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“Entrando no Bardo”
Joanna Macy
O texto a seguir foi publicado originalmente em inglês em Emergence Magazine.
Esta tradução, feita por Ormando MN e revisada por Bruna Buch, é publicada aqui com a autorização da revista. Veja o texto original clicando aqui.
Neste editoral de opinião, a eco-filósofa e erudita budista Joanna Macy nos introduz ao ‘bardo’ — o conceito budista-tibetano de um vão entre mundos onde a transição é possível. Conforme a pandemia revela um colapso contínuo e segura um espelho em frente aos nossos males coletivos, ela escreve, temos a oportunidade de entrar em um espaço de reimaginar.
Nós estamos em um espaço sem um mapa. Com a probabilidade de colapso econômico e catástrofe climática que se aproxima, parece que estamos em um terreno inconstante, onde velhos hábitos e velhos cenários não se aplicam mais. No budismo tibetano, tal espaço, ou vão entre os mundos conhecidos, é chamado de ‘bardo’. Ele é assustador. É também um lugar com potencial de transformação.
À medida que você entra no bardo, o Buda Akshobya está lá, de frente para você. O elemento dele é a Água. Ele está segurando um espelho, pois seu dom é a Sabedoria do Espelho, refletindo tudo exatamente como é. E o ensinamento do espelho de Akshobya é este: Não olhe para outra direção. Não desvie o seu olhar. Não evite ver. Esse ensinamento claramente pede uma atenção radical e uma aceitação total.
Nos últimos quarenta anos, venho cultivando uma forma de trabalho em grupo experiencial chamada Trabalho que Reconecta. É uma estrutura para mudança pessoal e social diante das crises esmagadoras — um modo de transformar o desespero e a apatia em ação colaborativa. Assim como a Sabedoria do Espelho de Akshobya, o Trabalho que Reconecta ajuda as pessoas a dizer a verdade sobre o que elas vêem e sentem que está acontecendo com nosso mundo. Ele também as ajuda a encontrar a motivação, as ferramentas e os recursos para participar da nossa auto-cura coletiva.
Quando nos reunimos para esse trabalho, no princípio discernimos três histórias ou versões da realidade que estão moldando nosso mundo, para que possamos vê-las com mais clareza e escolher qual delas queremos que fique para trás. A primeira narrativa que identificamos é a “Business as Usual”, com a qual nos referimos à economia do crescimento, ou ao capitalismo corporativo global. Ouvimos esta ordem de marcha¹ de praticamente todas as vozes do governo, das corporações de capital aberto, dos militares e da mídia controlada pelas corporações.
¹ Ordem de marcha: Em terminologia militar, as ordens de marcha são instruções de um oficial superior para que as tropas ajam ou se movam.
A segunda chama-se “O Grande Desmoronamento”: um colapso contínuo das estruturas vivas. Isso é o que acontece quando os sistemas ecológicos, biológicos e sociais são transformados em mercadoria através de uma sociedade do crescimento industrial ou um sistema “business as usual”. Eu gosto do termo “desmoronamento”, porque os sistemas não caem mortos, eles se desgastam, perdendo progressivamente sua coerência, integridade e memória.
A terceira história é a aventura central do nosso tempo: a transição para uma sociedade que sustenta a vida. A magnitude e o escopo dessa transição — que está bem encaminhada quando sabemos onde procurar — é comparável à revolução agrícola de uns dez mil anos atrás e à revolução industrial de alguns séculos atrás. Os pensadores sociais contemporâneos têm vários nomes para ela, tais como a revolução ecológica ou de sustentabilidade; no Trabalho que Reconecta a chamamos de a Grande Virada.
Simplificando, nosso objetivo com esse processo de nomeação e reconhecimento profundo do que está acontecendo com nosso mundo é sobreviver às duas primeiras histórias e continuar trazendo cada vez mais pessoas e recursos para a terceira história. Através desse trabalho, podemos optar por nos alinhar com o “business as usual”, com o desmoronamento dos sistemas vivos, ou com a criação de uma sociedade que sustenta a vida.
Nos últimos dois anos, alguns de nós envolvidos nesse trabalho reconheceram que, dado o ritmo do Grande Desmoronamento, estamos caminhando para o colapso econômico e, de fato, civilizacional. Nosso pensamento foi auxiliado pelo trabalho de Adaptação Profunda de Jem Bendell, que procura se preparar para — e viver com — o colapso da sociedade. Gostaria também de agradecer as contribuições anteriores, na Europa francófona, de Pablo Servigne e Raphael Stevens — cujo trabalho presciente se concentra no colapso e na transição, e só agora está sendo publicado em inglês.
Como a economia mundial atual não tem sido capaz de reduzir as emissões de gases de efeito estufa nem mesmo na menor fração de um grau, agora parece óbvio que não podemos evitar a catástrofe climática. Muitos de nós tínhamos suposto que a Grande Virada poderia evitar tal desintegração, mas agora reconhecemos a Grande Virada como um processo e um compromisso para nos ajudar a sobreviver ao colapso da economia do crescimento industrializado. A motivação e as habilidades que adquirimos ao nos engajarmos no Trabalho que Reconecta proporcionam a orientação, a solidariedade, e a confiança necessárias para atravessarmos esse inevitável colapso.
Existem muitas dimensões nesse trabalho que abordam as questões psicológicas e espirituais da época, e eu encontrei uma ressonância frutífera entre o pensamento budista e a ciência pós-moderna: muito do Trabalho que Reconecta foi influenciado pelos ensinamentos budistas. Agora penso na Grande Virada como algo parecido com bodicitta, a intenção de servir a todos os seres. Esse é o estado mental do bodisatva — o ser que, com sua grande compaixão, atrasa o próprio nirvana para lidar com o sofrimento do mundo. Lembro-me de meus professores tibetanos me dizendo que o bodicitta é como uma chama de fogo no coração, e muitas vezes eu posso sentir ela lá.
Agora pode parecer bastante claro quem está segurando o espelho de Akshobya — é a COVID-19. O coronavírus nos atingiu rapidamente. Não sabíamos nada sobre ele há pouco tempo atrás. Primeiro, ele nos obrigou a fazer uma pausa para que pudéssemos assimilar o que o espelho está refletindo. Temos estado tão ocupadas e distraídas em nossas diferentes versões da “corrida de ratos”² que não temos sido capazes de prestar atenção à nossa situação real. Tivemos que parar de correr para ver quem somos, o quê somos, e onde estamos.
² Corrida de ratos: Expressão que indica uma competição por sucesso, riqueza e poder.
A COVID-19 nos lembra que o apocalipse — em seu significado antigo — conota revelação e desvelamento. E o que ela desvelou? Uma pandemia tão contagiosa que revelou imediatamente nosso sistema de saúde fracassado, e a nossa total interdependência. A necessidade de priorizar a natureza coletiva do nosso bem-estar subiu drasticamente até a superfície, especialmente dentro do nosso país (Estados Unidos), que é o país mais hiper-individualizado do mundo. Como disse Malcolm X, “Quando mudamos o ‘eu’ para o ‘nós’, até mesmo a doença se transforma em bem-estar”. (“When we change the ‘I’ for the ‘We,’ even Illness becomes Wellness”)
Os padrões de contágio lançam luz sobre o que mais precisamos ver: as casas de repouso, onde os idosos são armazenados; a indústria de empacotamento de carne, tão perigosa para os trabalhadores amontoados, tão cruel para os animais, que custa tanto para o clima; as prisões, onde milhões estão trancados, agora se transformando em placas de Petri³ de contaminação; as falhas geológicas da desigualdade racial na nossa sociedade, agora desnudadas nos impactos desproporcionais da pandemia sobre as comunidades negra, parda e indígena. Sessenta por cento dos casos são de afro-americanos — graças às condições pré-existentes fomentadas pelas desigualdades na assistência médica e pelo racismo ambiental.
³ Placas de Petri: recipiente que os profissionais de laboratório utilizam para cultivar microorganismos.
Além disso, o assassinato de George Floyd não apenas revelou o racismo e a brutalidade de nossa cultura policial, mas despertou protestos inéditos, varrendo o país e exigindo o des-financiamento, e até mesmo a abolição, dos departamentos policiais e dos sindicatos.
Tanto globalmente como nos EUA, muitos de nós estamos descobrindo uma nova solidariedade na nossa determinação de ir além do racismo doente que herdamos. Nesta Insurreição, sou inspirada pela coragem, criatividade e perseverança daqueles que se envolvem em manifestações públicas, que estão influenciando muitos funcionários públicos a agirem — membros de conselhos municipais, agências, e até mesmo departamentos de polícia. Não é de se admirar que o bardo representa um lugar onde o desconhecido, mesmo o inconcebível, pode acontecer, e onde nós, que entramos, estamos profundamente mudados.
Quando ousamos enfrentar as cruéis realidades sociais e ecológicas a que estamos acostumados, nasce a coragem, e os poderes dentro de nós são liberados para reimaginar e, até mesmo, talvez um dia, reconstruir um mundo.
Não olhe para outra direção. Não desvie o seu olhar. Não evite ver.
— Joanna Macy, Julho de 2020
Imagem do Buda Akshobya: The Jina Buddha Akshobhya, Folio from a Pancharaksha (The Five Protective Charms). Courtesy of LACMA – Fonte: Emergence Magazine
Joanna Macy, PhD, é ativista ambiental, escritora, estudiosa do budismo, da Teoria Geral de Sistemas e uma das principais disseminadoras da Ecologia Profunda na atualidade.
Como professora raiz do Trabalho Que Reconecta, ela e uma rede de seres criaram uma estrutura teórica inovadora para a mudança pessoal e social, bem como uma poderosa metodologia prática para sua aplicação.
- Fonte:https://trabalhoquereconecta.com.br/entrando-no-bardo/
Sinopse Completa
O Bardo Thodol, apropriadamente intitulado por seu organizador, W. Y. Evans-Wentz, como O Livro Tibetano dos Mortos, é uma coleção de fragmentos de textos tibetanos religiosos originários de uma compilação do século XVII feita por Rigdzin Nyima Dragpa. São “capítulos” de uma obra muito maior chamada As Cem Divindades Pacíficas e Coléricas: A Libertação Natural [Através do Reconhecimento] da Intenção Iluminada, que foi encontrada em meio a muitos outros manuscritos antigos em meados do século XIV por Karma Lingpa. Esse texto aborda as perspectivas budistas tibetanas sobre a morte e a experiência da morte, os estados alucinatórios de transição (ou Bardo) entre vidas e o processo de renascimento. Agora, em edição totalmente revista, o livro traz um conjunto de instruções para os mortos, um guia dos fenômenos do reino do Bardo, esse estado de existência que continua por 49 dias após a morte até a próxima reencarnação.Do livro “O despertar do buda interior”
de Lama Surya DasAgora que o bardo da morte desponta diante de mim,
Eu vou parar de prender as coisas, de desejar e me apegar,
Vou entrar sem distrações na clara percepção dos ensinamentos,
E ejetar a minha consciência para a dimensão da percepção não nascida.
Quando eu deixar este corpo composto de carne e sangue,
Saberei ser ele apenas uma ilusão passageira.Padma Sambhava em O LIVRO TIBETANO DOS MORTOS
Nos ensinamentos tibetanos, a morte é mais um momento no qual devemos praticar a atenção plena. Lembrar-se da inevitabilidade de nossa morte, encarar o fato inescapável da nossa própria mortalidade e da impermanência de todas as coisas, pode ser a mais liberadora das meditações, porque apresentar a realidade das coisas como realmente são, ajuda a desalojar o egoísmo grosseiro, o apego e a miopia – colocando nossas vidas na perspectiva correta.
A morte é um espelho, que reflete e ilumina tanto a vaidade quanto o sentido de nossas vidas. A morte é o momento da verdade, quando nos encontramos com a realidade face a face. Para todos nós, é também um momento de oportunidade, quando podemos atingir nossa natureza original. A morte é mais certa do que o amor, e com certeza aguarda a todos nós na doença ou na velhice. A sabedoria perene nos diz que deveríamos nos preparar para o nosso fim, o que nos tornará melhor preparados para viver – ou morrer – de forma iluminada.
Diz-se que na morte apenas duas coisas contam: o que fizemos em nossas vidas e o estado interior que temos na hora de morrer. Estes dois fatores determinam o que vem depois. Buda ensinou que a experiência real do momento de morrer é crucial para o próximo renascimento, e que no momento da morte ocorrem experiências espirituais extraordinárias que oferecem um portal para a grande liberação. Portanto, a atmosfera física e os estados de espírito daqueles que estão ao redor do moribundo são extremamente importantes, e paz, conforto, gentileza, amor, aceitação e harmonia ajudam a guiar o morto, da melhor maneira possível, em sua travessia.
Tradicionalmente no Tibet, o Bardo Thodol, conhecido no ocidente como o livro tibetano dos mortos, é lido na cabeceira da cama de alguém que está morrendo, tanto na hora da morte como por vários dias subseqüentes. Ele é uma meditação guiada, lida em voz alta, normalmente por um lama, para ajudar a direcionar o morto ou o moribundo através dos vários estados de transição no bardo. Este maravilhoso livro antigo é uma escritura de sabedoria que nos conduz à liberdade e à iluminação através do reconhecimento da clara luz da realidade na hora da morte, e depois. Ele também mostra como reconhecer e atingir a clara luz (a qualidade luminosa inata da mente natural) dentro de cada um de nós, nesta vida. Apesar de ter sido ostensivamente escrito para oferecer ao morto ou moribundo conforto, orientação e libertação pela audição, o Bardo Thodol também nos mostra como viver, porque cada momento é tanto um nascimento quanto uma morte.
Bardo1 é uma palavra tibetana que significa "No meio" ou "Em transição". Ensina-se que existem ao todo seis estados de bardo, acabam oferecendo suas oportunidades específicas. Três delas ocorrem quando ainda estamos vivos: o bardo desta vida cobre o período inteiro desde que nascemos até a nossa morte; o bardo da meditação se refere ao estado meditativo quando conseguimos reconhecer nossa natureza búdica; e o bardo do sonho ocorre quando dormimos, e também pode ser usado para treinar a mente.
Os outros três estados de bardo cobrem o período entre a morte e o renascimento, e constituem o foco primário do Livro Tibetano dos Mortos.
O Bardo da Morte
Este bardo se refere ao processo de morrer em si. No Tibet, a morte é considerado um processo de purificação, porque estamos voltando para clara luz, nosso estado natural intrínseco de luminosidade – estamos nos dissolvendo nele. No momento da morte, esta clara luz da realidade desponta para cada um de nós. É a nossa própria natureza radiante, algumas vezes chamada de Rigpa – o estado desperto e iluminado. Entretanto, para podermos realmente nos beneficiar deste "Momento da Verdade" e atingir a libertação, precisamos estar preparados. Se não, ele vai nos escapar rapidamente. Como a maioria de nós ainda está ligada aos hábitos e padrões de comportamento estabelecidos em vida, não reconhecemos a luminosidade pelo que ela é. Reagimos de forma não apropriada e inconsciente. Em vez de mergulharmos nela, em um ato de fé, nos entregando à luminosidade, nos fundindo nela. E assim o momento passa. As instruções de Kalu Rinpoche para esse momento de grande luminosidade foram: "Solte o corpo e a mente, e dissolva-se na clara luz da luminosidade interior. Reconheça o raiar da clara luz e se liberte neste instante. Enxergue além das ciladas, do dualismo da vida e da morte".
