A CONIVÊNCIA DE WASHINGTON COM OS CRIMES DE ISRAEL

Foto: Brendan SMIALOWSKI/AFP

A conivência de Washington com os crimes de Israel

Relator especial da ONU aponta: vincular questões humanitárias à autodefesa, como fazem os EUA, é endossar um massacre na Palestina. O Conselho de Segurança já não cumpre seu papel. É preciso reformá-lo para garantir mais representatividade

OUTRASPALAVRAS

GEOPOLÍTICA & GUERRA

por Glauco Faria

Publicado 25/10/2023 às 19:17

 “A fome da população civil é proibida e é um crime de guerra. O cerco também pode ser uma punição coletiva ilegal se tiver como objetivo retaliar contra todos os gazenses pelos pecados do Hamas. Nas condições atuais, o sul de Gaza não pode sustentar mais 1,1 milhão de pessoas além do número já presente”, pontua o professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de Sydney e relator especial da ONU para a promoção e proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais no combate ao terrorismo Ben Saul.

O papel dos EUA no conflito

Em entrevista realizada por e-mail, o relator especial da ONU aponta outras violações cometidas contra o direitos internacional, como nas ordens de evacuação de civis em Gaza. “O aviso não foi eficaz porque não deu às pessoas tempo suficiente para se moverem com segurança”, explica, acrescentando que os problemas com a evacuação são agravados ainda pelo cerco completo na região.

Ben Saul também comentou o veto dos EUA à resolução do Conselho de Segurança da ONU que propunha “pausas humanitárias”* para permitir um fluxo efetivo de ajuda para Gaza. O texto, elaborado pelo Brasil, teve 12 votos favoráveis, duas abstenções e o veto estadunidense.

“É profundamente decepcionante que os EUA tenham impedido a cooperação multilateral de segurança para ajudar civis em extrema necessidade, ao tentar vincular questões humanitárias à questão separada da autodefesa”, lamenta. “Israel depende do apoio militar dos EUA, e os EUA deveriam usar essa influência para garantir o respeito pelo direito humanitário por parte de Israel, em vez de aparentemente valorizar mais as vidas dos civis israelenses do que as vidas dos civis palestinos.”

O episódio aponta também para a necessidade de se repensar o Conselho de Segurança da ONU. “A reforma do Conselho de Segurança é essencial para garantir que ele seja mais representativo do mundo atual, e não do passado. Alguns dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança exercem seu poder de veto com muita frequência por razões completamente não baseadas em princípios.”

Confira a íntegra da entrevista abaixo:

Em um artigo escrito com Jane McAdam, você afirmou que as ordens de evacuação feitas da forma como Israel promove violam o direito internacional. Em termos gerais, como isso acontece? Isso é um padrão do Estado de Israel, ou seja, essa mesma violação foi identificada em outras ocasiões?

Israel tem o dever, de acordo com o direito humanitário internacional, de fornecer um aviso eficaz aos civis antes de ataques militares. Embora Israel tenha avisado mais de 1 milhão de civis para evacuar o norte de Gaza, o aviso não foi eficaz porque não deu às pessoas tempo suficiente para se moverem com segurança. Além disso, Israel não conseguiu facilitar a ajuda humanitária rápida e sem impedimentos, necessária para a sobrevivência dos civis evacuados. Se Gaza ainda é um território ocupado por Israel, Israel tem o poder legal de evacuar civis por razões de segurança ou devido a operações militares iminentes. No entanto, ainda seria ilegal nessas circunstâncias, uma vez que Israel não garantiu que os civis evacuados recebessem assistência humanitária adequada.

Que outras violações do direito internacional você consegue identificar na conduta de Israel neste momento?

Os problemas com a evacuação são agravados pelo “cerco completo” de Israel a Gaza, “sem eletricidade, sem comida, sem água, sem combustível”. Um cerco pode ser legal para enfraquecer um adversário, mas deve estar em conformidade com as regras do DIH (Direito Internacional Humanitário) sobre a proteção de civis. O cerco total viola a obrigação de Israel de permitir e facilitar a passagem rápida e sem impedimentos de assistência humanitária imparcial e não discriminatória para civis necessitados. Isso inclui operações para fornecer alimentos, água, suprimentos médicos, roupas, abrigo, combustível para aquecimento e outros suprimentos e serviços essenciais para a sobrevivência de uma população civil. Embora Israel tenha o direito de controlar a entrada dessa assistência para atender às legítimas necessidades de segurança, não pode interrompê-la. A fome da população civil é proibida e é um crime de guerra. O cerco também pode ser uma punição coletiva ilegal se tiver como objetivo retaliar contra todos os gazenses pelos pecados do Hamas. Nas condições atuais, o sul de Gaza não pode sustentar mais 1,1 milhão de pessoas além do número já presente.

