O sexo com Ana foi, desde o dia 1, o melhor da vida de Suzana. Havia o fato de, em meados de 2014, aquele ser o primeiro relacionamento lésbico de Suzana – isso “já era o bastante pra ser excitante como nunca antes”, e havia o fato de Suzana estar vivendo um momento de liberdade inédito, no qual “a monogamia e a heterossexualidade não faziam mais sentido nenhum”. O cenário do primeiro romance gay de Suzana foi San Telmo, bairro boêmio de Buenos Aires, capital da Argentina. Ali, e com Ana, gozar era trivial e fácil. “Honestamente? Nem pensava se havia tido ou não orgasmos em determinada transa. Provavelmente sim, e até mais de um. Mas o ponto é que estava feliz, satisfeita e fogosa. Gozar não era uma questão”, recorda hoje, aos 36 anos, de volta ao Brasil e cheia de questões com os próprios orgasmos.
“Quando me lembro da temporada de 2014, até parece outra vida”, diz Suzana, que enfrenta uma fase “estranha”, de vai e vem na libido, o que faz dela uma mulher, ao menos por ora, anorgásmica. Nas consultas ginecológicas, o termo médico que caracteriza a dificuldade de uma pessoa em ter orgasmos nunca apareceu para Suzana. Ela só foi se deparar com ele na internet, em um post de uma terapeuta sexual que trazia a descrição da condição. “Me vi toda ali, o modelo do problema”, conta. Depois do autodiagnóstico, levou a descoberta a sua médica, que confirmou: seu caso de fato se trata de anorgasmia. Desde a consulta, Suzana tem tentado entender o que a faz gozar tão raramente hoje em dia. Exames clínicos não apontaram nada fora do normal, não há em outros setores da vida problemas que têm tirado seu sono, não há sequer tendências depressivas no humor. “Talvez eu seja do tipo que precise de grandes aventuras pra me sentir viva sexualmente”, conclui. “Se não fosse a pandemia, me jogaria em San Telmo novamente pra testar.”
Curiosamente, a liberdade sexual feminina – alcançada a passos lentos a partir da década de 1960 nas sociedades ocidentais – não se converteu em abundantes orgasmos. Um estudo publicado em 2017 pela psiquiatra Carmita Abdo, uma das maiores pesquisadoras do tema no Brasil e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), mostra que pouco mais da metade das brasileiras (55,6%) tem dificuldade para gozar. O estudo ouviu 3 mil participantes com idades entre 18 e 70 anos em sete cidades do país: São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador, Belém, Distrito Federal e Porto Alegre.
A escassez de orgasmos foi uma realidade na vida de Gabriela, 32, durante o último ano de seu ex-relacionamento. Ela transava com o então namorado toda semana, mas o gozo era “puro teatro”. “Não precisei de uma longa investigação para dizer a mim mesma o motivo da minha anorgasmia. Meu namoro estava por um fio, não amava mais meu parceiro, nem o desejava. Era só meu corpo assumindo o que eu ainda não tinha assumido na vida”, admite. A prova real de sua conclusão aconteceu por causa de uma traição. “Fui com amigas a um karaokê e encontrei um casinho da época da faculdade. Fomos pra casa dele e transamos madrugada adentro. Tive três orgasmos. Mas, mais que gozar, queria estar ali. Estava afim dele, de transar com ele. E isso foi decisivo pra colocar fim na relação que mantinha”, conta ela, que não viu novamente o cara da faculdade, terminou o namoro dias depois e, desde então, não experimentou outra fase anorgásmica.
O orgasmo é uma função biológica presente em todos os corpos humanos, com raríssimas exceções. A dificuldade de tê-lo não deveria ser a norma, mas, em um mundo de repressão sexual e regras limitadoras que impedem as mulheres de explorar a própria sexualidade, não gozar ainda é comum entre nós, mesmo quando falamos de mulheres urbanas, com poder aquisitivo e acesso a informações sobre o próprio corpo. E os homens, você deve estar se perguntando, sofrem com anorgasmia? Sim, mas, segundo as fontes ouvidas para este texto, a literatura médica – e os consultórios – mostram, muito menos que nós. Apenas 4% se queixam da falta de orgasmos. E aí, infelizmente, ainda mora o que podemos chamar de “machismo podando nossas libidos” ou “sociedades patriarcais criando mulheres menos orgásmicas”. Por mais que a anorgasmia seja contornável, passageira, e uma realidade até mesmo para as mulheres livres, ela ainda é mais presente na vida da população feminina. Tanto que chega a ser uma característica atribuída à nossa sexualidade, e não à dos homens.
Alterações neurológicas, lesões na medula, arteriosclerose (endurecimento e espessamento das paredes das artérias) e o uso de algumas medicações psiquiátricas podem impedir mulheres – e homens – de chegarem ao orgasmo, mas, para a terapeuta sexual e psicóloga Ana Canosa, na maioria dos casos – e então sua teoria foca apenas nas mulheres –, a causa não é física, mas um conjunto de fatores psicossociais. “O que falta às mulheres é uma permissão interna para ter prazer.”
Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/Amor-e-Sexo/noticia/2021/02/por-que-aclamada-liberdade-sexual-feminina-nao-nos-converteu-em-mulheres-orgasmicas.html
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