O Bardo do Dharmata (Realidade)
Neste segundo estado de bardo, temos outra oportunidade de atingir a libertação. Kalu Rinpoche dizia que a coisa mais importante para nos lembrarmos aqui é que, como nos sonhos, tudo o que veremos aqui é criação de nossas mentes, e pode ser mudado, da mesma forma que se pode acordar dentro dos sonhos e alterá-los. Neste estado, é como se sonhássemos, e nada mais pode realmente nos fazer mal. A libertação pode ocorrer se conseguirmos apagar a resistência e as dúvidas, soltar tudo e nos entregarmos à luminosidade inata da mente natural. Se não pudermos fazer isso, então o próximo bardo inexoravelmente começará.
O Bardo do Vir-a-Ser
Neste terceiro estado de bardo pós-morte, nossas percepções estão voltando. Novamente, temos preferências e aversões, e somos atraídos para lugares e pessoas que nos são familiares. À medida que nossos apegos, paixões e propensões cármicas começam a se afirmar, estamos nos aproximando do renascimento. Nesse momento, faríamos bem em voltar nossas mentes para as intenções do bodhisativa, que são beneficiar e servir todos os seres sem exceções. Livres das ciladas da atração e da repulsão, devemos procurar o meio ambiente oportuno para exercer o voto de bodhisativa. Se você achar que está neste estado do bardo, através da coragem destemida e da visão pura, vá além e abandone sua atração e seu desejo pelo homem e mulher que se unem em união sexual. Em vez disso, perceba este casal amoroso, que serão seus novos pais, como um casal búdico – Sr. e Sra. Sabedoria e Compaixão. Graciosamente, entre neste templo humano e encontre sua nova vida.
Vivendo a Morte: Uma Meditação
Todos nós temos que nos defrontar com as questões da vida e da morte. Quer seja a morte de um familiar idoso ou o nascimento de um filho, o nascimento e a morte são parte da vida. A filosofia, a ciência, a religião, as artes lidam com a vida e a morte, e com a morte ou renascimento. Todos nós nos perguntamos o que acontece quando morremos. Será que a morte é o nosso fim? E o que isso significa para nós? Como podemos dar mais sentido às nossas vidas?
Existem diversas religiões e culturas, mas todas compartilham de pelo menos um princípio comum: todas têm ritos, rituais e especialistas para lidar com a morte e o morrer. Estes ritos nos oferecem conforto e segurança diante da precariedade e da insegurança da existência. Será que continuamos? Será que atingimos um fim abrupto? Não existe mais nada? E o céu? E o inferno? Existe vida depois da morte? Vamos nos defrontar com Deus ou com o carma? Verdade ou conseqüência? Como podemos ter certeza de qualquer coisa? Isso pode ser verificado ou estão nos pedindo para acreditar e confiar em um mito ou na imaginação? Devemos acreditar nas pessoas que dizem ter voltado das experiências de quase morte? Devemos acreditar em Edgar Cayce e nos outros videntes? Devemos acreditar nos lama encarnados, muitos dos quais dizem que se lembram de vidas passadas e parecem ter algum controle consciente sobre o processo – como se estivessem evoluindo, por escolha, através de diferentes níveis da escola espiritual? Como podemos saber? Quem sabe?
Os budistas perceberam há muito tempo que contemplar a própria mortalidade é uma prática que ajuda a ter foco e estabelecer prioridades. A vida espiritual, a jornada de despertar e dar sentido às nossas vidas enquanto aprendemos a amar, é na verdade uma questão tanto de vida quanto de morte. A precariedade da vida nos ajuda a permanecer totalmente dispersos no aqui agora.
O que o budismo tibetano nos oferece, juntamente com seus ensinamentos pragmáticos e éticos, é uma forma de lidar com a própria experiência da morte – uma forma de encarar a morte no momento presente. Este treinamento pode nos ajudar muito a lidar com o momento da morte. Passamos a apreciar mais, estar mais atentos e mais abertos a cada momento da vida, que se torna mais pungente devido à sua absoluta impermanência.
Ao aprender a deixar esta vida ir embora, aprendemos também a viver cada momento sem arrependimentos. Aprendemos a tomar decisões sem arrependimentos. Cada decisão se torna a decisão certa. Quando aprendemos a largar as coisas em vida, abandonamos nossos rancores, obtemos o perdão e nos aliviamos do fardo do ressentimento, da amargura e da hostilidade. Assim, encontramos uma conclusão e podemos soltar velhas tristezas e antigas queixas, deixando estes padrões congelados morrerem. É assim que morremos sem arrependimentos, enquanto aprendemos a viver de novo. Aqui, neste momento. Respiração por respiração. Eis aqui uma meditação que nos ajuda a fazer isso:
Respire profundamente relaxe. Deixe tudo se acomodar. Esteja totalmente presente, naturalmente presente, sem esforço. Você está se sentando por um instante, um instante eterno. Não perca o momento. Só existe este.
Sinta tudo, como é. Esteja presente, alerta, desperto e relaxado. Abra-se para a presença sem esforço, para a consciência pura. A presença total. Tenha consciência de estar consciente, uma percepção luminosa, sem centro, aqui e agora. Deixe que tudo aconteça sem esforço, de forma transparente. Abandone o controle, a manipulação e o julgamento.
A cada respiração, solte um pouco mais. A cada respiração, solte, relaxe, abra e centre-se cada vez mais profundamente. Cada expiração é uma pequena morte. Simplesmente esteja com a expiração, e a cada expiração solte um pouco mais. Um pouco mais … solte os nós do seu psiquismo. Relaxe. Largue tudo. Solte a tensão dos ombros, expire-a. Expire aquele pensamento, aquela lembrança, solte, solte, solte…
Solte a expiração. Morra um pouco a cada expiração. Morra no momento presente. Qualquer sensação sinta, deixe-a partir. Largue o corpo, largue a mente, largue os pensamentos e a personalidade. Largue tudo. Solte. Largue sua auto-imagem, sua casa, suas posses, seus planos, sua carreira. Solte. Tudo está perfeitamente resolvido na mente natural que não nasce nem morre.
Abandone as tentativas de controlar a mente. A cada expiração, solte. Aperte a embreagem do desapego espiritual e desengrene a marcha. A cada expiração, solte mais alguma coisa – o que vier à cabeça, uma sensação, uma emoção, um sentimento, um relacionamento uma pessoa, um medo, uma posse. Respiração à respiração, momento a momento – simplesmente solte tudo. Habitue-se a evoluir, a se transformar, a passar sem resistência, sem se agarrar, sem apegos. Respiração a respiração, vá soltando. Deixe todos fenômenos ilusórios irem embora.
A cada respiração, perdoe aos outros. Perdoe às pessoas de seu passado – aquelas com quem não tem mais contato, e também as que ainda estão ao seu redor. Perdoe a sí. Aceite os outros como são. Aceite totalmente a si mesmo. Deixe tudo ser como é. Isto é a sabedoria em ação. A cada respiração, abandone o medo, a expectativa, a raiva, o arrependimento, o desejo, a frustração, a fadiga. Abandone a necessidade de aprovação. Abandone os velhos julgamentos e as opiniões. Morra para tudo isto, e voe livremente. Eleve-se na liberdade da ausência de desejos.
Solte. Deixe. Veja através de tudo seja livre, completo, luminoso e volte para casa.
Com este tipo de meditação, as camadas sutis que formam quem nós somos começam a se arrumar, e nós penetramos mais profundamente no nosso estado natural – o estado despojado do ser autêntico. Isto é uma transformação ocorrida aqui e agora. Um renascimento espiritual.
Nota
1. período
- Vivendo e morrendo conscientemente
http://www.nossacasa.net/shunya/vivendo-e-morrendo-conscientemente/
Bardo (budismo)
Bardo (em sânscrito: Antarabava) é, para o budismo tibetano, um estado de existência intermediária entre a morte e o renascimento.
São quatro os principais bardos:
- Bardo do local de nascimento
- Bardo do momento da morte
- Bardo da verdadeira natureza dos fenômenos
- Bardo do renascimento ou do vir a se
O bardo do local do nascimento contém, ainda, mais dois bardos:
- Bardo dos sonhos
- Bardo do estado de meditação
- Bardo estado da pessoa entre a vida e a morte
Totalizando, assim, seis bardos.
Uma obra fundamental do budismo tibetano é o Bardo Thodöl (literalmente, "libertação do estado intermediário"), conhecido também como "Livro Tibetano dos Mortos". É um texto sagrado que é lido a fim de instruir a consciência de um morto de modo que ela saiba como se dirigir à iluminação nos estados pós-morte. Trata-se da principal prática budista tibetana, ou seja, a transferência da consciência (phowa).
Ver também
- Estado intermediário - conceito similar no cristianismo
- Barzakh - conceito similar no islamismo
Fontes
- EVANS-WENTZ, W.Y. (org.). O livro tibetano dos mortos. 4.ed. São Paulo: Pensamento, 1994. ISBN 8531503787
- KHADRO, Chagdud. P'Howa Commentary - instructions for the practice os consciousness transference as revealed by Rigdizn Longsal Nyingpo. Junction City: Padma Publishing, 1998. ISBN 1881847101. (há tradução em português).
- RINPOCHE, Chagdud Tulku. Vida e Morte no Budismo Tibetano. Três Coroas: Rigdzin, 2000. ISBN 8586227072.
O Livro Tibetano dos Mortos
Parte de uma série sobre Budismo PráticasBardo Thodöl (em tibetano: བར་དོ་ཐོས་གྲོལ; transliteração Wylie: bar-do thos-grol; AFI: [pʰàrdo tʰǿɖøl], onde bardo é "transição" e thodol é "libertação")[1], denominado também de A Grande Libertação Pela Auscultação Durante os Estados Intermediários ou Liberação Através da Escuta, é um texto pertencente a um corpus maior de ensinamentos, o "Darma Profundo da Autoliberação Através da Meditação nos Deuses Pacíficos e Irados". No Ocidente, é chamado de O Livro Tibetano dos Mortos, como referência ao Livro dos Mortos do Antigo Egito.
É um texto tido como sagrado no Tibete, cuja intenção é guiar a consciência de uma pessoa através de momentos a serem experienciados por ela após a morte – intervalo, segundo o texto, compreendido entre a morte e o renascimento. Além disso, o livro contém capítulos que abordam os sinais da morte e os rituais a serem realizados para o funeral do corpo. Seu conteúdo é fundamental para os processos de iniciação das escolas budistas tibetanas.
Pertencente à literatura Nyingma, é o texto tibetano mais célebre e difundido internacionalmente.[2] A tradição do budismo tibetano considera-o como um dos maiores "tesouros da terra" (gter ma), cuja compilação, datada do século VIII d.c., se atribui ao grande mestre do Tibete, Padmasambhava. Por ordem sua, o livro foi escondido para que no futuro fosse encontrado. Assim, em meados do século XIV, como almejado, o tertön (que em tibetano significa "descobridor de tesouros da prática budista"), Karma Lingpa (1326–1386), o encontrou no interior de uma gruta nos arredores do Himalaia.
No Ocidente, foi dado a conhecer pela primeira vez em 1927, através da tradução de W. Y. Evans-Wentz para o inglês.
História
Não se sabe ao certo há quantos milênios surgiu o conteúdo do Bardo Thodöl. Trata-se de uma tradição oral, transmitida ao longo do tempo, não existindo registros de sua origem. Oriunda da antiga religião Bön, a análise e compilação a partir de várias versões do livro somente ocorreu no século VIII d.c., com supervisão de Padmasambhava (o grande santo Guru Rinpoche, o primeiro lama, tido pela sociedade tibetana como a segunda encarnação de Sidarta Gautama, o Buda).
O Livro Tibetano dos Mortos afirma não apenas que a consciência persista após a morte, mas também que é possível morrer de modo que seja atingido a clareza da consciência e a compreensão do real.
Na tradição tibetana, o livro é lido por um monge a um moribundo, geralmente em voz alta, e continua a ser recitado por 49 dias (7 semanas) mesmo após seu falecimento. Os tibetanos acreditam que ainda após a morte o princípio de consciência permanece em contato com o local de falecimento e ainda pode assimilar as mensagens transmitidas pelo monge. Dessa forma, acredita-se que uma pessoa que passe pela "grande cirurgia da morte" com conhecimento sobre "o outro lado da vida" pode, como indica o livro, saber como se conduzir nos diferentes estados de consciência nos planos pós-morte.
Nesse sentido, o Livro dos Mortos do Antigo Egito possui intenção semelhante: auxiliar o moribundo na passagem pelo limiar da morte e servir como guia para a vida da alma.
O livro foi revelado ao ocidente pelo doutor T. W. Evans-Wentz, pesquisador da Universidade de Oxford, que traduziu e examinou seu conteúdo, lançando-o em 1927, e alcunhando-o de "Livro Tibetano dos Mortos". Em uma de suas edições, C. G. Jung escreve um prefácio analisando o texto a partir de um ponto de vista psicológico. Jung declara ter sido um leitor assíduo do livro, devendo a ele muitas de suas ideias fundamentais. Ao afirmar que este livro "revela os profundos segredos da alma", ele declara:
"Todo leitor sério forçosamente irá perguntar-se se estes antigos sábios lamas, afinal de contas, não poderiam ter vislumbrado mesmo outras dimensões, arrancando com isso o véu de um dos maiores mistérios da vida." [3]
Conteúdo do livro
O conhecimento do texto, reconhecido como sendo uma das quintessências da filosofia mahaiana, é um poderoso guia para a consciência do moribundo atravessar os cambiantes fenômenos dos reinos pós-morte (os estados de consciência que continuam por, no mínimo, 49 dias após a morte, seguindo até a próxima encarnação). Segundo observa Evans-Wentz, o Bardo Thödol é um processo de iniciação cujo propósito é restaurar, no espírito do desencarnado, a divindade que ele perdeu ao nascer. O livro, em linguagem ricamente alegórica, além de alertar o espírito a guiar-se pelo grande caminho da libertação (que, segundo o budismo, significa a libertação de permanecer no eterno retorno dos ciclos de sofrimento do samsara), o livro o prepara para uma descida rumo à existência física – rumo ao renascimento.
Segundo o texto, a experiência do pós-morte surge como se a consciência despertasse de um sono profundo. O livro declara que, após a morte, a consciência se confronta com várias memórias, cenas, visões e aparições. Em cada um dos planos ocorre experiências e visões distintas e por vezes aterradoras. Assim, a leitura ritualística aconselha ao moribundo a atravessar todo o processo com total tranqüilidade e consciência desperta. Segundo o comentário do 14º Dalai-Lama:
"O importante não é somente a preparação para um renascimento futuro mais elevado, mas também, e num sentido ainda mais fundamental, a preparação pessoal do indivíduo para usar sua própria morte e os estados a ela subsequentes como meios para alcançar a emancipação da consciência."[4]
Para tanto, o livro indica que é necessário obter a seguinte compreensão: após a morte, tudo o que ver e experienciar lhe parecerá real, embora se trate fundamentalmente do conteúdo de sua própria mente projetado e tornado perceptível tal como se fosse realidade - ou seja, tudo o que vivenciar não será outra coisa senão suas próprias formas-pensamento. Assim, no plano do pós-morte, a consciência experiencia a vida a qual acabara de viver, mas sob uma nova perspectiva: em lugar de experienciar a realidade a partir de si e suas percepções, a consciência vivencia sua memórias a partir da realidade ao qual experienciou. Ao longo da leitura, o texto adverte sempre que as visões são apenas a projeção e emanação de sua própria consciência.
O livro insiste que a pessoa deve compreender que a primeira visão que lhe acometer, a percepção da irradiante "Clara Luz Primordial", é a visão do insight da consciência sobre a essencialidade de teu próprio ser - um vislumbre sobre as visões que emanam de sua própria mente. Assim, o livro atenta o moribundo a não se abalar com este vislumbre e a se identificar com ele. Caso não sinta afinidade, o livro preparando-o para a apreensão de visões subsequentes.