Em seus ataques militares, Israel não deve visar civis, lançar ataques que prejudicariam indiscriminadamente civis ou causar um número excessivo de vítimas civis em relação à vantagem militar buscada pelo ataque. A escala e o padrão de destruição em Gaza podem sugerir que Israel não está cumprindo completamente o direito humanitário internacional. Deveriam ser realizadas investigações independentes em relação a ataques que envolvam um grande número de vítimas civis.

Os EUA vetaram uma resolução do Conselho de Segurança que previa “pausas humanitárias” para ajudar a população de Gaza. A posição dos EUA demonstra uma recusa em procurar soluções por meio do sistema internacional?

É profundamente decepcionante que os EUA tenham impedido a cooperação multilateral de segurança para ajudar civis em extrema necessidade, ao tentar vincular questões humanitárias à questão separada da autodefesa. Os EUA têm exercido alguma pressão sobre o governo israelense para permitir ajuda humanitária, mas claramente não o suficiente. Israel depende do apoio militar dos EUA, e os EUA deveriam usar essa influência para garantir o respeito pelo direito humanitário por parte de Israel, em vez de aparentemente valorizar mais as vidas dos civis israelenses do que as vidas dos civis palestinos.

Uma das justificativas para o veto dos EUA foi que a resolução não mencionava “o direito de Israel à autodefesa”. Como a ONU e o sistema internacional veem o direito de autodefesa de um Estado, não contra outro Estado, mas contra um ator não estatal, neste caso, o Hamas?

Se Israel ainda ocupa Gaza, como a ONU sustenta**, então Israel tem poderes sob o direito de ocupação para garantir a segurança, de modo que o direito de autodefesa nos termos do artigo 51 da Carta da ONU não é necessário nem relevante, como já afirmado anteriormente pela Corte Internacional de Justiça. Se Gaza não está ocupada, porque Israel não tem controle suficiente sobre ela, então o direito de autodefesa contra atores não estatais em território estrangeiro é muito controverso e não foi claramente aceito como uma regra geral pela maioria dos países.

O sistema de veto no Conselho de Segurança da ONU foi criado para proibir a organização de tomar qualquer ação futura contra os seus principais membros fundadores. Hoje, num contexto muito diferente daquele de então, este sistema deveria ser rediscutido?

A reforma do Conselho de Segurança é essencial para garantir que ele seja mais representativo do mundo atual, e não do passado. Alguns dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança exercem seu poder de veto com muita frequência por razões completamente não baseadas em princípios. Se eles não concordarem em abrir mão de seus poderes de veto, deveriam se comprometer a agir de maneira mais responsável como garantidores da segurança coletiva internacional, e não apenas em prol de seus interesses estreitos ou dos aliados.

Dada a postura de algumas das potências mundiais e em um cenário no qual também existe um conflito importante como a guerra na Ucrânia, entre outros, quais os países ou entidades que poderiam desempenhar um papel mediador para propor soluções para a questão Israel-Hamas ?

Todos os Estados com influência sobre o Hamas (como o Catar) e Israel (particularmente os EUA, mas também outros Estados ocidentais) deveriam intensificar os esforços para exercer máxima pressão sobre essas partes, além dos atores regionais e multilaterais.

*Uma pausa humanitária é um objetivo menos ambicioso do que um cessar-fogo, já que significa um acordo temporário para assegurar o fluxo de ajuda humanitária. Já o cessar-fogo é mais amplo, interrompendo as hostilidades e preparando terreno para eventuais negociações de paz.

**Ainda que Israel tenha retirar tropas terrestres da região em 2005, a ONU considera Gaza um território ocupado em função do controle israelense sobre as fronteiras aéreas e marítimas, além da capacidade de bloquear o acesso a Gaza, como feito agora, sob a justificativa de ameaças de segurança.

Fonte:https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/a-conivencia-de-washington-com-os-crimes-de-israel/


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