Humanos e cães exerceram influência mútua um sobre o outro ao longo dos anos — Foto: ( Unsplash/ Shalom de León/ CreativeCommons)
Por que o cachorro é considerado o melhor amigo do
homem?
Junto ao processo de domesticação de
milênios, cães também apresentam uma motivação exagerada e de origem genética
em procurar contato social com o ser humano
Por Por Yara Guerra
20/07/2022 06h08 Atualizado há 6
meses
Quem primeiro disse que o cachorro é o melhor amigo do homem provavelmente teve, assim como muitos de nós, uma comprovação empírica da afirmação. Isso não acontece por acaso: é comum que tutores estabeleçam relações de amizade e afiliação com os seus pets de uma maneira incomparável a outros animais, principalmente devido à docilidade e lealdade destes bichos.
A razão por trás desta conexão sem igual é uma mistura de milhares de anos de socialização, mutações genéticas e também uma motivação exagerada dos cães a procurar contato social com os humanos.
Passeio na história
Para entender melhor tudo isso, precisamos voltar ao passado. Os lobos, coiotes e chacais – parentes do cão doméstico de hoje em dia – descendem todos do eucyon ("cão verdadeiro"), um canino de cerca de 1 m e 9 kg, que surgiu há 9 milhões de anos na América do Norte.
Este, por sua vez, é apenas um dos descendentes do hesperocyon ("Cão do Ocidente), o cachorro mais antigo do qual se tem conhecimento. Habitante da América do Norte há 37 milhões de anos, o animal tinha dentes afiados, rabo longo e cerca de meio metro de comprimento.
Representação do Hesperocyon, o cachorro mais antigo do qual se tem conhecimento — Foto: ( Wikipedia/ Robert Bruce Horsfall/ Wikimedia Commons)
Já o fóssil mais antigo de um cão doméstico (Canis lupus familiaris) data de 14.700 anos e foi encontrado na Alemanha. Mais tarde, em Israel, um homem foi enterrado com o filhote de um cão, possivelmente seu. Apesar de não se saber exatamente quando e onde a domesticação ocorreu, esses fatos sugerem que o cachorro foi realmente o primeiro animal a passar por esse processo.
O que se sabe, de fato, é que os cães de hoje descendem de lobos-cinzentos (Canis lupus). A teoria mais aceita é que aqueles menos ariscos se aproximavam de assentamentos humanos em busca de comida, enquanto os homens pré-históricos se beneficiavam de sua proteção contra bichos maiores e da companhia para caça.
Com o passar do tempo, os filhotes das novas gerações passaram a deixar de caçar sozinhos e se alimentar somente mediante a presença do homem. Quando os nômades se tornaram sedentários, outra mudança surgiu: os cães passaram de caçadores para pastores, e os humanos foram selecionando e cruzando aqueles mais fortes, mas menos ariscos, e mais hábeis para interagir com os tutores.
A aparência dos animais também se transformou e foi se afastando daquela herdada dos lobos. A sua cabeça reduziu de tamanho, as orelhas caíram e o rabo se tornou abaixado, o que lhes conferiu o aspecto de eternos filhotes.
De acordo com Helena Truksa, bióloga e terapeuta comportamental, humanos e cachorros transformaram um ao outro. "Há a questão da coevolução de Homo sapiens sapiens e Canis lupus familiaris, em que se observa a modificação de determinados caracteres tanto nos humanos quanto nos cães, promovida pela influência mútua da coexistência entre ambos. Algo como uma domesticação cruzada de uma espécie para a outra e vice-versa", explica.
Ainda segundo Helena, outro fator contribuiu para o aumento da sociabilidade nos cães, em comparação com outros animais e até mesmo com o seu antecessor, o lobo: "Alguns estudos científicos sugerem a Teoria da Sobrevivência do mais Amigável (Survival of the Friendliest) como de grande importância no sucesso evolutivo e social de diversas espécies, que incluem primatas, como os humanos e bonobos, e também os cães", diz.
A sociabilidade estaria, portanto, relacionada a uma maior chance de conquista de recursos e consequente sobrevivência no reino animal.
O papel da genética
Mas nem tudo é mérito do ambiente e das experiências sociais ao longo da vida. Para Monique Udell, investigadora de comportamento animal da Universidade Estadual de Oregon (EUA), o cachorro apresenta uma tendência genética em procurar a companhia de humanos.