Segundo essa tradição, a única verdade é a Clara Luz, ou seja, o que se manifesta do vazio, pura consciência irradiante. Concentrar-se nessa Luz, e somente nela, é abandonar todos os afetos do Ego e atingir a consciência supramundana universal, a iluminação do Nirvana. Caso o espírito não tenha atingido a plena compreensão do processo, a alma acabará por cair novamente no mundo fenomênico e retornará ao ciclo samsárico de renascimentos.
Segundo o texto, o conteúdo da mente projetado e tornado visível dependerá das crenças e criações mentais anteriores. Assim cada pessoa obterá experiências totalmente diferentes umas das outras.
As formas e imagens descritas no livro são adaptadas à cultura tibetana, que possui uma visão própria do que ocorrerá após a morte. Por isso, o texto considera que o tibetano terá experiências típicas de seus costumes religiosos, mas o que está descrito pode variar de pessoa para pessoa e, consequentemente, de cultura para cultura, pois isso depende das experiências e concepções dos recém-desencarnados. Dessa forma, os cristãos ortodoxos, por exemplo, poderão ter visões sobre o purgatório, o inferno ou mesmo o paraíso. Tudo isso varia de acordo com a história, as crenças, memórias, pensamentos, sentimentos e expectativas com que cada um tem em vida.
O livro tem como objetivo último anular a queda da consciência que, alienada de si pelo egoísmo, perambula pelo caminho da ignorância por efeito da heresia da separatividade, procurando estabelecer na consciência a reconciliação com a unicidade absoluta (o Macrobios gnóstico), a Realidade Fundamental. O Bardo Thodol é um guia para aquele que não teve oportunidade de praticar em vida a percepção e o reconhecimento da essencialidade da mente. O livro é um guia para que o recém-falecido não se perca em suas próprias criações mentais e não caia em reinos inferiores de grande ignorância e sofrimento. Em um contexto mais amplo, o Bardo Thodol é um guia de transferência de consciência, uma prática conhecida como Powa[5]. A consciência do falecido pode ser conduzida para uma "terra pura", onde ele tem a oportunidade de praticar e reconhecer a natureza da mente, da qual ele teve um vislumbre como Clara Luz no início do Chikhai Bardo, o bardo do momento da morte.
"Se, através da sala da Sabedoria, pretendes alcançar a bem-aventurança, fecha completamente seus sentidos para a grande heresia da separatividade, que te abstém do Todo." [6] H. Blavatsky, em A Voz do Silêncio.
"183. Evitar todo o mal, cultivar o bem e purificar a mente - Este é o ensinamento dos Buddhas"[7]. Conforme Gautama, o Buda, ensina nos versos de Dhammapada.
Essas indicações assemelham-se significativamente às recentes pesquisas de Terapia de Vidas Passadas. Nas teorias baseadas em TVP, acredita-se que a alma se depara com suas criações mentais e expectativas e percebe aquilo mesmo que espera que aconteça.
Acredita-se também que há semelhanças entre o conteúdo do Bardo Todhöl e as pesquisas sobre a ação das moléculas de DMT na glândula pineal, bem como a relação das descrições do texto com as experiências de êxtase divino, uso de substâncias enteógenas, transe ritualístico, projeção da consciência etc. Atualmente, sabe-se que a glândula pineal é formada no feto após 49 dias, tempo semelhante descrito no livro ao período de perambulação da consciência através dos estados intermediários de existência.[8]
Os seis bardos
O Bardo Thodöl distingue seis bardos (estados de consciência). Em cada um dos bardos, a experiência do ser senciente tem qualidades distintas. Todos esses estados são intermediários, sendo possível, à consciência, distingui-los. A percepção do contraste entre um bardo e outro torna-se possível através do desenvolvimento da lucidez.
Segundo a tradição tibetana, existem técnicas de meditação específicas que correspondem a cada um desses estados com intuito de conduzir a consciência à percepção das qualidades fundamentais da mente e seus fenômenos.[4] Os três bardos do estados intermediários de consciência no plano pós-morte sãoː
- O Chikhai Bardo ou "bardo do momento da morte"ː é o bardo dos acontecimentos psíquicos no momento da morte, onde surge a experiência com a "Clara Luz Primordial", uma espécie de vislumbre efusivo da essencialidade da consciência.
- O Chönyid Bardo ou "bardo da experimentação da realidade"ː trata do estado de sonho que começa logo após a morte, o qual pode ser compreendido como a fase do surgimento das "ilusões cármicas" decorrentes das ações, pensamentos e experiências em vida.
- O Sidpa Bardo ou "bardo do renascimento"ː se refere aos impulsos e desejos de renascimento e aos estados psicológicos pré-natais.
O livro também menciona três outros bardos, ou estados intermediários de consciência no plano da vidaː
- O Rang bzhin Bardo – bardo da "vida", ou o estado de consciência desperta comum;
- O Bsam gtan Bardo – bardo do dhyana, ou estado de meditação profunda;
- O Rmi-lam Bardo – bardo do "sonho", o estado de sonho durante o sono normal.
A identificação da consciência com a Clara Luz pode ser entendida como o sétimo estado de consciência ou supra estado de consciência, o estado de pura quiescência.
"Ó nobre filho, ouça atentamente sem distrair-te. Existem seis estados de Bardo, que são: o estado natural do Bardo durante a vida; o Bardo do estado onírico (durante o sono); o Bardo do equilíbrio extático (da profunda meditação); o Bardo do momento da morte (Chikhai Bardo); o Bardo da experiência da Realidade (Chönyid Bardo); o Bardo do processo inverso da existência samsárica (ou o bardo do renascimento, Sidpa Bardo)... Ó nobre filho, é chegado o momento daquilo que denominam "morte"... Não te apegues mais a esta vida por fraqueza ou covardia... Não sejas fraco, não te apegues... Lembra-te que a preciosa verdade, agora, a ti se revelará..." [3] [p 71/72]
"237. A tua vida chegou agora ao fim; estás avançando para a presença de Yama, o rei da morte. No caminho não há nenhum lugar para descansares, no entanto não arranjaste provisões para a tua viagem!"[9] Gautama, o Buda, em Dhammapada.
1) A eternidade da consciência
A eternidade da consciência: a consciência que perfaz a realidade para si mesma persiste após a morte. Essa ideia é abordada em todo o livro, onde enfatiza claramente que a verdade não pode ser encontrada na rede de ilusões do mundo, mas apenas no esplendor da percepção dos planos superiores, que se dá através da ascensão da consciência (através do profundo conhecimento de si). Tanto o hinduísmo quanto o budismo afirmam que a rede de ilusões do mundo é gerada pelos "infinitos e sedutores tentáculos" da deusa Mahamaya, o Brahman dos Rishis, o Sonhador de Maya, o Tecelão da Teia das Aparências, a vida imersa na rede de ilusão do infinito ciclo de nascimentos e mortes – a consciência alienada vagando no Samsara.
2) Planos de existência
A existência de outros planos de realidade além do plano físico. O Bardo Thodöl descreve os diversos estágios ou níveis de percepção que se dão pela "ascensão" ou "queda" da consciência. Os planos de existência podem ser tomados como os planos onde a consciência se atém e está imersa.
3) A Clara Luz Primordial
Uma metáfora para descrever a percepção da manifestação da essência da consciência, da qual o livro chama de Clara Luz Primordial – a "luz que há no fim do túnel", como relatado em algumas experiências de quase-morte. O livro dizː "o teu ego e teu nome estão em fins de acabar. Estás pondo-te em frente à maravilhosa Clara Luz Primordial".[10] Para os lamas tibetanos, a compreensão da Clara Luz é o despertar do ser para a percepção de sua verdadeira natureza; é a percepção da luz que surge da essencialidade de si (rigpa nu). Através da identificação com este esplendor, o espírito obtém plena clareza sobre a realidade da consciência. O livro fala da existência da Clara Luz, mas vai além: diz que os níveis dessa luminosidade se estendem pelos seis bardos de existência.
4) A experiência da verdade
O livro afirma que a consciência adquire um estado de transcendência pura através do contato com a Clara Luz, "quando o corpo e a mente se separam, experimentas uma rápida visão da Verdade pura, sutil, radiante, brilhante, vibrante, gloriosa".[3] Esta experiência está associada à vasta e clara percepção da realidade através da desobstrução da consciência.
5) A compreensão da realidade
O princípio da compreensão da realidade, do vazio supraessencial: ausência de formas, objetos, tempo e espaço. "Não pensamento, não visão, não cor. É vazio". "Esse vazio não é o nada",[11] afirma o livro; mas é pleno de consciência e realidade – “O intelecto brilhante é silencioso, inabalável e cheio de felicidade. Este é o estado da perfeita iluminação, a final assimilação da Clara Luz”.
6) A perda do ego
Há três estados de perda dos invólucros ou camadas da consciência (das quais uma delas, para o espiritismo, se denomina perispírito), ou seja, três diferentes formas de expressar a individualidade no plano objetivo: etérico, astral e mental. "Agora vais experimentar três bardos. Três estados de perda do ego". O que o livro chama de "jogos de alucinações fantasticamente variados” são as formas percebidas por aqueles que acabaram de morrer, isto é, a visão das formas-pensamentos vividas e experimentadas nesta sua última vida. Segundo o livro, vemos aquilo que criamos mentalmente ao longo da vida. "Para ti, é suficiente saber que estas aparições são as formas de teus próprios pensamentos". Em outra parte, o livro ressalta que a libertação do jogo ilusório da existência é possível através da observação das formas psicológicas que atravessam nossa mente: "medita calmamente sobre o conhecimento de que estas visões são emanações de tua própria consciência. Desta maneira, podes obter conhecimento próprio e libertar-te. No retorno ao plano dos nascimentos e mortes, a alma aguarda sua libertação".[11]
7) O renascimento
O Livro Tibetano dos Mortos declara – assim como a TVP (Terapia de Vidas Passadas) – que é possível prever a personalidade da próxima vida, segundo o fluxo kármico do espírito. O Bardo Thodöl não dá detalhes sobre isso, mas indica: "É chegado o tempo de retornar. Faça a seleção de tua futura personalidade de acordo com os melhores ensinamentos. Escuta bem: os sinais e características do nível de existência a porvir aparecerão ante a ti em sinais premonitórios. Reconheça-os”.
8) A união com um feto
Pouco antes do nascimento, o futuro encarnado se vê compelido e desejando unir-se a um feto. Nesse sentido, o Livro Tibetano dos Mortos faz a seguinte afirmação: "Teu estado mental agora afetará seu posterior nível de ser". Isso prediz que, antes do nascimento, e mesmo antes da fase intrauterina, nosso estado mental e nossa predisposição psíquica podem influenciar a geração do feto, o nascimento e as tendências futuras. Neste caso, é notório observar as semelhanças destas ideias com as atuais pesquisas psicológicas sobre processos de regressão analítica à fase intrauterina.
Fundamentos
O livro aborda os seguintes fundamentosː
Referências
- ↑ Fremantle (2001: p.21): "Liberation is synonymous with the Sanskrit word bodhi, which means awakening, understanding, or enlightenment, and with nirvana, which means blowing out or extinction: the extinction of illusion."
- ↑ Dorje, Gyurme. "The Tibetan Book of the Dead.", A Brief Literary History of the Tibetan Book of the Dead. (Penguin Classics Deluxe Edition, 2007). Traduzido para o inglês por Gyurme Dorje. ISBN 978-0-14-310494-0.
- ↑ a b c WENTZ, Evans. O Livro Tibetano dos Mortos. [S.l.]: Pensamento
- ↑ a b Coleman, Graham (2010). O Livro Tibetano dos Mortos. São Paulo: Martins Fontes
- ↑ «Cintamani - Jóias do Dharma». Portal Cintamani. Consultado em 6 de abril de 2021
- ↑ BLAVATSKY, Helena (1953). A Voz do Silêncio. [S.l.]: Pensamento
- ↑ Gautama, O Buda. «Dhammapada - O caminho da Sabedoria do Buda» (PDF). Publicações - Mosteiro Budista Theravada. Consultado em 6 de abril de 2021
- ↑ «Cientista elabora estudo fascinante: A alma entra no feto durante a sétima semana de gestação Fonte: www.semprequestione.com/2016/04/cientista-elabora-estudo-fascinante.html»
- ↑ Gautama, O Buda. «Dhammapada - O caminho da Sabedoria do Buda» (PDF). Publicações - Mosteiro Budista Theravada. Consultado em 11 de abril de 2021
- ↑ WENTZ, EVANS (2008). O Livro Tibetano dos Mortos. [S.l.]: Pensamento
- ↑ a b WENTZ, Evans. O Livro Tibetano dos Mortos. [S.l.: s.n.]
Ligações externas
O Commons possui uma categoria com imagens e outros ficheiros sobre O Livro Tibetano dos Mortos- Bardo Thodol - versão (PDF) em domínio público (em inglês)
- The Tibetan Book of the Dead - Ebook (em inglês)
- O Significado da Prece Vajra de Sete Linhas a Guru Rimpoche
- Dhammapada - O Caminho da Sabedoria do Buda - versão em PDF
- Fonte: WIKIPÉDIA
O Livro Tibetano dos Mortos
O Bardo Thödol, intitulado mais apropriadamente por seu organizador, W.Y.Evans-Wentz, O livro tibetano dos mortos, pertence a uma categoria de escritos que não se resumem a um estudo específico do Budismo Mahayana, mas conté REDAÇÃO
| Atualizado- Fonte:https://www.seculodiario.com.br/cultura/o-livro-tibetano-dos-mortos
Os Bardos e o Theravada
Por
Michael Beisert
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De outra forma todos os direitos estão reservados.Os suttas no Cânone em pali indicam que o Despertar pode ser alcançado nesta mesma vida ou no momento da morte. O Sasankhara Sutta descreve justamente esses dois processos. Na realização do Despertar no momento da morte, que é o tema deste ensaio, o sutta diz o seguinte:
"Como, bhikkhus, uma pessoa realiza nibbana através do esforço na dissolução do corpo? Aqui, um bhikkhu permanece contemplando as coisas repulsivas no corpo, percebendo as coisas repulsivas na comida, percebendo o não-deleite com tudo no mundo, contemplando a impermanência em todos os fenômenos condicionados; e ele tem a percepção da morte bem estabelecida internamente. Ele permanece na dependência destes cinco poderes de um treinando: o poder da fé, o poder da vergonha de cometer transgressões, o poder do temor de cometer transgressões, o poder da energia, o poder da sabedoria. Estas cinco faculdades nele surgem com debilidade: as faculdades da fé, energia, atenção plena, concentração, e sabedoria. Porque essas faculdades são débeis, ele realiza nibbana através do esforço na dissolução do corpo."
Como pode ser observado não há menção aos jhanas e por conseguinte podemos deduzir que a "debilidade das faculdades" estaria conectada justamente com o não desenvolvimento dos jhanas, ou apenas com uma experiência superficial dos jhanas sem a sua maestria. Também é possível deduzir que a faculdade da sabedoria também deve ser débil nesse praticante, apesar da prática das contemplações.
A questão que surge é qual o momento em que nibbana é realizado. O sutta fala em "dissolução do corpo" (khayassa bheda). Na maioria dos suttas essa expressão é seguida de "após a morte" (param marana). A omissão parece deliberada. Talvez o propósito seja indicar que: primeiro há um intervalo entre a dissolução do corpo e a morte, e segundo, que a pessoa sendo descrita realiza nibbana nesse intervalo sem dar continuidade a uma nova existência.
Isso nos remete ao conhecido Livro Tibetano dos Mortos. Esse livro descreve os Bardos que são os estados intermediários que ocorrem no processo da morte e renascimento. Há seis Bardos que compõem esse processo que podem ser condensados em três: a mente luminosa, a manifestação de karma, o renascimento.
