos e materiais líticos, aqueles feitos de pedra, considerados indicadores de presença humana.

    “É a relação de material lítico, que é material feito em pedra lascada ou pedra polida, junto a esse material fossilífero animal. As pesquisas são bem animadoras nesse sentido, de que pode a gente pode sim ter datações... [...] Já estamos vendo possibilidade de entender algumas marcas que ficaram nesses ossos, tipo raspagem, cortes nesses ossos, se eles foram por motivos antrópicos, ou seja, grupos humanos”, pontua Agnelo.

    Tanque natural em Itapipoca repleto de água — Foto: Museu de Pré-História de Itapipoca

    Tanque natural em Itapipoca repleto de água — Foto: Museu de Pré-História de Itapipoca

    Ainda que a pesquisa da relação entre humanos e animais da megafauna esteja no começo, na região de Itapipoca e nas áreas vizinhas, como a Serra de Uruburetema, já foram encontrados inúmeros indícios de arte rupestre.

    "[As pinturas] nos indicam, cada dia mais, esta ocupação num espaço ainda maior do que imaginado. Se tem pintura, se tem sítio arqueológico, teve ocupação. Resta a gente saber a cronologia dessa ocupação, através das datações, que nem sempre é possível. Depois vai para os estudos crono-estilísticos para você entender os estilos, estilos de pinturas", detalha.

    Na percepção tanto de Ximenes quanto de Agnelo, os pontos de arte rupestre e a quantidade de fósseis encontrados na região, além de apontar que a região pode ter sido um refúgio, também indicam que, no passado, o Nordeste foi uma área mais verde e mais úmida.

    “Os grupos humanos para viver num espaço, eles precisam de matérias-primas básicas, água, alimento. Então isso significa dizer que hoje essas áreas são muito secas, mas em outros períodos elas podem ter sido úmidas, com mais fartura de alimento e de caça", explica o arqueólogo.

    “Os animais em si são bioindicadores: tem animal que é indicador de campos, porque ele tem estrutura anatômica para correr; tem animal que é indicador de ambientes mais úmidos porque a anatomia dele me diz que ele gostava mais de lagoas, como os hipopótamos na África. Nós temos fósseis de ursos no Ceará, que não é um bicho de caatinga, de semiárido, é um bicho de clima mais temperado”, complementa o paleontólogo Celso Ximenes.

    Turismo científico e a criação de um geoparque

    Diante da riqueza de achados arqueológicos e paleontológicos, Ximenes e Agnelo têm encampado a ideia de criar um parque geológico na região de Itapipoca.

    Atualmente, o município já conta com um Museu de Pré-História, no qual os dois são curadores. O museu está fechado para reforma e mudança - a instituição irá ganhar uma nova sede, que só deve abrir em 2024.

    Equipe de escavação no sítio paleontológico Lajinhas, em Itapipoca. Da direita para a esquerda, paleontólogos Hermínio Araújo Júnior, Letícia Belfort, Celso Ximenes e Fernando Barbosa. Na ponta esquerda, o arqueólogo Agnelo Queirós. — Foto: Arquivo pessoal

    Equipe de escavação no sítio paleontológico Lajinhas, em Itapipoca. Da direita para a esquerda, paleontólogos Hermínio Araújo Júnior, Letícia Belfort, Celso Ximenes e Fernando Barbosa. Na ponta esquerda, o arqueólogo Agnelo Queirós. — Foto: Arquivo pessoal

    Enquanto isso, a equipe está aproveitando para realizar uma espécie de “recenseamento” nos itens do museu, o que vai permitir dizer, com precisão, qual o tamanho do acervo da instituição.

    A ideia do geoparque já encontra ecos no Ceará. A Chapada do Araripe, no sul do Ceará, é repleta de sítios arqueológicos e paleontológicos. Em 2006, o local se tornou o primeiro geoparque reconhecido pela Unesco nas Américas.

    Para os pesquisadores de Itapipoca, a criação de um geoparque na área dos tanques e nas proximidades é uma oportunidade de preservar a riqueza histórica da região e até mesmo fortalecer o turismo científico.

    “Isso é muito comum no mundo todo, parques naturais que têm essas atividades científicas, e Itapipoca a gente sempre teve esse interesse, essa preocupação, no sentido de ter um lugar que as pessoas possam visitar. Por que? Porque as pessoas leem o que a gente divulga e ficam curiosas, elas querem ir lá, elas têm a curiosidade de ver, de saber mais. Então a gente precisa ter lugares para receber essas pessoas”, conclui Ximenes.


    Fonte: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2023/11/19/fosseis-encontrados-em-tanques-de-pedra-ajudam-a-reconstituir-passado-de-animais-pre-historicos-no-nordeste.ghtml

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