"Ao comparar cães com lobos, em média, os cães tendem à hipersociabilidade. Isso significa que eles geralmente têm dificuldade em ignorar os sinais sociais e procuram atenção social por períodos mais longos do que os lobos, mesmo de estranhos ou de parceiros humanos desatentos", explica.
Ao longo do tempo e devido à seleção natural, algumas características foram distanciando lobos e cães, que ganharam aparência de eternos filhotes — Foto: ( Unsplash/ Haoward Nguyen/ CreativeCommons)
Segundo Monique, é como se os animais se comportassem de uma maneira mais característica daquela de jovens da maioria das espécies. Apesar de os lobos também serem sociais, à medida que se tornam adultos o seu comportamento social é mais apropriado para o desenvolvimento.
"Lobos socializados com humanos irão cumprimentá-los e podem formar laços fortes, mas são mais propensos a serem cautelosos com estranhos do que cães e também a se envolverem em saudações mais curtas, seguidas de atividades independentes – a menos que o humano esteja ativamente envolvido com o lobo, caso em que eles muitas vezes permanecem socialmente engajados também", diz.
O que Monique explica ao Vida de Bicho está documentado no artigo publicado por ela e sua equipe na revista científica Science Advances. Para provar a hipótese de que a genética influencia na sociabilidade canina, eles utilizaram testes curtos, no qual cães ou lobos socializados tiveram a oportunidade de abordar um cuidador familiar primeiro desatento e depois atento, e também um estranho que esteve distraído e depois atento.
"Em seguida, medimos quanto tempo o cão ou lobo escolhe para se aproximar e ficar próximo de cada pessoa em cada condição. Em alguns casos, também coletamos amostras fisiológicas, como saliva, para ajudar a avaliar marcadores genéticos subjacentes que podem nos ajudar a entender por que diferentes espécies ou indivíduos exibem comportamentos diferentes durante esses testes", explica.
O resultado foi que os cachorros se mostraram muito mais amistosos que os lobos, mesmo estes tendo convivido a vida inteira com seres humanos, e ainda que a visita fosse de uma pessoa estranha.
Raças de cães como akita e husky siberiano têm configuração genética muito semelhante a dos lobos — Foto: ( Unsplash/ Megan Byers/ CreativeCommons)
Junto à geneticista Bridgett M. vonHoldt, Monique se concentrou no cromossomo 6 dos animais participantes do estudo. Isso porque, em seres humanos, alterações no cromossomo 7 (correspondente ao 6, em cães) podem levar à síndrome de Williams-Beuren, um transtorno comportamental que torna seus portadores muito amistosos e confiantes.
Elas perceberam que os animais que se mostraram mais sociais eram também aqueles que apresentavam mais variações genéticas, especialmente mais anomalias no gene que forma a proteína G1F21, que regula a atividade de outros genes.
"Com confiança estatística, descobrimos que, em um cão (ou lobo-cinzento) que carrega uma ou mais das variações, sua sociabilidade com humanos aumenta. Algumas das variantes têm uma influência maior do que outras, portanto, a localização exata da variante no cromossomo 6 faz diferença, bem como o número de cópias dessa variante", explica Bridgett.
Um estudo paralelo da Universidade de Azabu, no Japão, concluiu que mutações no gene MC2R, relacionado a habilidades cognitivas, podem ter favorecido a domesticação da espécie. A metodologia da equipe envolveu 624 cães filhotes separados em dois grupos: aquele com raças geneticamente semelhantes aos lobos, como akita ou husky siberiano; e o grupo geral, composto por todos os outros filhotes.
O golden retriever é uma das raças mais amistosas de cachorros — Foto: ( Unsplash/ Helena Lopes/ CreativeCommons)
Eles foram submetidos a duas tarefas. A primeira consistia em identificar quais tigelas escondiam comida. Os cães deveriam apontar, olhar e tatear a que julgassem certa. A intenção era avaliar a compreensão canina sobre os gestos e comunicação humanos, mas os resultados não demonstraram diferenças significativas entre os grupos.
Já no segundo teste, os participantes deveriam abrir um recipiente para acessar comida. A frequência e o tempo que os cães passavam olhando para os avaliadores foram avaliados, já que isso representa um vínculo social com os seres humanos. Os do grupo geral olhavam mais, sugerindo um vínculo maior.
Analisando o gene dos cães participantes, os cientistas perceberam duas mutações no gene MC2R nos animais que foram mais bem sucedidos nas tarefas. Este gene é também envolvido na produção do cortisol (hormônio do estresse), o que sugere que a redução do estresse faz os filhotes de cachorro ficarem mais confortáveis ao interagir com humanos, facilitando a domesticação.