Vale lembrar que na literatura clássica do Theravada, particularmente no Abhidhamma, esses estados intermediários não são reconhecidos e a consciência de renascimento surge imediatamente após a morte. Nesse caso há uma clara dissonância com aquilo que aparece nos suttas em que um estado intermediário, que apesar de não ser mencionado explicitamente, pode com facilidade ser deduzido.
O que vou apresentar a seguir é uma versão retrabalhada da descrição dos primeiros Bardos, nos quais ocorre a manifestação da mente luminosa. Os demais Bardos não serão abordados neste ensaio. Na descrição desses primeiros Bardos deixarei de lado aqueles elementos que dizem respeito a entendimentos e práticas típicas do Budismo Tibetano que não fazem parte do contexto do Theravada. A idéia é oferecer meios para entender do que se trata e como se beneficiar desse período intermediário entre a "dissolução do corpo" e a "morte" mencionados acima.
A Grande Libertação através da Audição - Livro Tibetano dos Mortos
Esta grande libertação através da audição deve ser lida com clareza e precisão junto ao corpo da pessoa morta. Se o corpo não estiver presente, deve-se sentar na cama ou num assento da pessoa morta, e proclamando o poder da verdade, invocar a sua consciência e ler imaginando que ela está na escuta à sua frente. Neste momento sons de choro e lamentação não são bons, por isso os seus parentes não devem estar presentes. Se o corpo estiver presente, então durante o intervalo entre a cessação da respiração e a cessação da pulsação nas artérias, o seu professor ou um amigo espiritual que ela amava e confiava, deve ler esta grande libertação através da audição perto do seu ouvido. Se nenhum destes estiverem disponíveis, então alguém que possa ler em voz alta, clara e precisa, lembrando o falecido a reconhecer imediatamente a luminosidade da mente e realizar a libertação.
Deve ser feita uma cuidadosa oferenda para as três jóias se os recursos estiverem disponíveis, mas se não estiverem disponíveis, deve-se oferecer o que houver e visualizar o restante sem limites. Como preparação deve-se recitar alguns pujas inspiradores. Então deve-se ler a grande libertação através da audição, sete ou três vezes, mostrando a luminosidade no Bardo.
Deve-se dizer estas palavras: "Amigo Fulano, agora chegou a hora de você buscar o caminho. Assim que a respiração tenha cessado, o que é chamado a primeira luminosidade do primeiro Bardo aparecerá. Essa é a mente luminosa, aberta e vazia como o espaço, vazio luminoso, mente nua pura, sem centro ou circunferência. Reconheça, relaxe e fique com essa experiência, e eu também irei mostrar-lhe isso ao mesmo tempo". [1] Isto deve ser firmemente implantado na mente do ouvinte, repetindo várias vezes próximo ao ouvido, até que ele pare de respirar.
Quando a respiração cessa, prana (a energia vital) é absorvido no canal central da sabedoria e a luminosidade livre de complexidades brilha claramente na consciência. O período de tempo durante o qual a pulsação interior permanece depois que a respiração cessa é parecido com o tempo necessário para comer uma refeição.
Então, quando a cessação da respiração for detectada, deve-se deitá-lo no lado direito, na posição do leão, pressionando com firmeza as duas artérias no pescoço que induzem o sono, até que parem de pulsar. Em seguida, deve-se ler novamente as instruções. Neste momento, a mente luminosa surge na mente de todos os seres. As pessoas comuns chamam esse estado de "perda da consciência". O tempo que esse estado dura é incerto, dependendo da condição espiritual e do estado de desenvolvimento mental. Tem uma duração mais longa naqueles que tenham praticado muito, cuja prática da meditação da tranquilidade é estável, e que são sensíveis. O esforço para instruir essa pessoa deve ser repetido até que alguma secreção saia dos meios dos sentidos. Em pessoas más e insensíveis, esse estado não dura mais do que um único estalar de dedos, mas em algumas, dura o tempo necessário para comer uma refeição. Diz-se que, em geral, este estado inconsciente dura quatro dias e meio, o leitor deve se esforçar para mostrar a luminosidade durante todo esse período de tempo.
Se o ouvinte for capaz, ele irá trabalhar com as instruções que foram dadas, mas se ele não for capaz, um amigo espiritual deve então ficar próximo e ler em voz alta, claramente, a seqüência dos sinais da morte: "Agora essa miragem que você vê é o elemento terra dissolvendo-se na água. Essa fumaça é o elemento água dissolvendo-se no fogo. Esses vaga-lumes são o elemento fogo dissolvendo-se no ar. A chama da vela é o elemento ar dissolvendo-se na consciência", quando a seqüência estiver quase concluída, ele deve ser encorajado a adotar uma atitude como esta "Amigo fulano, não deixe que seus pensamentos vagueiem", isso deve ser falado baixinho em seu ouvido:
"Amigo fulano aquilo que é chamado morte agora chegou, e você deve adotar esta atitude: eu cheguei ao momento da morte, agora por meio desta morte vou adotar apenas a atitude do estado iluminado da mente, amor bondade e compaixão, e realizar a perfeita iluminação. Com essa atitude, neste momento especial, vou reconhecer a luminosidade da morte e alcançar esse estado de realização. Sem abandonar essa atitude você deve se lembrar e praticar a meditação que lhe foi ensinada." Estas palavras devem ser ditas distintamente com os lábios perto do ouvido, a fim de lembrá-lo de sua prática, sem deixar que a sua atenção vagueie nem por um momento: "Amigo Fulano ouça, agora a pura luminosidade da mente luminosa está brilhando diante de você, reconheça isso Fulano, neste momento o seu estado de espírito é, por natureza, puro vazio, não possui de nenhum modo qualquer natureza, nem substância, nem qualidade, como por exemplo cor, mas é o puro vazio. Mas este estado de espírito não é apenas um vazio em branco, ele é desobstruído, brilhante, puro e vibrante. Estas duas, a sua mente, cuja natureza é o vazio, sem qualquer substância que seja, e a sua mente, que é vibrante e luminosa são inseparáveis. Essa mente é a inseparável luminosidade e vazio na forma de uma grande massa de luz, sem nascimento ou morte, portanto, é o Buda da luz imortal. Reconhecer isso é tudo o que é necessário. Quando você reconhecer essa natureza pura da sua mente como a mente do Buda, olhando para a sua própria mente será repousar na mente do Buda." Isso deve ser repetido três vezes, ou sete vezes, com clareza e precisão. Ele irá reconhecer sua própria mente nua como a luminosidade, e tendo assim reconhecido, certamente irá realizar a libertação.
Se ele reconhecer a primeira luminosidade estará libertado, mas se houver dúvida que ele tenha reconhecido a primeira luminosidade, então o que é chamado a segunda luminosidade irá brilhar. Então a sua consciência emerge e ele não sabe se está morto, ou não. Ele vê os seus parentes ali reunidos como antes e ouve os seus lamentos. Durante esse tempo, quando as violentas projeções confusas de karma ainda não apareceram, e os terrores do Senhor da Morte ainda não chegaram, as instruções devem ser administradas com estas palavras: "Medite no Senhor da Grande Compaixão". [2] Não há dúvida de que aqueles que não tenham reconhecido o Bardo irão percebê-lo pelo que está sendo mostrado desta maneira. É melhor se ele entender durante o primeiro Bardo. Mas se ele não entendeu, o seu insight será despertado com esta lembrança no segundo Bardo, e ele será liberado. Durante o segundo Bardo a sua consciência, que não sabia se ele estava morto ou não, de repente se torna clara. Este é o chamado corpo ilusório puro. Se ele entender o ensinamento neste momento ele não mais será dominado pelo karma. Assim como a luz do sol vence as trevas, de modo que o poder de karma é superado pela luminosidade do caminho, e a libertação é realizada. Isto que é chamado o segundo Bardo é como um flash ante o corpo mental e a consciência é capaz de ouvir novamente como antes. Se esta instrução é entendida neste momento o seu objetivo estará cumprido, e uma vez que as projeções confusas de karma ainda não apareceram, ele é capaz de dirigir-se para qualquer direção. Desta forma, ele é libertado por reconhecer a luminosidade durante o segundo Bardo, mesmo que ele não tenha reconhecido inicialmente a primeira luminosidade.
[1] A dificuldade de reconhecimento vem do impulso habitual de se sentir presente com uma perspectiva subjetiva, portanto, sentindo medo ou fraco ao perder o sentimento de apego. É por isso que a instrução insta o falecido a reconhecer o estado como essencialmente não-eu. [Retorna]
[2] O Senhor da Grande Compaixão é o Bodhisattva Avalokiteshvara, a figura salvadora na cultura tibetana. Pode-se preferir invocar neste caso o Buda, ou Jesus, ou Moisés, ou Maomé, ou Krishna, etc Qualquer arquétipo do sagrado para fazer com que a consciência se sinta segura. [Retorna]
Como Interpretar esses Ensinamentos sobre os Bardos à luz do Theravada
Nos ensinamentos do Theravada é dito que a mente do quarto jhana é "purificada, luminosa, pura, imaculada, livre de defeitos, flexível, maleável, estável e atingindo a imperturbabilidade". No Visudhimagga é explicado que a experiência dos jhanas é acompanhada pelo surgimento de um sinal luminoso semelhante à lua cheia que brilha num céu escuro. Isso também é confirmado por praticantes experientes como Ajaan Brahmavamso. Essas descrições se assemelham muito à experiência da consciência nos primeiros Bardos. Nessa descrição essa consciência é dito ser a "mente do Buda" ou em outras palavras a mente iluminada: "pura, vazia, desobstruída e brilhante."
No Theravada a experiência da mente no quarto jhana é dito ser a experiência mais próxima de nibbana, no Latukikopama Sutta o Buda descreve o quarto jhana como sambodhasukha - a felicidade da iluminação. Mas os jhanas não são considerados como a iluminação em si, mas estados temporários que também estão sujeitos à condicionalidade. Nos primeiros Bardos, com a dissolução do corpo, a mente se afasta dos sentidos e volta completamente para si mesma, o mesmo processo que ocorre nos jhanas.
Com base nisso, a instrução de simplesmente "reconhecer, relaxar e ficar com essa experiência" pode não ser suficiente para realizar a completa libertação. Nos suttas a experiência dos jhanas não é suficiente em si mesma para realizar a iluminação. Essa experiência serve como base para o desenvolvimento do insight - a compreensão e visão da realidade tal como ela é. Os jhanas possibilitam o desenvolvimento do insight porque são estados desobstruídos da ignorância visto que os obstáculos, que são as qualidades mentais que são considerados como "uma obstrução, uma corrupção da mente, enfraquecedores da sabedoria" foram suprimidos. Com a sua supressão a mente se torna clara e límpida e capaz de compreender e ver a realidade. Portanto a lógica seria que nos primeiros Bardos nos quais surge a mente luminosa, esse trabalho de insight também deveria ser feito, para dessa forma conduzir a mente a compreender e ver a realidade e assim conduzir ao desapego. Lembrando que nos suttas nibbana é descrito como o completo desapego de tudo (Cundi Sutta). Sem esse trabalho de insight, mesmo com a experiência da mente luminosa, não há possibilidade que a mente se liberte. Nibbana também representa o fim do ciclo de renascimentos, ou seja não há mais renascimento. Se as instruções do Bardo realmente conduzissem à iluminação o renascimento não deveria ocorrer, mas não é isso que ocorre com os Tulkus.
É possível argumentar que as instruções dadas no Sasankhara Sutta, mencionado acima, para desenvolver as distintas percepções e contemplações, tem como objetivo justamente permear a mente com as instruções sobre como agir no momento da experiência da mente luminosa nos Bardos, de modo a conduzi-la à completa libertação através do desapego, e dar um fim ao ciclo de renascimentos.
O que diz a Ciência:
Experiências de Quase Morte (EQM) em sobreviventes de paradas cardíacas: um estudo prospectivo na Holanda
Introdução:
Este foi um estudo coordenado pelo Dr. Pim van Lommel durante 4 anos, de 1988 a 1992, entrevistando pacientes que sofreram paradas cardíacas e que estiveram clinicamente mortos, definido como um período de inconsciência durante o qual o cérebro não recebe suprimento sanguíneo devido a problemas circulatórios, respiratórios, ou ambos. Nesse tipo de situação se a ressuscitação cardio-pulmonar (CPR) não for iniciada num intervalo entre 5-10 minutos há sérios riscos de danos cerebrais irreparáveis e morte.
EQM foi definido como a memória de todas as impressões registradas durante o período de morte clínica, incluindo alguns elementos específicos como experiências fora do corpo, emoções positivas, visão de um túnel, visão de uma luz, de parentes mortos, revisão da vida.
As entrevistas foram padronizadas, realizadas alguns dias após a ressuscitação, perguntando se os pacientes se lembravam de alguma coisa durante o período de inconsciência e o que eles se lembravam. Também foram realizadas entrevistas dois anos e oito anos após o incidente.
Resumo das Conclusões:
Os resultados do estudo mostram que fatores médicos não são suficientes para explicar a ocorrência da EQM. Embora todos os pacientes estivessem clinicamente mortos, apenas 18% tiveram EQM. Além disso, a gravidade da crise não teve correlação com a ocorrência ou profundidade da experiência. Se fatores puramente fisiológicos resultantes da anoxia cerebral causam EQM então a maioria dos pacientes deveriam ter tido essa experiência. A medicação dos pacientes também não teve correlação com a frequência de EQM. É improvável que fatores psicológicos tenham importância visto que o medo não esteve associado à EQM.
Foi notado que a frequência de EQM foi maior em pessoas com menos de 60 anos do que em pessoas mais velhas. Em outros estudos, a idade média de ocorrência de EQM foi menor do que neste estudo (62.2 anos) e a frequência de ocorrência foi maior. Em outros estudos foram observadas ocorrências de 85% de EQM em crianças, 48% em pessoas com idade média de 37 anos e 43% de EQM em pessoas com idade média de 49 anos; portanto, parece haver uma correlação entre a idade e a frequência de EQM.
Pessoas mais velhas têm uma chance menor de recuperação cerebral após uma ressuscitação difícil e complicada devido a uma parada cardíaca. Pacientes mais jovens têm mais chance de sobreviver uma parada cardíaca e assim descrever a sua experiência. Num estudo de 11 pacientes após CPR, a pessoa que teve EQM era significativamente mais jovem do que os pacientes que não tiveram a experiência.
Uma memória recente (short-term memory) boa parece ser essencial para lembrar a EQM. Neste estudo, pacientes com problemas de memória após a ressuscitação relataram menos experiências do que os demais pacientes.
Os elementos da EQM observados correspondem aos elementos de outros estudos. No entanto, é quase impossível uma comparação confiável com os estudos retrospectivos que incluem a seleção de pacientes, registros médicos não confiáveis, e que empregam critérios distintos para a EQM.
Elementos da EQM
Consciência de estar morto (50%); Emoções positivas (56%); Experiência fora do corpo (24%); Movendo-se através de um túnel (31%); Visualização de uma luz (23%); Visualização de cores (23%); Visão de uma paisagem celestial (29%); Encontro com pessoas falecidas (32%); Revisão da vida (13%).
O estudo longitudinal para investigar os processos transformativos após a EQM confirmou as transformações descritas em outros estudos. Neste estudo os pacientes foram entrevistados 3 vezes durante 8 anos. As entrevistas mostraram que o processo de mudança após a EQM tende a demorar vários anos para se consolidar. Aparentemente, além dos possíveis processos psicológicos internos, uma das razões tem a ver com a reação negativa da sociedade em relação à EQM que leva a pessoa a negar ou reprimir a experiência devido ao temor da rejeição ou da ridicularização. Dessa forma, o condicionamento social faz com que a EQM seja traumática, embora em si mesma ela não seja uma experiência traumática. Como resultado os efeitos da experiência podem ser retardados por anos e apenas gradualmente e com dificuldades a EQM pode ser aceita e integrada. Além disso, os efeitos transformativos a longo prazo de uma experiência que dura apenas alguns minutos durante a parada cardíaca foi uma descoberta surpreendente e inesperada.
