HÍMEN PARA QUE?

 

Se a película presente na entrada do canal vaginal é tão diversa e se comporta de maneiras tão distintas de organismo para organismo, por que seguimos considerando sua existência (ou ausência) relevante? (Foto: Isadora Machado)

Se a película presente na entrada do canal vaginal é tão diversa e se comporta de maneiras tão distintas de organismo para organismo, por que seguimos considerando sua existência (ou ausência) relevante? (Foto: Isadora Machado)


  • RENATA CORRÊA
  • COLABORAÇÃO PARA MARIE CLAIRE
 ATUALIZADO EM 

Uma jovem morena está enrolada em uma toalha. Seus longos cabelos se espalham pelos ombros e ela lança um olhar de apreensão para o marido. Ela é recém-casada e, na noite de núpcias, deve se submeter a um teste de virgindade. Mas a jovem já se relacionou com outro homem antes, e seu marido sabe disso. Para que a vergonha não caia sobre ele, o marido decide cortar o próprio braço e manchar o lençol de sangue, simulando, assim, para suas famílias, que o hímen de sua esposa fora rompido durante a relação sexual do casal. E que ele foi o primeiro homem a tocá-la.

A cena aconteceu na ficção, na novela Explode Coração, sucesso dos anos 1990. Com uma audiência gigantesca em uma era pré-popularização da internet, a trama mobilizou revistas e programas de fofocas, e foi debatida com animação nas famílias. A virgindade como motor para histórias acontecia também nos Estados Unidos e na Europa: a chegada da TV à cabo trouxe o universo de séries adolescentes norte-americanas, como Minha Vida de CachorroOne Three HillDawson’s CreekBarrados no Baile. Todos esses programas tinham pelo menos uma mocinha virgem e uma antagonista que já transava – e, por isso, deveria cumprir um calvário emocional até conquistar o amor. Infelizmente, a obsessão com o tema não era exclusividade da ficção. Mais ou menos na mesma época, a cantora Britney Spears teve sua vida sexual vasculhada e programas de TV dedicavam horas para especular se ela era virgem ou não. Movimento semelhante aconteceu no Brasil, com a cantora Sandy, que teve que responder perguntas sobre sua primeira vez em várias entrevistas.

Olhando para trás, é possível perceber o quanto a imprensa de celebridades era invasiva ao especular sobre a vida sexual de adolescentes, e não dá para imaginar isso acontecendo hoje nas mesmas proporções. De lá para cá, os debates sobre sexualidade avançaram e muitas mulheres assumiram uma postura mais ativa sobre a busca pelo prazer e a descoberta do próprio corpo. Alguns mitos, no entanto, se mantêm. A virgindade é um deles. Apesar de não ser um fato médico-científico, ela continua sendo um fato cultural tão incontestável que sua existência ainda impacta no exercício da sexualidade de mulheres de diversas idades. E pode virar uma sombra em suas vidas sexuais e reprodutivas.

Mas, afinal, o que é virgindade? Para uma sociedade machista e falocêntrica, como a nossa, é toda a vida de uma mulher antes de seu primeiro ato sexual, com a penetração de um pênis em sua vagina. A penetração ganha status de rito de passagem, no qual aquela adolescente ou jovem finalmente se torna uma mulher e perde, junto com a virgindade, sua pureza e inocência. Então, simbolicamente, o pênis ganha um status mágico e transformador com potência dupla, positiva e negativa. Ao penetrar em uma vagina, essa varinha mágica alteraria o nível de compreensão da mulher a respeito do mundo, tornando-a “adulta” e alteraria suas qualidades morais – de inocente para amoral. E, de alguma maneira, essas características místicas do pênis se mantêm intactas no imaginário cultural até hoje.

Além disso, o ato de perder a virgindade teria consequências físicas claras – o sangramento, que supostamente seria observado após a primeira penetração, e o rompimento do hímen, que poderia ser verificado por um teste clínico executado por um ginecologista. O teste varia de cultura para cultura: pode ser apenas visual ou mesmo um exame de toque feito em consultório. Alguns médicos, cientistas, psicanalistas e feministas, no entanto, o questionam já há algum tempo, e com razão, e pensam os marcos sexuais de maneira mais fluida.