Raças mais sociáveis
Apesar do pug ter sido selecionado por seu comportamento e aparência, algumas características da raça podem ser maléficas, como o focinho braquicefálico — Foto: ( Unsplash/ James Tiono/ CreativeCommons)
Voltando à linha de raciocínio apresentada por Bridgett, a sociabilidade está relacionada à raça à qual o cão pertence. "Aquelas normalmente criadas para uma função de 'trabalho' são muito mais focadas no trabalho do que nas pessoas. Enquanto raças de companhia provavelmente carregam mais variantes que aumentam sua sociabilidade direcionada ao ser humano", diz a geneticista.
As raças mais modernas – e melhores selecionadas segundo o seu comportamento – seriam, então, aquelas mais sociáveis. "Traços como docilidade, gosto por brincadeiras, e outras habilidades sociais podem ser 'refinadas' ao longo das gerações, através de cruzamentos cuidadosamente escolhidos", diz Helena.
Ou seja: quando se cruza cães que gostam muito de pessoas e de outros animais, a tendência é se obter uma ninhada de filhotes que possivelmente herdará estas inclinações comportamentais dos pais, e assim sucessivamente.
Segundo Helena, raças como golden retriever, cavalier king charles spaniel, labrador retriever e pug são exemplos cujos indivíduos normalmente são bastante amistosos.
"A diferença reside basicamente nas principais características selecionadas para a obtenção da raça. Há muitas que foram produzidas selecionando-se traços morfológicos, como formato do corpo, pelagem, etc. Outras tiveram como base principal as habilidades de trabalho, como pastoreio, proteção, caça, etc.", explica.
"Neste processo, há também a seleção indireta de algumas características que podem ser até mesmo propensão a determinados problemas de saúde, como visto no caso de buldogue inglês e mesmo o cavalier king charles spaniel", complementa a bióloga.
Cães e crianças de uma mesma família constroem uma relação semelhante ao vínculo encontrado entre irmãos — Foto: ( Unsplash/ Zachary Kadolph/ CreativeCommons)
Ademais, apesar de serem animais conhecidos pela relação com os seres humanos, existem cães que não apresentam afeto a nenhum homem. Aliás, a maioria dos cachorros do mundo (>75%) são animais urbanos de vida livre e, assim sendo, podem nunca desenvolver um vínculo com uma pessoa.
"De muitas maneiras, este é o seu estado natural. Se os cães que não são socializados com os humanos no início da vida são trazidos para as casas, isso pode ser muito desafiador para eles. Mesmo alguns animais de estimação socializados podem ser mais independentes do que outros, e isso pode ser simplesmente devido à sua natureza individual ou aspectos de sua educação", diz Monique.
Por fim, é preciso dizer que cada relacionamento é único, mesmo entre espécies diferentes. Nem sempre o cachorro de uma raça conhecida por ser sociável assim o será com determinado tutor – o tipo e a qualidade do relacionamento são determinados pelo tempo, tipo e gênero das interações que dois indivíduos compartilham.
"Há também diferenças culturais. Descobrimos em nossa pesquisa nos Estados Unidos que muitos cães de estimação compartilham laços com seus cuidadores principais que se aproximam das relações entre pais e filhos (da perspectiva dos animais). Muitos humanos também relatam ver seus cachorros como membros da família ou crianças", explica Monique.
"Descobrimos recentemente que algumas relações entre cães e crianças de uma mesma família são mais semelhantes em termos de comportamento e tipo de vínculo aos relacionamentos entre irmãos. No entanto, também sabemos que existem outros tipos de relações entre cachorros e humanos (por exemplo, de trabalho, de acolhimento, etc.)", completa.
De acordo com Helena, em contextos familiares, o sentimento envolvido com maior predominância certamente deve ser o afeto, a amizade. "Nestas relações, cães enxergam os humanos da família de uma forma semelhante ao que ocorre nos vínculos entre pais e filhos, e então, além do afeto, vem também o respeito", diz.
Já a submissão normalmente é observada em outras situações, não sendo um estado emocional propriamente dito e sim uma condição transitória, dependente do contexto e dos indivíduos ali envolvidos. "Eu diria que está frequentemente associada a situações que eliciam emoções como medo. E medo não é respeito", finaliza.
Fonte:https://vidadebicho.globo.com/comportamento/noticia/2022/07/por-que-o-cachorro-e-considerado-o-melhor-amigo-do-homem.ghtml
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