Uma das limitações neste estudo foi que no grupo apenas fizeram parte pacientes cardíacos holandeses que em geral eram mais velhos do que os pacientes em outros estudos. Por conseguinte a frequência de EQM neste estudo pode não ser representativa de todos os casos, isto é, uma frequência maior poderia ser esperada com uma amostragem mais jovem, ou os percentuais poderiam variar com algum outro tipo de população. Também, a incidência de EQM pode variar entre pessoas que sobreviveram um episódio de quase morte devido a outras causas, como por exemplo o quase afogamento, acidentes rodoviários quase fatais com trauma cerebral, e a eletrocução. No entanto, estudos prospectivos rigorosos seriam praticamente impossíveis em muitos desses casos.
Muitas teorias têm sido sugeridas para explicar a EQM. Neste estudo foi mostrado que fatores psicológicos, neurofisiológicos, ou fisiológicos não causaram essas experiências após as paradas cardíacas. Em um outro estudo foi mostrado que uma jovem americana teve complicações durante uma cirurgia no cérebro para tratar um aneurisma cerebral. O EEG do cortex e do tronco cerebral ficaram completamente inativos. Após a operação, que no final das contas foi bem sucedida, essa paciente revelou ter tido uma profunda EQM, incluindo uma experiência fora do corpo com observações, que foram subsequentemente confirmadas, durante o período de inatividade cerebral.
Mas no entanto, os processos neurofisiológicos devem desempenhar algum papel na EQM. Experiências semelhantes podem ser induzidas através do estímulo elétrico do lobo temporal (e por conseguinte do hipocampo) durante cirurgias do cérebro para tratamento da epilepsia, com elevados níveis de dióxido de carbono (hipercarbia), e na reduzida perfusão cerebral resultante da hipoxia cerebral como ocorre na rápida aceleração durante o treinamento de pilotos de aviões de caça, ou na hiperventilação seguida da manobra valsalva. Experiências induzidas pela ketamina resultantes do bloqueio do receptor NMDA, e o papel da endorfina, serotonina e enquefalina também são mencionados, bem como experiências de quase morte depois do uso de LSD, psilocarpina e mescalina. Essas experiências induzidas podem consistir de inconsciência, experiências fora do corpo, e a percepção de luz ou lampejos, e a recordação do passado. Essas recordações no entanto consistem de fragmentos e memórias aleatórias ao contrário do repasse panorâmico da vida que ocorre na EQM. Além disso os processos transformativos com insights que mudam a vida e o desaparecimento do medo da morte são raramente relatados após as experiências induzidas.
Por conseguinte, as experiências induzidas não são idênticas à EQM e assim, além da idade, em alguns casos um mecanismo desconhecido causa a EQM estimulando processos neurofisiológicos e neurohumorais num nível sub celular no cérebro durante uma situação como a morte clínica. Esses processos também podem determinar se a experiência se torna consciente e poderá ser lembrada.
Com essa falta de evidências para quaisquer das teorias sobre a EQM, o conceito até agora aceito, mas nunca provado, que a consciência e a memória estão localizadas no cérebro, deve ser questionado. Como é possível que a consciência lúcida fora do próprio corpo possa ser experimentada numa situação em que o cérebro não funciona durante o período de morte clínica sem registro no EEG? Também, numa parada cardíaca, na maioria dos casos, o EEG fica sem registro passados cerca de 10 segundos do início da síncope. Além disso, pessoas cegas descreveram percepções verídicas durante experiências fora do corpo numa EQM. A EQM desafia os limites das idéias médicas sobre o alcance da consciência humana e da relação mente-cérebro.
Outra teoria diz que a EQM pode ser um outro estado de consciência (transcendência) no qual a identidade, cognição e a emoção funcionam independente de um corpo inconsciente, mas retendo a possibilidade de percepção não sensorial.
As pesquisas deveriam se concentrar no esforço em explicar cientificamente a ocorrência e o conteúdo da EQM, sendo que a teoria da transcendência deveria ser incluída como parte das explicações dessas experiências.
Leia o relatório completo do estudo.
Fonte:https://www.acessoaoinsight.net/arquivo_textos_theravada/bardo.theravada.php
Bardo da Realidade
Prepare-se para usar o período entre esta vida e próxima para atingir liberdade completa
A morte e a experiência do pós-morte não eram temas tabus ou irrelevantes para o meu professor, Tulku Urgyen Rinpoche. Muito pelo contrário, ele frequentemente falava sobre como utilizar a transição entre esta vida e a próxima enquanto uma oportunidade de liberdade total, sobre como usar o bardo de darmata para a realização, e sobre como nos prepararmos para o momento da morte neste exato instante. Realidade, aqui, não se refere à realidade superficial que experienciamos no dia-a-dia, mas à realidade última, darmata, na qual outros tipos de fenômenos acontecem.
Inicialmente, tais fenômenos não possuem qualquer estrutura ou traços reconhecíveis, constituindo-se, por outro lado, de uma exibição espantosa e tremenda – a viagem de ácido suprema. Não é como o céu aberto em um dia sem nuvens: coisas acontecem nesse espaço, e essas coisas são chamadas de sons, cores, luzes.
Tulku Urgyen dizia que os sons comparam-se à explosão simultânea de 100.000 trovões vindos de todas as direções: de cima, de baixo, de todo lugar. As cores são todas as cores do arco-íris, mas com uma intensidade muito superior àquela que normalmente experimentamos nesta vida. Os raios de luz são como agulhas ou espadas pontiagudas, furando todas as coisas. O bardo da realidade é transparente, completamente puro e infinito.
O bardo da realidade é o momento que temos para ganhar maestria sobre o ponto crucial: gerar destemor e assim reconhecer a natureza da mente, que se manifesta como a auto-radiância da cognoscência.
Tal radiância tem três formas, sons, cores e luzes. Frente à sua manifestação, não tenha medo das exibições pacíficas e iradas que surgem: elas são a expressão de você mesmo. Para a maioria das pessoas, essa exibição desprovida de chão, de centro ou de qualquer limite não é nada familiar e parece, portanto, profundamente assustadora. Não há nada no que se segurar, nada com o qual se relacionar como estando aqui ou lá.
Reconheça que esse é apenas o jogo do bardo, Tulku Urgyen dizia, e não tenha medo, não se apavore, não entre em pânico: não tenha medo das cores, não se apavore com os sons e não entre em pânico diante da intensidade dos raios de luz. Desista completamente do medo. É só o jogo de darmata.
Darmata é a natureza da sua mente, a natureza búdica. Em outras palavras, a exibição é o próprio jogo da natureza búdica, sua essência emergindo e se fazendo ver. A mente despreparada fica aterrorizada diante de sua própria natureza, tal qual um asno que se assusta com o roçar do vento na grama seca, e inutilmente tenta escapar.
Aqui, no bardo da realidade, não há mais ninguém além de você – absolutamente ninguém. Ninguém o persegue: trata-se da sua própria sombra, e a sombra é o jogo de darmata. Esse é o ponto mais importante de darmata: reconhecer que tudo o que você experiencia é você mesmo, e não outra coisa ou outra pessoa.
Assim como a sua mão projeta uma sombra quando colocada em frente à luz, não tenha medo da sombra, saiba que ela não é outra coisa além da sua própria mão. Tal entendimento não é necessariamente fácil, principalmente quando as exibições vêm de todos os lados. A terra, o céu, e tudo ao redor são a auto-radiância da cognoscência. Reconheça tudo isso, relaxe nesse reconhecimento, permaneça firme e, desse modo, a liberação é garantida no bardo de darmata.
Como nos preparamos para a exibição impressionante e avassaladora da experiência do pós-morte? Em primeiro lugar, familiarize-se com uma consciência estável: calma, compassiva e clara.
Então, familiarize-se com sua realidade aberta e sem nenhum chão. Especificamente, pratique na transição entre a vigília e o sono e, posteriormente, ao acordar no estado de sonho. A prática de visualização pode ajudar no bardo de darmata, manifestando-se a partir dos três samadis como uma deidade tântrica.
Há também algo que é conhecido como prática tögal, tanto no dia quanto na noite. Por exemplo: sente-se numa sala completamente escura, ou do lado de fora numa noite chuvosa e sem lua, e veja que as estruturas na percepção, os traços reconhecíveis, são todos criados pelos seus próprios pensamentos.
Há ainda mais, entretanto, e a liberação durante o bardo da realidade depende da sua familiarização com sua própria exibição. Por si só, esse entendimento irá ajudá-lo a se livrar do terror, a relaxar na sua natureza e a conquistar a liberdade última. Sobretudo, cultive a familiarização durante essa vida.
Texto originalmente publicado na seção Insights da revista Levekunst Art of Life em 22/06/2017.
Revisão: Lia Beltrão
Tradução: Caroline Garcia de SouzaFonte:https://bodisatva.com.br/bardo-da-realidade/
O que é o Budismo Tibetano?
Podemos nos perguntar o que é o Budismo Tibetano especificamente.
No entanto, em primeiro lugar, deveríamos nos fazer uma pergunta mais fundamental: o que é o Budismo?
A definição mais simples é que o Budismo é a religião fundada a partir dos ensinamentos do místico itinerante indiano Sidarta Gautama, o Buda (que significa o “Iluminado”), e pode ser resumido nas doutrinas fundamentadas nas quatro nobres verdades:
1 – A realidade do sofrimento
2 – A realidade da origem do sofrimento, isto é, o desejo.
3 – A realidade do fim do sofrimento, que é a iluminação
4 – O caminho para o fim do sofrimento, para se chegar à iluminação, que se baseia no Caminho Óctuplo (de oito partes):
- entendimento correto,
- pensamento correto,
- linguagem correta,
- ação correta,
- modo de vida correto,
- esforço correto,
- atenção plena correta,
- concentração correta
O Budismo se desenvolveu então e se espalhou da Índia para outras regiões da Ásia, e em cada uma foi assumindo uma face diferente.
O budismo chinês por exemplo é profundamente diferente do Budismo Tibetano, que é diferente do zen japonês e assim por diante. Até pela mescla com tradições locais.
No Tibete o Budismo sofreu a influência de cultos xamanísticos locais e os lamas (os monges budistas tibetanos) desenvolveram toda uma mística única.
O Bardo Thodol e o Budismo Tibetano
O Bardo Thodol, conhecido como “Livro Tibetano dos Mortos”, faz parte desse contexto. É um livro que foi escrito no século VIII.
Ele contém instruções para a pessoa que está morrendo, que são recitadas no seu ouvido por um monge no momento de sua morte, geralmente em voz alta, e continua a ser recitado por 49 dias (7 semanas) mesmo depois do falecimento.
História e funções do Livro Tibetano dos Mortos dentro do Budismo Tibetano
O livro foi mantido em segredo até o início do século XX. No ano de 1917, foi descoberto por um viajante inglês e traduzido em 1927, após longos anos de trabalho. Atualmente, existem edições em todos os idiomas, também em português.
Em uma de suas edições, o célebre psiquiatra Carl Gustav Jung escreveu um prefácio em que declara ter sido um leitor assíduo do livro, devendo a ele muitas de suas ideias fundamentais.
Afirmou que este livro “revela os profundos segredos da alma”, declarando:
“Todo leitor sério de qualquer forma irá se perguntar se estes antigos sábios lamas, afinal de contas, não poderiam ter vislumbrado realmente outras dimensões, arrancando com isso o véu de um dos maiores mistérios da vida.”
Para se entender o texto, é preciso levar em conta que o budismo tibetano considera o principal objetivo do homem alcançar a Iluminação, ou seja, a plena consciência da irrealidade do mundo material e, portanto, também do próprio ser. No budismo, os conceitos de Deus e alma são desconhecidos, ou então irrelevantes.
Segundo os budistas tibetanos, a crença da realidade do mundo material é causada pela ignorância sobre a verdadeira natureza da existência. É o que o budismo tibetano quer dizer quando diz que o mundo é irreal. O remédio para essa ignorância é ver além da ilusão. Para alcançar esse estágio, é necessário reconhecer as próprias projeções do mundo e dissolver o senso de si no vazio e no luminoso.
O Budismo Tibetano aceitou o conceito hindu de que o homem acumula karma durante a vida. Este karma é a causa do nascimento de um novo indivíduo após a morte.
Se o karma é negativo, também pode renascer como animal; se o karma é positivo, também pode renascer em um dos muitos estados espirituais superiores ao homem (os devas, por exemplo), mas mesmo isso não é um fato positivo, porque esses estados também estão sujeitos à lei do karma.
No Budismo Tibetano. A recitação do Bardo Thodol aos moribundos é uma tentativa de fazê-lo alcançar a iluminação enquanto ele estiver no estado de Bardo, ou seja, no intervalo de tempo que precede um novo renascimento.
Na grande maioria dos casos, esse objetivo não é alcançado, mas, como efeito secundário, a pessoa que está morrendo pode ter um bom renascimento, como se tornar um ser humano dotado das qualidades que lhe permitirão alcançar a iluminação em uma nova vida.
Segundo o Budismo Tibetano, o ensinamento fundamental que o Bardo Thodol dá à pessoa que está morrendo é que todas as visões que lhe aparecem são apenas projeções de sua mente e que, portanto, ele deve evitar absolutamente ser atraído por elas.
É necessário notar que muitas dessas visões coincidem com as descrições feitas por pessoas que voltaram à vida após uma aparente morte.
Trechos do Bardo Thodol, o Livro Tibetano dos Mortos.
Apenas como exemplo, aqui estão algumas passagens do texto:
“Ó nobre filho, agora a assim chamada morte chegou; portanto agora você assumirá a atitude do estado de mente iluminada, de benevolência e compaixão, e você alcançará a iluminação perfeita em prol de todos os seres. Sem abandonar essa atitude, lembre-se de praticar todos os ensinamentos recebidos no passado.
Ó nobre filho, ouça: a pura luminosidade da Lei brilha à sua frente, reconheça-a. Agora seu estado mental é puro, um vazio natural, que não possui natureza própria, nem substância, nem qualidade.
Sua mente é luminosa e vazia, e se manifesta na forma de uma grande massa de luz. É o buda da luz imortal. Reconheça-o.”
E outro trecho diz:
“Vá em frente dizendo essas palavras de forma clara, distinta, entendendo seu significado. Não as esqueça, porque o ponto essencial é reconhecer com certeza que tudo o que aparece, por mais aterrorizante que seja, é sua projeção. Não tenha medo, não se perca.
Este é o brilho natural da Lei, reconheça-o. Filho de nobre família, se você não entendeu este ponto essencial, você não reconhecerá os sons, a luz e os raios e continuará vagando pelo samsara (o ciclo de renascimentos no budismo e no hinduísmo).
Ao acordar do seu sono, você se perguntará o que aconteceu com você: reconheça isso como um estado de Bardo (período intermediário).”
Assim temos uma ideia do que trata o Livro Tibetano dos Mortos, em que podemos encontrar paralelos com outras tradições espirituais e também em experiências à beira da morte. Isso sem perder de vista a cultura em que foi produzido. E assim temos que levar em conta seus aspectos específicos, que podem servir para enriquecer nossa concepção do mundo e da espiritualidade.
Conclusão
O Bardo Thodol nos garante que morrer é um nascimento na luz, não um mergulho na noite. E nos convida a permanecermos calmos no momento final, a não ceder ao medo em relação ao outro mundo.