Muito além do hímen
No campo médico-científico, as pesquisadoras norte­americanas Rose McKeon Olson e Claudia García­Moreno publicaram, em 2017, no Reproductive Health Journal, um artigo chamado “Virginity testing: a systematic review”. Nele – e pela primeira vez na história da medicina – uma pesquisa usava métodos científicos para atestar os benefícios e a confiabilidade dos testes clínicos de virgindade (sim, isso existe), que têm o intuito de mostrar, por observação e toque vaginal, se uma mulher foi penetrada ou não. No imaginário coletivo, a presença do hímen significaria virgindade; já sua ausência, que uma mulher havia sido penetrada. As descobertas da dupla são contundentes. É impossível, por meio de qualquer exame clínico, saber se uma mulher teve sua vagina penetrada por um pênis ou por um objeto. Os exames são um resquício cultural patriarcal sem evidência científica.

Deve-se levar em conta ainda que a estrutura do hímen varia de mulher para mulher – ainda que todos sejam apenas um fragmento que sobra no processo de formação da vagina, desenvolvido no período fetal, sem função biológica alguma. Ele pode ser elástico e não se romper; algumas mulheres nascem sem; e, em muitos casos, a membrana simplesmente se regenera. Os hímens são tão diversos e se comportam de maneiras tão distintas que considerá-los um selo de pureza ou prova de que aquele canal vaginal nunca foi tocado é uma ficção, e essa história que nos foi contada tem como único objetivo o bom e velho controle dos corpos das mulheres. Em uma das conclusões do artigo, as autoras recomendam fortemente que os testes de virgindade parem de ser utilizados por autoridades para atestar violência sexual. E que a falta de efetividade dessa prática pode ter deixado muitas vítimas vulneráveis a seus agressores. Por isso mesmo, outros marcadores precisam ser usados.

 (Foto: Isadora Machado)

(Foto: Isadora Machado)

Mas, se a ciência já descarta o hímen como indicador de virgindade, por que os testes ainda são tão populares e o imaginário se mantém? Para Thayz Athayde, psicanalista, escritora e doutora em educação pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), essa é uma questão mais profunda. “É importante compreender que o que chamamos de médico-científico faz parte de algo cultural. Como exemplo, podemos pensar nas mulheres internadas como loucas nos séculos 19 e 20, com o diagnóstico de histeria. A causa, segundo os médicos da época, seria um ‘útero animalesco’, que poderia ser curado com a sua retirada, a retirada do clitóris, ou com a introdução de gelo na vagina”, explica ela. “Hoje, sabe-se que os diagnósticos eram baseados em uma profunda misoginia. Portanto, ainda que por si só a virgindade não seja um conceito médico, mas uma forma violenta de discriminação de gênero, muitos médicos utilizaram-se dessa ideia mesmo sabendo tratar-se de um conceito cultural”, completa.

O hímen como atestado de virgindade tornouse uma verdade tão difícil de contestar que cirurgias para reconstruí-lo ou retirá-lo ganharam pedidos nos consultórios especializados em plástica. Como dois lados da mesma moeda, os procedimentos refletem tipos diferentes de ansiedade sexual. A de reconstrução de hímen serve para recuperar a virgindade perdida e “presentear” o parceiro, apagando simbolicamente o passado sexual da mulher. A cirurgia de retirada geralmente é indicada de forma correta, em casos de hímen imperfurado – aquele que tapa totalmente a entrada da vagina impedindo, inclusive, que flua o sangue menstrual, e provoca complicações de saúde. Essa última, no entanto, também anda sendo recomendada como panaceia para diversas dificuldades sexuais, de vaginites a medo da penetração.

Nesse caso específico, o autoconhecimento e a experimentação sexual estão sendo substituídos por um ato médico. E talvez seja difícil convencer as próprias mulheres de que o hímen não era tão importante assim – afinal, vivemos em uma sociedade onde nosso valor está atrelado à moralidade sexual e, quando esse conceito cai, cai também todo um esforço, um desperdício de tempo no qual as mulheres tentaram ser (ou ao menos parecer) recatadas. “Esse discurso está no inconsciente feminino e faz com que elas também se vigiem: ‘O que vão pensar de mim?’”, continua a psicanalista Thayz Athayde. “Com isso, temos uma dupla forma de regular o corpo feminino. Acredito que falar sobre sexualidade abertamente seja um forte indício de rupturas desse discurso, mas me preocupa aquilo que fica na subjetividade: sou puta ou santa? Exercer a sua sexualidade dessa forma torna-se difícil e doloroso, já que a ideia de virgindade ainda faz parte do nosso imaginário coletivo”, completa.