A passagem para a luz é precisamente um tema que está presente em muitos testemunhos relacionados a visões da vida após a morte e a experiências de quase-morte.
Por exemplo, a pessoa que vive esse tipo de experiência pode escutar os médicos anunciando sua morte; vê seu corpo de fora; mas então, se não se apavora, experimenta uma sensação de grande paz; passa por um túnel escuro; e então experimenta uma Luz envolvente.
O poeta alemão Goethe, em seu leito de morte, em êxtase, murmurou mehr Licht!, ou seja, “Mais luz!”, como se para testemunhar a passagem invocasse uma maior clareza, e é aí que entra a serenidade ensinada no budismo, especialmente no Budismo Tibetano, e em livros como o Bardo.
Embora muitas coisas ditas e relatadas no livro possam parecer estranhas, isso se deve mais a diferenças culturais. Para além delas, o que ele relata é uma experiência universal, transmitida através da linguagem do Budismo Tibetano, que, como dissemos acima, pode servir para nos enriquecer.
Marcello Salvaggio
Sou escritor e pesquisador nas áreas da religião, da literatura, do misticismo e da história.Considero a espiritualidade a chave fundamental para o entendimento de nossas vidas, para encontrarmos o verdadeiro sentido de nossa existência, e todo meu trabalho é orientado nesse sentido.Tenho livros publicados no Brasil e na Itália e sou formado em Letras pela USP e auricoloterapia pelo instituto EOMA, escola especializada em acupuntura e em outros ramos da medicina tradicional chinesa.
No campo da terapia e do aconselhamento, considero essenciais a empatia e o respeito ao livre-arbítrio alheio.Fonte:https://blog.vidatarot.com.br/budismo-tibetano-bardo-thodol/
Bardo Thödol: A Ciencia Tibetana de enfrentar a morte de forma serena
por Ligia Cabus
Lama Samdup (1868-1923), que traduziu o texto para o inglês, definiu "Bardo" como "estado incerto", referindo-se à situação intermediária da Mônada ou espírito humano entre a vida biológica, orgânica, que chegou ao fim e o período que transcorre até o próximo renascimento. Os tibetanos e budistas são, portanto, reencarnacionistas, ou seja, acreditam na reencarnação.??A "Libertação" mencionada no Bardo Thödol relaciona-se ao fim do ciclo de reencarnações produzidas pelo carma, pelos sentimentos de culpa, pelo apego à vida. É a libertação da "roda samsárica" [ou sangsárica]que obriga o espírito a renascer em uma das seis categorias de mundos inferiores, a saber:
1. mundo dos Devas (anjos na visão cristã);?2. mundo dos Asuras (semideuses e heróis, apaixonados, sujeitos a paixões);?3. mundo dos Humanos;?4. mundo dos Brutos, seres inanimados e/ou imobilizados;?5. mundo dos Pretas ou dos infelizes;?6. mundo Rakshasas, dominados pelo ódio.
O Bardo Thödol é um livro de instruções que objetiva fornecer as informações necessárias para que o espírito obtenha a Libertação alcançando o "estado de Buda", de Iluminado, habitando "Terras Búdicas", livre da reencarnação inevitável porém ainda capaz de voltar a viver em um dos cinco mundos de seres animados (a exceção é o mundo dos Brutos), por vontade própria, se desejar auxiliar os encarnados em seu processo de evolução.
De certa forma, o Bardo Thödol é a ciência de que permite ao espírito transcender a lei do carma pelo entendimento do fenômeno da vida em sua TOTALIDADE CONTÍNUA. Um entendimento que permite superar a forte cadeia que prende o SER humano [em todas as suas manifestações] a uma existência de sofrimento: a cadeia formada pelo binômio DESEJO-CULPA.??
??OS SINTOMAS DA MORTE??Diz a sabedoria popular que "a única certeza da vida é a morte". Com efeito, todo ser humano, às vezes na mais tenra idade, fica sabendo sabendo que, inevitavelmente, em um momento qualquer do futuro "a hora chega", a morte virá. Tal como existem várias formas de viver, também existem várias formas de morrer.??A morte "natural", conseqüência de doenças que provocam a falência funcional do corpo físico e as mortes "provocadas", por assassinato, suicídio ou acidentes. Em qualquer desses casos morrer pode ser um acontecimento súbito (rápido, de um instante para outro) ou lento. A morte lenta envolve a experiência da agonia, processo gradual durante o qual o princípio vital (Jiva) vai, aos poucos, abandonando o organismo.
O conhecimento do Bardo Thödol é aplicável a qualquer caso porém, no caso de morte lenta, cuja agonia pode durar horas ou dias, o livro fornece instruções que permitem ao moribundo e/ou aos circundantes reconhecer os sintomas de que se aproxima o momento do último suspiro.
São estas, em geral, as três primeiras evidências da chegada morte:??1ª) Sensação física de descompressão ("a terra se desfazendo em água");??2ª) Sensação de frio, com a impressão de que o corpo está imerso em água, a qual se transforma gradualmente num calor febril ("a água se desfazendo em ar");??3ª) Sensação de explosão dos átomos do corpo ("o fogo se desfazendo em ar").??Cada sintoma corresponde a determinada alteração do corpo, exterior e visível: ausência de controle dos músculos do rosto; perda de audição; perda da visão; respiração espasmódica, antes da perda final da consciência. [SAMDUP, 2003 - p 65]
I. A CLARA LUZ PRIMORDIAL?Confrontação & Libertação ? Chikhai Bardo, 1º Estágio
A primeira confrontação [com o post mortem] é a percepção da realidade metafísica ? "o além". O espírito perde o contato orgânico com o mundo terreno: já não ouve nem vê com os órgãos dos sentidos posto que estes não funcionam mais. Entretanto, será capaz de ver, ouvir, sentir frio ou calor através dos "olhos/ouvidos/tecidos" do corpo sutil (corpo do espírito) já em processo de separação ou completamente desligado do corpo físico.??Antes mesmo da consumação da morte a percepção mediada pelos órgãos sensoriais entra em colapso. Embora ainda apresente sinais vitais e respire, o moribundo não mais abriga o espírito em íntima comunhão; está debilmente ligado àquele corpo por uma conexão tênue, em vias de se romper definitivamente. Esse estado de SER e ESTAR é o começo da continuidade da existência na condição de BARDO ou ESTADO DE BARDO.
?Estudos científicos contemporâneos de "Experiências de Quase Morte" registram relatos de pessoas dadas como clinicamente mortas mas que voltam à vida e lembram do que aconteceu no período transcorrido entre a "morte" e a "ressurreição". Na maior parte desses relatos, depoentes declaram que atravessaram um túnel escuro em cuja extremidade podiam ver uma claridade, uma luz branca e radiosa. Muitos tiveram medo dessa luz; outros, sentiram-se atraídos por ela.??No Bardo Thödol, essa luz branca é "A Clara Luz Primordial" que, antes de ser uma visão, é uma autopercepção dos espíritos elevados quando abandonam o corpo de matéria densa. Esses espíritos evoluídos são muito raros; não se assustam com a sensação de autodissolução que sobrevém no momento da morte. É o primeiro estágio de transição, da vida corporal, finita, para a vida "eterna" contínua, do espírito. Este estágio, denominado Chikhai Bardo ou Estado Incerto do Momento da Morte, é a primeira oportunidade de se libertar da "roda de samsara" ? do ciclo de reencarnações:
Depois de um período de inconsciência em virtude do choque da perda da consciência biológica, [o espírito] retoma a consciência mental pura e seu Princípio Consciente, ou cognoscente, simplesmente dá-se conta de que houve morte biológica. Completado esse processo, [o espírito] retorna ao seu Estado Primordial, chamado Clara Luz Primordial. Somente se libertam da roda das vidas e reintegram-se à emanação direta da divindade, na Clara Luz, as pessoas mais elevadas, que atingiram os pontos mais altos do saber espiritual. [Estas, alcançam o estado-situação de Darma-Caia, livres de outros nascimentos e renascimentos sem passar por nenhum outro estágio intermediário - p 63]??Esse estado [Estado Primordial, de Ser-Luz ou Ser-Energia-Pura] é altamente instável para a mente humana, mesmo a mais evoluída, pois a Clara Luz já começa a ser ofuscada pela solicitação do carma, representada pelo ego [personalidade terrena] que não foi totalmente apagado [deixado para trás]... [A Clara Luz é ofuscada]... à menor partícula de egoísmo, à menor sensação de separatividade do ego em relação ao Divino, ao menor apoio que se dê a essa idéia. (SAMDUP, 2003 - p 44/45)
??A libertação pela auto-identificação com a Clara Luz é reconhecer a si mesmo como um SER-LUZ ? alcançando Terras Búdicas, Terras Puras, onde habitam os Iluminados. Significa "alcançar o estado primordial do incriado", o estado de Buda, além do sofrimento, transcendendo ou superando condicionamentos advindos da ignorância, da sensualidade, da percepção dos fenômenos transitórios (Maia, ilusões), da forma, do espaço, do tempo. Este é um ESTADO DE SER isento de todo carma. A Clara Luz primordial ocorre [aparece], normalmente, antes do "último suspiro", antes do conjunto espírito e princípio vital ter se desligado completamente do corpo físico. O primeiro estágio do Chikhai Bardo dura cerca de 20 minutos.
II. CHIKHAI BARDO ? 2º ESTÁGIO?A Clara Luz Secundária & O Senhor da Compaixão
O reconhecimento da Clara Luz Primordial conduz à Libertação imediata, ocorrência rara entre a maioria dos terráqueos contemporâneos. O mais comum é a experiência dos estágios subseqüentes: "...o defunto verá brilhar a Clara Luz Secundária ...surge então um estado de espírito lúcido" [p 67].
No post mortem as mudanças de estado [de consciência] se sucedem acompanhados da percepção de sons e imagens que chegam a ser aterradores; o turbilhão de visões dura "até que o carma nesta condição se esgote" ou o espírito consiga se manter tranqüilo diante do vê e ouve. O segundo estágio do Chikhai Bardo pode durar muitos dias terrenos.
Neste segundo estágio do Chikhai Bardo, tão logo o princípio consciente abandona o corpo "ele se pergunta: ? "Estarei morto ou não?" ? Enquanto isso, entre "os vivos" o rito funerário tibetano continua [os católicos cristãos tem seus próprios ritos o padre que encomenda a alma a Deus, as missas, de sétimo dia, de mês, etc.], auxiliando o morto na transição: "... o lama ou leitor [oficiante, sacerdote, irmão de fé etc.] faz uma prece para a Divindade Tutelar do morto. Essa Divindade é "deus", santo, anjo, orixá etc., dependendo da formação religioculo defunto.
Se o oficiante ou mesmo o morto nada sabem de divindades tutelares [Buda, Nossa Senhora, Jesus, Krishna, Rama, Alá, Jeová, ancestrais etc..] o pensamento deve se concentrar na idéia de um "Senhor da Compaixão". É curioso que os tibetanos usem esta expressão em um texto tão anterior a Jesus e Buda porque a idéia de um Senhor da Compaixão se ajusta muito bem às figuras e doutrinas de ambos. O oficiante orienta o espírito, agora já desencarnado, com a seguinte idéia:
Medita, ó nobre filho sobre tua Divindade Protetora [DIZER O NOME DA DIVINDADE]. Não disperse teus pensamentos. Concentra teu espírito sobre teu Deus tutelar. Medita sobre Ele como se fosse o reflexo da lua sobre a água, visível, mas em si mesmo inexistente. Medita sobre ele como se tivesse um corpo físico.
"Medita sobre o Grande Senhor da Compaixão". Durante este segundo estágio o CORPO permanece no estado de "corpo de ilusão brilhante" [p 68]. Se a meditação sobre a divindade tutelar funcionar, poderá libertar o mais miserável dos homens porque qualquer carma é "dissipado" ? cancelado, anulado ? pela consciência, identificação e completa entrega, não-resistência do self [do si mesmo] diante da Clara Luz Secundária.
III. CHÖNID BARDO: A EXPERIÊNCIA DA REALIDADE
Se a Clara Luz Secundária não foi reconhecida, se o Espírito, com medo, rejeitou essa Luz ou fugiu dessa Luz, começa o terceiro estágio do Bardo. Neste estágio, a "realidade experimentada" é, na verdade, uma seqüência de ilusões cármicas, tormentos para o morto que lhes dá atenção, produzindo desequilíbrio, impedindo o SER de alcançar a perfeita iluminação [ou estado de Buda].
A essa altura, o defunto percebe que parte de sua refeição é descartada [contexto tibetano], suas vestimentas são despojadas de seu corpo... Consegue ouvir o pranto e a lamentação de seus afetos e familiares, podendo, sobretudo, vê-los e escutar o chamado deles, mas acaba se retirando, descontente, pois os vivos [não respondem; o bardo não consegue se comunicar com eles]... Nessa hora, sons, luzes e raios se manifestam, levando o morto ao receio, medo e terror e causando-lhe fadiga. [Entre os vivos, o oficiante continua seu trabalho de auxiliar o espírito recém desencarnado explicando]:
Ó nobre filho, ouve atentamente sem distrair-se. Existem seis estados de Bardo, que são: O estado natural do Bardo durante a concepção; o Bardo do estado onírico; o Bardo do equilíbrio extático, na profunda meditação; o Bardo do momento da morte; o Bardo da experiência da Realidade; o Bardo do processo inverso da existência sangsárica... Ó nobre filho, o que se denomina como "morte" é chegado... Não te apegues mais a esta vida por fraqueza ou sentimentalismo... Não sejas fraco, não te apegues... Lembra-te da preciosa Trindade ... [p 71/72]
Aqui, mais uma vez, aparece a semelhança de doutrina religiosa entre o cristianismo católico e o budismo, com essa referência à natureza simultaneamente una e trina da "divindade", do criador original de todas as coisas. Durante o Chönid Bardo os sons e as luzes percebidos bem como as figuras de Budas e seus séqüitos que o livro descreve são ilusões nascidas das preocupações e temores do Espírito. Estas ilusões são chamadas FORMAS-PENSAMENTO.
Ao longo da vida todas as pessoas produzem tais formas pensamento. São idéias fixas, pensamentos recorrentes (que se repetem muito) sobre medos e anseios [e também sobre afetos e coisas boas-agradáveis, formas-pensamento positivas]. Dizem os ocultistas que os homens vivem cercados destas entidades que habitam o plano mental, imperceptíveis durante a vigília normal, às vezes, perceptíveis no estado de sono (estado onírico do Bardo).
No Chönid Bardo, o espírito, que agora existe somente no plano mental de realidade (SER MENTAL) vê perfeitamente estas entidades sem perceber que elas nascem de seus próprios pensamentos, apegos, emoções. [O homem encarnado comum também pode ser assombrado por suas próprias formas-pensamento sem jamais perceber que ele mesmo cria estes fantasmas ? meditemos...] Sente medo, entra em pânico porque as formas refletem o terror, o amor angustiado e/ou possessivo, a autopiedade, o ódio, a culpa, etc..
O morto, preocupado com as "coisas dos vivos" faz com que os pensamentos se materializem personificando as emoções. O próprio corpo do Bardo, na verdade, é um corpo-pensamento. Se o medo e/ou toda e qualquer forma de inquietação prevalecem começa, então, a jornada pelo sangsara que dura cerca de 14 dias terrenos. São 14 de chances de reconhecer a Clara Luz e escapar do ciclo cármico.
Os tibetanos representam essas formas-pensamento em figuras de divindades Pacíficas e divindades Irritadas que, conforme a cultura tibetana (e também hindu, anteriores ao budismo de Sakyamuni) são Budas acompanhados de seus séqüitos. Os Budas representam diferentes pensamentos, que se traduzem em DESAPEGO, e sua simbologia inclui também a identificação com determinadas cores e elementos da natureza (água, fogo, terra, ar, éter).