Ao vincular o principal marco da vida sexual de uma pessoa com a perda da virgindade provocada pela penetração de um pênis em uma vagina, estamos dizendo que a única maneira de uma mulher ter uma vida sexual é quando ela se relaciona com um homem e que essa prática é a única válida. A lógica dessa construção remonta a uma antiga crença conservadora de que sexo é um ato reprodutivo e não um ato de prazer, ou a troca entre dois ou mais corpos. Sendo a reprodução entre humanos feita por meio de penetração, e a sociedade machista controlando os corpos das mulheres para atestar a paternidade, cria-se um caldeirão cultural que separa o que é sexo do que não é sexo em uma perspectiva exclusivamente masculina – quando seria muito mais justo que mulheres pudessem decidir por meio de suas experiências quais são os marcos relevantes da sua vida sexual.

“Perguntei para uma paciente lésbica que não curtia penetração quando foi que ela perdeu a virgindade, e ela me disse que foi quando teve pela primeira vez um orgasmo estimulado por uma parceira”, diz Mahmoud Baydoun, terapeuta sexual e especialista em sexualidade humana pela USP (Universidade de São Paulo). Isso reforça como as práticas sexuais são plurais e diversas, assim como as formas com que os corpos se relacionam. A penetração é, apenas, uma dessas práticas. As jornadas sexuais de mulheres cis, trans, hétero e homossexuais são muito mais complexas: beijos, masturbação mútua, sexo anal, sexo oral, massagens – mas tudo isso ganha o status genérico de “preliminares”, como se tudo que não fosse penetração na vagina não fosse sexo.

 (Foto: Isadora Machado)

(Foto: Isadora Machado)

Ao contrário da crença social generalizada, talvez os marcos sexuais possam ser tão diversos quanto são diversas as pessoas. Conhecer o próprio corpo e se autoconhecer a ponto de ter os próprios marcos sexuais, sem que eles sejam regulados por uma crença cultural ultrapassada – como a ideia de virgindade roubada ou perdida após penetração –, deveria ser a prática, o objetivo. O próprio Mahmoud incentiva esse questionamento em seu dia a dia, como fez recentemente, quando postou em seu perfil do Instagram sobre o “rompimento do hímen” como sinônimo de perda da virgindade. Ele pedia para as mulheres terem contato com seu próprio hímen, fosse com vibradores, fosse com os próprios dedos durante a masturbação. “O conceito de virgindade atrelado ao hímen intacto, além de cientificamente errado, é extremamente machista, causa enorme ansiedade nas mulheres e faz com que muitas tenham uma ‘primeira vez’ traumática”’, completa o terapeuta.

gindade atrelado ao hímen intacto, além de cientificamente errado, é extremamente machista, causa enorme ansiedade nas mulheres e faz com que muitas tenham uma ‘primeira vez’ traumática"

Mahmoud Baydoun

Já Ana Canosa, educadora sexual e autora dos livros "Sexualidades e Violência" (editora Ideias & Letras, 336 págs.) e "Sexoterapia" (editora Master Pop, 146 págs.) propõe a ideia de que o consentimento é um dos marcos que devem ser considerados na vida. “A iniciação sexual tem significados múltiplos e é marcante para homens e mulheres. Acho que o consentimento sexual tem sido um marco importante, pois seu conceito não se restringe à escolha de fazer ou não sexo, mas se essa escolha envolve capacidade de discernimento e garante a dignidade humana”, explica. “Nesse sentido, educar sexualmente para a promoção da saúde sexual e emocional é condição imprescindível e urgente”, diz Ana.

As novas descobertas da ciência e a mudança de percepção cultural do que são práticas sexuais podem fazer com que adolescentes e mulheres jovens entendam de forma mais ampla suas experiências sexuais fundadoras e os momentos-chave dessa caminhada. Mas não só elas. Para as já adultas e com vidas sexuais ativas, pode ser uma oportunidade de rever suas histórias e olhar com mais generosidade para suas experiências eróticas, pensando que o prazer, a segurança emocional e o tesão podem ser marcos fundadores tão ou mais importantes do que a penetração – ou um detalhe anatômico.

Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/Comportamento/noticia/2021/06/himen-para-que.html


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