Enquanto as cores e elementos são valores de significação universal, os Budas são expressões da cultura oriental hindu-tibetana, o que significa que as visões mudam em função da cultura humana vivenciada pelo Bardo [Espírito]. Por isso, um ocidental verá Jesus, um muçulmano, anjos de Alá, um xintoísta japonês verá seus ancestrais, um outro alguém verá seu pai e mãe, seu santo padroeiro, seu orixá e assim por diante, entre as divindades pacíficas. As divindades irritadas tibetanas são as mesmas pacíficas revestidas de aspectos amedrontadores, como crânios humanos cheios de sangue, seres portando adagas, legiões que gritam "mata, mata"... No Ocidente, os pensamentos negativos, os medos, as culpas, surgem como demônios, monstros, abismos etc..; e isso, é o inferno [lato sensu]!
Tais experiências, ora sedutoras, ora aterradoras, que acontecem durante o Chönid Bardo, são todas marcadas por luzes de cores diferentes. Conhecer bem o significado deste código luminoso e cromático é fundamental para que se tenha uma chance de alcançar a libertação ou, ao menos, um renascimento em circunstâncias mais favoráveis.
Nas alegorias do Bardo Thödol, a personagem central das visões são Budas cercados de seres fantásticos que deixam entrever muito bem, para um tibetano, o modo como o post mortem é determinado pelas idéias e estado de espírito que uma pessoa cultiva durante a vida terrena. Na tabela abaixo estão relacionados estes Budas e suas respectivas correlações:
Durante todo o Bardo o Espírito é CONFRONTADO com os Budas Luminosos. O Livro insiste muito nesse termo: CONFRONTAÇÃO. Significa que O SER ver-se-á diante de situações de escolha. Deverá escolher entre modos de EXISTÊNCIA que são indicados por luzes de diferentes cores. São sete opções mas somente um destes modos de SER é isento ? livre ? de carma e, por conseguinte, livre de SOFRIMENTO. É o estado de Buda, Iluminado. Somente alcançam a condição de Buda os espíritos que conseguem SER completamente livres de qualquer APEGO. Note-se que o DESAPEGO é o objetivo maior de todo Iniciado budista, está no âmago dos ensinamentos do budismo e é essência da doutrina cristã ["Tomam-lhe o manto? Entrega também a túnica... vende todos os teus bens e segue-me, etc."]
AS CONFRONTAÇÕES
Nos sete primeiros dias do Chönid Bardo o Espírito é confrontado com entidades chamadas Pacíficas. Sete luzes muito radiantes, fortes, aparecem, uma a cada "dia" do Bardo ? radiações da Sabedoria; elas "brilham para o Bardo". São as luzes da "terras búdicas".
Cada uma das sete luzes fortes é acompanhada por uma semelhante, porém, mais suave. [Eis a "emboscada"] As luzes radiantes produzem um forte impacto na percepção gerando sentimentos de desconforto e medo. As luzes suaves são reconfortantes. O Espírito do humano sentirá o desejo de se entregar às luzes suaves, que são as luzes dos SEIS LOKAS (mundos) INFERIORES, ou seja, mundos onde o modo de SER implica sofrimento.
As luzes radiantes conduzem ao estado de Buda, de Libertação do carma. As luzes fracas são PORTAS para os Lokas inferiores e atraem todos aqueles que não conseguem se DESAPEGAR, psiquicamente, do carma. Embora os mundos inferiores sejam muito diferentes entre si, mesmo o mais elevado destes mundos, o Mundo dos Devas, DEVAKHAN é, ainda, uma prisão. Somente nas terras Búdicas o espírito alcança a liberdade de existir em pleno e verdadeiro desapego. O oficiante, o irmão de fé, dirá ao Espírito:
Saibas, nobre filho [nome do Espírito na Terra - Fulano] que, na medida em que brilham as radiações da Sabedoria, também brilham as luzes da impura ilusão dos seis Lokas. Que são elas? Deves perguntar. Elas são uma suave luz BRANCA dos DEVAS, uma suave luz VERDE dos ASURAS, uma suave luz AMARELA dos SERES HUMANOS, uma suave luz AZUL dos BRUTOS, uma suave luz AVERMELHADA dos PRETAS, uma suave luz CINZA-ESFUMAÇADA dos INFERNO DOS RAKSASHAS... Deves permanecer no REPOUSO da NÃO FORMAÇÃO DE PENSAMENTO... Não te sintas assustado nem te permitas atrair por nenhuma delas. Caso te deixes assustar pelas radiações da Sabedoria ou se te permitires atrair pelos brilhos impuros dos seis Lokas, deverás tomar um corpo num dos seis Lokas e sofrer as dores dos Sangasaras. [p 85]
Segundo o Bardo Thödol existem seis tipos de seres: cinco animados (vivos) e dois brutos (mudos e imobilizados), os vegetais e os minerais. Todos são considerados formas de ser inferiores porque estão sujeitos ao sofrimento. Todo o ensinamento do livro tem como objetivo preparar os seres humanos para o momento decisivo em que deverão escolher entre dois caminhos: a libertação como Buda ou a escravidão, a prisão, seja como:
? 1. DEVA
? 2. ASURA
? 3. HUMANO
? 4. PRETA
? 5. RAKSASHA
? 6. BRUTO
As advertências são insistentes:
1° DIA ? Não te permitas seduzir pela luz suave e branca dos Devas. Não te apegues, não sejas fraco. Se a ela te apegares, andarás sem rumo pelas moradas dos Devas e serás lançado no turbilhão dos seis lokas... Não fites essa luz. Olha somente à luz branca-radiante com fé profunda, concentrando ardentemente seu pensamento em Vairochana [ou Jesus, ou Khirsna, etc..] ... [p 75]
2° DIA ? Vinda do inferno, uma luz cinzenta e esfumaçada surgirá... por força da cólera, ficarás surpreso e amedrontado pela luz [radiante do Buda] e quererás afugentar-te; a suave luz cinzenta do inferno [dos rakshasas] irá atrair-te... Não te sintas enlevado pela luz do inferno, cinzenta e esfumaçada. Este caminho foi aberto pelo mau carma da cólera... Se segues essa atração luminosa, cairás nos mundos infernais, onde terás de suportar uma grande miséria, sem que haja um tempo certo para tu saíres de lá. [p 76]
3º DIA ? Não te permitas seduzir pela suave luz amarela do mundo humano, a qual representa o caminho aberto pelo acúmulo de tuas inclinações e de teu agressivo egoísmo. Se fores atraído, renascerás no mundo humano, tendo de sofrer o nascimento, a senilidade, a doença e a morte. [p 77]
4º DIA ? Não te deixes seduzir... pela luz suave e avermelhada vinda de Preta-Loka... Livra-te do apego e da fraqueza. Neste momento, pela forço intensa gerada pelo apego às coisas do mundo, a luz avermelhada BRILHANTE irá terrificá-lo e deverás desviar-se dela, pois será forte a tração da suave luminosidade avermelhada do Preta-Loka... Esta luz é formada pela soma de teus sentimentos de apego ao Sangsara que se manifesta em ti. Permanecendo apegado, cairás num mundo de espíritos infelizes e sofrerás uma fome e uma sede intoleráveis. [p 79]
5º DIA ? Não se permita atrair pela luz suave verde-escuro do Asura-Loka. Este é o carma adquirido pelo ciúme intenso... Se te permitires atrair por ela, irás afundar no Asura-Loka, onde terás de suportar a intolerável miséria das querelas e dos estados de guerra. [p 81]
6° DIA ? ...Na medida em que brilham as radiações da Sabedoria, também brilham as luzes impuras dos seis Lokas ... [No sexto dia, brilham juntas]. [p 85]
7º DIA ? Uma delicada luz azul, vinda do mundo dos brutos aparecerá... Não te deixes atrair pelo suave brilho azul do mundo bruto; sejas forte. Se fores atraído cairás no mundo bruto, dominado pela estupidez, e sofrerás as misérias sem limites da escravidão, da mudez e da imbecilidade. Passará muito tempo nessa condição... [p 90]
DIVINDADES IRRITADAS
Depois das visões das divindades pacíficas, se o Espírito não reconheceu as luzes, os seres, os sons e outras percepções como projeções de seus próprios pensamentos e emoções, isso significa que a ignorância e o medo estão dominando o Bardo que, aterrorizado e muito confuso vai experimentar a "aurora das divindades irritadas". As Divindade Irritadas são as mesmas Pacíficas revestidas de atributos tão horrendos e macabros quanto a enormidade do medo sentido pelo Espírito. As visões desta fase podem durar por mais sete dias terrenos. Para a cultura tibetana, neste período podem surgir até 58 divindades que são chamadas "bebedoras de sangue".
Imediatamente após terem cessado as aparições das Divindades Pacíficas [que eram sete emboscadas]... surgirão outras 58 divindades rodeadas de chamas, irritadas e bebedoras de sangue. Na realidade são Divindades Pacíficas com novo aspecto... Trata-se do Bardo das Divindades Irritadas, cujo reconhecimento é mais difícil por serem influenciadas por sentimentos de medo, de terror e de receio... Fugindo por medo, terror... as pessoas ordinárias caem pelos precipícios, nos mundos infelizes e sofrem. [p 91]
A experiência da realidade com as Divindades Irritadas é um filme de terror. Para os tibetanos esse é o inferno possível no post mortem [situação infernal ou Inferno podem ocorrer em vida terrena também]. Nesta fase o espírito está sujeito a sofrimentos indescritíveis [proporcionais a seus medos, culpas e agonias]. No entanto, por mais reais que os piores acontecimentos possam parecer, são todos ilusórios; não haverá nenhum dano real à estrutura física [ou melhor dizendo, metafísica] do "corpo radiante".
A "aurora" das divindades irritadas assemelha-se a um longo pesadelo durante o qual pode-se ter a nítida impressão de morte e aniquilamento [possivelmente trata-se de uma "segunda morte", a morte dos apegos às coisas da vida passada]. Isso ocorre nos dois últimos "dias" dos 14 dias de duração média do Chönid Bardo.
Não reconhecendo o defunto as próprias formas-pensamento, as formas do Darma-Raja, o Senhor da Morte, brilharão sobre o Chönid Bardo [em ponto e direção acima do "ser de percepção". Note-se que o Senhor da Morte tem múltiplos corpos]... Morderão o lábio inferior, os olhos vítreos... gritando: "bate, mata"!, lambendo um crânio humano, bebendo sangue, arrancando corações.
Quando tais pensamentos se manifestarem, não te assustes nem aterrorizes... Sendo que possuis um corpo mental de tendências cármicas, mesmo golpeado, cortado em pedaços, não poderás morrer. Pois teu corpo é, na Realidade, da natureza do vazio. Nada tens a temer. Os corpos do Senhor da Morte são também emanações, radiações de tua [dele mesmo, Espírito] inteligência; não são constituídos de matéria [densa, pesada, terrena]; o vazio não pode ferir o vazio... Sabendo disso, todo medo e terror dissipam-se sozinhos e, fundindo-se no estado instantâneo [não formação de pensamento], obtém-se o estado de Buda. [p 101]
O Livro Tibetano dos Mortos adverte, com insistência, que mesmo nas circunstâncias mais sangrentas, o Espírito deve lembrar-se que os horrores vivenciados, apresentados à sua percepção, são ilusões geradas por ele mesmo, pelo seu SER VERDADEIRO, que é feito de energia mental. No 14º dia do Chönid Bardo, não tendo se tranqüilizado e não reconhecendo suas próprias formas pensamento, o Espírito verá O Senhor da Morte Darma-Raja, com seus inumeráveis corpos.
Em todas as fases do Chönid Bardo existe a possibilidade de Libertação. Para isso basta que o Espírito RECONHEÇA as visões como suas próprias projeções mentais e com isso possa dissipar o pânico estabelecendo um estado de calma impassível. Essa indiferença diante do agradável e do desagradável, igualmente, é a mais importante conquista, e "lição número 1", tanto dos Iniciados iogues e budistas quanto dos ocultistas ocidentais.
O auto-controle e a tranqüilidade são a chave da Libertação; estes atributos somente podem ser alcançados se a pessoa tem consciência do caráter ilusório das percepções, dos sons, das visões: "Lembrar-se disso neste momento é obter o estado de Buda" [p 100]. Lembrar-se dos ensinamentos do Bardo, então, será o suficiente para que o Espírito escape ao condicionamento do carma. É necessário, portanto, o mínimo de instrução religiosa para "morrer bem".
O poder da fé é enfatizado no texto e a interferência de um Ser supremo e realmente divino pode ser o bastante para libertar o Espírito. Semelhante à doutrina cristã, a doutrina do Bardo afirma a onipotência de uma "divindade tutelar", chamada de "preciosa Trindade", Senhor da Compaixão e, ainda, "o Compadecido", remetendo o leitor ocidental, mais uma vez, à figura de Jesus Cristo, como pessoa da Santíssima Trindade que é o Deus Criador, posto que é Um e Três na coexistência mística, na ontologia complexa do SER Pai, Filho e Espírito Santo.
Ai de mim! Eis-me errando no Bardo [neste estado intermediário],?vem me salvar. Sustenta-me por tua graça, ó Tutelar Precioso?[Chamando teu guru pelo nome, reza assim:]?...Que eu possa ser transformado no som das Seis Sílabas...?[Om-ma-ni-Pad-me-Hum]?Neste momento... Rogo proteção ao Compadecido [p 102]
Om-ma-ni-Pad-me-Hum ? é chamado "mantra essência" ou mantra de Chenrazi, o Compadecido, divindade protetora do Tibete que, ali, tem o nome de Chenrazi [para o ocidental, é Jesus ou a Virgem Maria ou simplesmente Deus, assim como para os krisnaista é Krishna e para muitos budistas é o Buda Amitaba ou Sakiamuni. Segundo o Todol, o simples entoar mantra de Chenrazi, seja encarnado ou desencarnado, extingue o ciclo de renascimentos e permite alcançar o Nirvana [estado de Buda]. Cada sílaba fecha uma porta que conduziria o Espírito a mundos inferiores.
OM: fecha a porta dos renascimentos entre os deuses, Devas?MA: impede nascer entre Asuras [semi-deuses e "heróis]?NI: fecha a porta do renascimento no mundo Humano?PAD (pê): bloqueia a entrada no mundo das criaturas sub-humanas [animais, vegetais, minerais]?ME: afasta o mundo dos Infelizes,chamados Pretas?HUM (hung): protege de um nascimento no Inferno, entre os Rakshasas.
Quaisquer que sejam as praticas religiosas ou, ainda, o ateísmo dotado por um Ser, as ilusões perturbadoras sempre aparecem na hora da morte. Por isso, o Thödol é tido como indispensável: "É de particular importância o treinamento com este Bardo [doutrina], o que deve ser feito inclusive durante a vida." [p 103]
Os tibetanos não têm medo de se preparar para o momento da morte. Não é um assunto deixado para um "depois-nunca", como acontece no ocidente onde falar da morte é um comportamento inconveniente. O Espírito que estuda os fenômenos da agonia e do post mortem está mais apto a enfrentar as experiências tão inquietantes que podem acontecer nos últimos momentos de existência terrena de um ser humano.
IV. SIDPA BARDO
O Chönid Bardo, além de aterrorizante, é uma experiência muito exaustiva. O Espírito que não reconheceu as visões de pesadelo como ilusões da mente, passa, necessariamente por uma seqüência de acontecimentos que minam suas forças e sua consciência. Entretanto, nada perdeu; ao contrário, o sofrimento consome todos os resquícios de matéria mental "impura", terrena, esgotando a capacidade de sentir culpas, medo e/ou desejos.
Cansado, o Espírito sofre um desfalecimento: "desfaleces no medo". Quando recobra a consciência, o Ser Cognoscente (Ser conhecedor) percebe a si mesmo como um "corpo radioso". É o começo da jornada no Sidpa Bardo, situação que ainda possibilita algumas chances de Libertação do Carma. Se estas oportunidades também forem perdidas, as portas do Sangsara se abrem.
O Espírito deverá buscar a melhor opção de reencarnação em um dos seis Lokas ou Mundos Inferiores. Neste ponto do post mortem o conhecimento do Thödol é fundamental para se saiba quando e como "fechar as portas" dos mundos mais infelizes, garantindo uma nova vida em uma das duas situações mais positivas: o mundo dos Devas e o Mundo Humano. O texto do Livro dos Mortos esclarece em minúcias as situações metafísicas que o espírito vai experimentar no Sidpa Bardo:
No momento em que experimentavas as radiações... no Chönid Bardo... desfalecestes no medo por um período de aproximadamente três dias e meio após tua morte [vê-se aqui que o Tempo em Bardo, estado intermediário, não tem correspondência com dias terrenos]... No instante em que retornas desse desfalecimento, o Cognoscente ergue-se em ti, em sua condição primordial, e um corpo radioso, assemelhando-se a teu corpo precedente [da última vida terrena], projeta-se... É conhecido como corpo do desejo...
Não sigas as visões que te aparecem neste instante... Permita que seu [SER] repouse sem distrações na não-ação e no desprendimento... Agindo assim conseguirás a Libertação sem teres de passar novamente pelas portas matrizes... Se não reconheceres a ti mesmo, então, quaisquer que sejam sua Divindade Tutelar e seu Guru, concentra sobre eles [teu pensar]... Não te deixes distrair porque este momento é de grande importância...
Este teu corpo atual... não é um corpo de matéria grosseira... Tens o poder de passar através das massas rochosas... Essa condição deve servir para ti como uma indicação de que erras pelo Sidpa Bardo. Lembra-te dos ensinamentos de teu Guru e ora ao Senhor da Compaixão.
[Atualmente]... possuis o poder de ação milagrosa que não é fruto do Samadi, é algo que vem naturalmente de ti, um poder de natureza cármica... Podes chegar instantaneamente ao lugar que quiseres... Não deves desejar estes poderes, são poderes diversos de ilusão e metamorfoses... Nunca os desejes! [p 109-111]
O Espírito terá a clarividência do mundo que deixou para trás; verá lugares conhecidos, familiares, tudo em um estado de consciência semelhante ao sonho. A realidade percebida no Sidpa Bardo será mais ou menos feliz ou infeliz dependendo de como, a essa altura, o indivíduo reage ao saber que está morto para a "vida" da PERSONALIDADE passada. Os inconformados, angustiados, tristes, tomados de culpa, saudade ou medo, estes passarão enormes sofrimentos.
O desapego das "coisas do mundo", tão enfatizado na doutrina e prática do budismo bem como na teologia cristã, é o único caminho caminho para um post-mortem feliz. O Espírito, ao constatar sua "morte para o mundo", simplesmente aceita o fato e, compreendendo a verdadeira dimensão da própria existência [CONTÍNUA] não lamenta nada, não pensa em perdas, não fica preso a nenhum tipo de recordação. O Bardo Thödol descreve a situação do "defunto inconformado": ele é a alma penada, o espírito errante, o fantasma dos cemitérios.
[Em corpo de desejo o Espírito]... verá os lugares que lhe eram conhecidos na terra bem como seus familiares, como em sonho. Fala-lhes, mas eles não te respondem, Ao vê-los chorar... pensas: "Morri, que farei?" ...Sentirás profunda dor... Contudo esse sofrimento de nada te adiantará. Reza para teu Guru divino. Ora à Divindade Tutelar, o Compadecido. Não te farás bem sentir apego por teus parentes e amigos. Assim, não te apegues. Reza ao Senhor da Compaixão e não sentirás dor, terror ou horror...
Sempre haverá uma luz cinzenta de crepúsculo... Permanecerás neste chamado Estado Intermediário por uma, duas, três, quatro... semanas, até o quadragésimo nono dia... Pessoas de péssimo carma produzem carmicamente rakshasas vorazes de carne, portando armas diversas, aos gritos de "Bate! Mata!" ... São aparições ilusórias. A chuva, a noite, neve, rajadas de vento... virão. Terrificado... desejarás fugir... sem prestar atenção para onde vai. O caminho será barrado por três precipícios... o branco, o negro e o vermelho. Não são precipícios verdadeiros. Trata-se, na verdade, da cólera, cobiça e ignorância...
Descansarás um pouco... nas cabeceiras das pontes, nos templos, perto das estupas... Pensarás: "Ai de mim, o que fazer, estou morto?... Não podendo repousar [mais] ... és forçado a seguir adiante... Como alimentação, aquela que te foi aplicada poderá ser tomada... [Os moradores do Bardo vivem das essências etéreas invisíveis extraídas de alimento que lhes oferecido no plano humano ou extraindo energia dos componentes da natureza que os sustentam]... Tais são os errares do corpo-mental no Sidpa Bardo... Oprimido por uma grande dor, terá o pensamento: "O quê eu não daria para ter um corpo!" E pensando assim errarás... Repele este desejo de ter um novo corpo. Vencendo este confronto, obterá a libertação...[p 111-14]
V. O JULGAMENTO
O julgamento é um novo confronto. Desta vez, de natureza mais objetiva, é o momento de evocar os méritos e deméritos do Espírito, de suas ações na vida terrena. Uma figura de juiz, o Senhor da Morte, vai julgar a personalidade passada. Na alegoria, um Gênio Bom e um Gênio Mau ? que acompanham o Espírito em sua existência ? apresentam as virtudes e os vícios, os acertos e erros do Espírito. Não há meio de enganar o Senhor da Morte porque ele "vê" a Verdade no "Espelho da Carma" [p 115]. "A mentira de nada servirá". Os "carrascos-fúrias" estão prontos para aplicar o castigo ? ou seja, o Espírito chegou ao ponto de somente se purificar se sofrer castigos pelo que ele mesmo julga serem suas "culpas".
Um dos carrascos-fúrias do Senhor da Morte amarrará uma corda em volta de teu pescoço e te arrastará. Cortará tua cabeça, arrancará teu coração, extrairá teus intestinos, devorará teu cérebro, beberá teu sangue, comerá tua carne, roerá teus ossos, mas serás incapaz de morrer. [As torturas são da própria consciência... o superego de Freud]; o espelho do carma é a memória... Reviverá mesmo estando teu corpo retalhado em pedaços... Não te deves amedrontar... Não mente e não teme o Senhor da Morte. Lembra que agora tem um corpo mental, incapaz de morrer, mesmo decapitado, mesmo decepado. Teu corpo é da natureza do vazio... Os senhores da Morte são tua própria alucinação. [p 115
Novamente, o Espírito assediado pelas horrendas visões deste julgamento, poderá se libertar através da impassibilidade. Uma serenidade que pode obtida pelo reconhecimento de todas as coisas como ilusão. Aqueles que, durante a vida praticaram a meditação e aprenderam a instaurar a completa quietude da mente, pela não-formação de pensamentos, estes poderão superar quaisquer alucinações. Os que nunca meditaram também podem alcançar a paz interior se concentrarem seu pensamento no Compadecido [Cristo, Khrisna, Buda].
VI. OS SEIS LOKAS
O Espírito que não conseguiu a Libertação nas etapas anteriores passará, então, pelas experiências que vão determinar a situação de seu próximo renascimento. Para evitar renascer em mundos inferiores será necessária a instrução na doutrina do Thödol e a máxima atenção para com as percepções seguintes. O Espírito vai se defrontar com diferentes passagens, cada uma conduzindo a um Loka diferente. Apenas dois destes Lokas são recomendados pelo Livro dos Mortos.
A partir desta fase, o Espírito, continua tendo visões do que se passa "entre os vivos", o quê acentua a tendência ao apego e, dependendo daquilo que percebe, fomentam-se sentimentos negativos, como a cólera e a autopiedade, o amor doloroso e a saudade em um processo que resultará em "renascimento no inferno" [mundo dos Rakshasas].
Se o Espírito não consegue superar seu apego aos bens materiais, se lamenta ver suas posses nas mãos de outros,"se ainda sente cólera contra seus sucessores" [p 117], este Espírito, dominado pela AVAREZA, perderá a chance de nascer em um "plano superior mais feliz e nascerá no inferno dos Rakshasas ou no mundo dos Pretas.
O Thödol, ainda uma vez, recomenda o desapego, a renúncia em relação às posses e a tolerância em relação aos viventes que, porventura estejam se comportando de forma inadequada ou desrespeitosa. "Jamais crie pensamentos ímpios", o ideal é se concentrar em um sentimento de afeição tendo o pensamento repleto de humildade e fé. No estado intermediário, no Bardo, todo pensamento é forte a ponto de se tornar tangível.
"Diante disso, não pense em coisas ruins... lembre-se de qualquer gesto de devoção... Manifesta uma pura afeição humilde fé... Ora ao Compadecido"... [p 119]. Esta é a última chance de evitar uma reencarnação. Falhando em todas as tentativas e despertar em si o Entendimento, o indivíduo verá, então, as luzes dos seis Lokas e o derradeiro recurso para obter a Libertação é conseguir fechar a porta da matriz" ou seja, a porta de cada um dos mundos inferiores onde pode acontecer o Renascimento.
A matriz é o corpo-pai-mãe onde o Espírito será gestado e de onde nascerá. Quando aparece um dessas portas, o Ser pode sentir atração ou rejeição. O ideal é não sentir NADA. Os dois sentimentos devem ser rapidamente dissipados porque podem produzir a transferência imediata para um dos Lokas inferiores dos mais indesejados; mundos dos brutos [animal, vegetal ou mineral]; mundo dos Rakshasas; dos Pretas; o mundo dos Asuras. As melhores opções para quem vai reencarnar são o mundo dos Homens e o mundo dos Devas. É necessária a máxima atenção, concentração e serenidade nos próximos momentos porque serão decisivos para uma vida mais afortunada que a anterior.
VII. Renascimento
Perdidas todas as chances de se tornar um Buda, um Iluminado, "se a porta das matrizes não foi fechada, está na hora de tomar um novo corpo. Aparecem, então, os sinais e características do local de renascimento. O livro descreve os mundos inferiores
Neste segundo estágio do Chikhai Bardo, tão logo o princípio consciente abandona o corpo "ele se pergunta: ? "Estarei morto ou não?" ? Enquanto isso, entre "os vivos" o rito funerário tibetano continua [os católicos cristãos tem seus próprios ritos o padre que encomenda a alma a Deus, as missas, de sétimo dia, de mês, etc.], auxiliando o morto na transição: "... o lama ou leitor [oficiante, sacerdote, irmão de fé etc.] faz uma prece para a Divindade Tutelar do morto. Essa Divindade é "deus", santo, anjo, orixá etc., dependendo da formação religiosa e cultural do defunto.
VIII. Nascimento Supranormal e Nascimento no Germe
O Thödol relaciona quatro espécies de nascimento: pelo ovo, pela matriz, supranormal e pelo calor e umidade. O nascimento supranormal é a transferência direta do princípio consciente de um loka [mundo] para outro. Deste modo o Espírito evoluído poderá nascer entre Budas ou Devas. O Espírito inferior, entre Asuras. Pelo calor e umidade é o nascimento no mundo vegetal. O nascimento pelo ovo e pela matriz são semelhantes e também chamados de "nascimento pelo germe" [p 124]. É pelo germe que o nascimento acontece no mundo Humano ou entre Pretas, ou entre Rakshasas.
O nascimento pelo germe começa com a entrada do Espírito pela via etérea [em corpo sutil, radiante] no preciso momento em o espermatozóide e o óvulo se unem: "o Cognoscente" [Espírito] prova um período de alegria... vindo a desfalecer, em seguida, em estado de inconsciência"... Será encaixado na forma oval da circunstância embrionária... Do mesmo modo pode-se descer ao Inferno ou ao mundo dos espíritos infelizes [Pretas] [p 124].
Conclusões
A morte é um assunto desagradável. No Ocidente, tornou-se quase proibido falar nisso. É uma "conversa mórbida". Entretanto, todos vão morrer; a conversa mórbida é um fato universal e inquestionável: o corpo humano é perecível. Resta saber se algo, em nós, é imperecível. O Livro dos Mortos Tibetano afirma o conhecimento de que que sim! Existe no ser humano uma porção que não morre: o Espírito, que é o Ego, percepção que se traduz em "Eu Sou".
O Bardo Thödol, Livro do Estado Transitório entre Vida e Morte, é uma doutrina, um manual [no sentido de "livro"] e um ritual. Doutrina da ontologia do Humano [do SER Humano], manual para orientar as transições entre a vida material-Espiritual e a vida puramente Espiritual, ou seja, vida e morte e ritual facilitador desta transição entre o nascer e o morrer.
A instrução dos sacerdotes e dos fiéis budistas tibetanos em geral, inclui o estudo do Bardo Thödol, como informação necessária, indispensável para que a continuidade da existência, no post mortem, possa transcorrer como experiência feliz tanto quanto possível.
Considerando a limitação da vida terrena comparada à "eternidade" da existência no Universo, não é uma extravagância tibetana cuidar dessa existência não terrena com tanto zelo. O Ser existe mais tempo na condição metafísica, de Espírito [incondicionado... meditemos...], do quê na condição física de pessoa-personalidade humana-terrena.
A experiência de nascer e viver na Terra, ser-estar em um corpo físico, pode obscurecer a tal ponto a auto-consciência do verdadeiro EU que, ao findar de uma vida, a partir do momento da morte, um Espírito pode entrar em profunda confusão mental e ao invés de desfrutar da condição de espírito livre, sofre, apegado, preso aos costumes e lembranças de um SER no espaço-tempo [uma personalidade] que não existe mais.
O Bardo Thödol é o texto "religioso" mais amplo e objetivo, no sentido de científico, que trata da morte e de sua relação com a vida em detalhes preciosos. A instrução do Thödol chama a atenção para aspectos importantes da condição humana que acabam por ser completamente descuidados no dia-a-dia do homem contemporâneo.
A preparação para o momento da morte enfatiza a importância dos pensamentos ao longo da vida. As "visões", as ilusões que atormentam o espírito em Bardo são muito semelhantes aos tormentos do mundo. Figuras monstruosas, cenas aterrorizantes são as personificações metafísicas da realidade orgânica e psíquica dos piores sentimentos humanos. O espírito em Bardo é o ser em sua natureza primária, que é MENTAL; e a mente é como um lago que o Bardo deve manter em impassível repouso.
Estudo do Livro dos Mortos Tibetano, o Bardo Thödol?edição em português de Lama Kazi Dawa Samdup?Trad. Márcio Pugliese. São Paulo: Madras, 2003
O Bardo Thödol é uma obra que fala da concepção budista-tibetana sobre o post mortem. Foi escrito no século VII, compilado por mestres budistas. Seu conteúdo, porém, muito mais antigo, reúne crenças tibetanas sobre o que acontece depois da morte do corpo físico humano.??Também chamado de O Livro dos Mortos Tibetano, a expressão "Bardo Thödol" é mais apropriadamente traduzida como "A Libertação Pelo Entendimento na Vida após a Morte". "Bardo" é uma palavra composta: BAR significa "Entre" ? DO, significa "Dois".Fonte:https://bemzen.com.br/noticias/ver/2012/03/21/3218-bardo-thodol
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