ANÁLISE ACADÊMICA E ENSAIOS INTERROGAM JUSTEZA DOS MOTIVOS E EFEITOS DA GUERRA NA UCRÂNIA

 

Explosão é vista na capital ucraniana Kiev no dia 24 de fevereiro - Foto: Gabinete do Presidente da Ucrânia via EBC

Sessenta anos depois da crise dos mísseis em Cuba, Rússia e EUA voltam a se enfrentar, sob olhar atento da China

  25/02/2022 – Publicado há 11 meses

Era outubro de 1962. O guia espiritual do Colégio Santista, a escola marista em Santos, padre Paulo Horneaux de Moura, entrou, com ar solene, na sala da então quarta série ginasial e nos advertiu que o mundo passava por um momento aflitivo, que poderia resultar num conflito nuclear. Os Estados Unidos haviam detectado que a União Soviética plantara mísseis balísticos na Cuba de Fidel Castro, a 90 quilômetros de Miami, e, a menos que fossem retirados, seriam obrigados a reagir…

Um ano antes a União Soviética erguera o Muro de Berlim para evitar a crescente fuga de cidadãos de Berlim Oriental, sob seu controle desde o fim da Segunda Guerra Mundial, para a parte ocidental da ex-capital alemã, sob o domínio dos EUA, da Inglaterra e da França. A tensão entre o Ocidente e a União Soviética atingira níveis perigosos. O espectro de um confronto nuclear assombrava o mundo. Depois de intensas negociações, à frente o jovem presidente dos EUA, John Kennedy, e o experiente Nikita Khrushchov, pela União Soviética, chegou-se a um acordo: os EUA retiraram seus mísseis balísticos dirigidos contra a União Soviética a partir de bases instaladas na Turquia e a URSS levava os seus de volta para casa – deixando Fidel Castro furioso, segundo consta na história.

Seis décadas depois, num mundo mais sofisticado e num quadro geopolítico muito mais complexo, mais atores em cena, as posições se invertem, com a Ucrânia no centro da disputa e a Rússia já desdentada, a partir da queda do Muro de Berlim, dos satélites que formavam a União Soviética. Queda esta, vivenciada pelo atual mandatário da Rússia, desde Dresden, então parte da Alemanha Oriental, onde servia na temida KGB, o todo-poderoso serviço secreto da ainda União Soviética. Voltando para a Rússia, escolado pela vivência e o conhecimento dos subterrâneos da sociedade, escalou os degraus do poder em seu país, que se fragilizou desde a época da Glasnost e da Perestroika, vãs tentativas de modernização e liberalização dos sistemas políticos e econômicos do bloco soviético – abrindo espaço para um domínio hegemônico dos EUA sobre o mundo.

Eternizando-se no poder na já solitária Rússia, Putin não esconde sua nostalgia pelos tempos da União Soviética, surgida há exatos 100 anos e cujo desaparecimento classificou como “o maior desastre geopolítico da história”. Consolidando-se, cada vez mais, no comando da Rússia, intervém, sem contestações, em porções da ex-URSS, como a Ossétia do Sul e a Abecásia, regiões que procuravam se independentizar da vizinha Geórgia. Agora, avança militarmente sobre a Ucrânia, da qual já tomou a região Crimeia, alegando que os dois países têm história comum e populações que se mesclam, mas, essencialmente, pelo namoro do país com a Otan – a Organização do Tratado do Atlântico Norte, que reúne os EUA e 30 países da Europa e a União Europeia, que já atraíram para sua órbita quase todos os países que se alinhavam à ex-União Soviética, inclusive as vizinhas Estônia, Letônia e Lituânia.  

Vladimir Putin, Joe Biden, Volodymyr Zelensky e Xi Jinping: um xadrez entre a guerra e a paz - Fotos: Agência Brasil/EBC

A nostalgia do poder da ex-URSS por parte de Putin deve ter aumentado, nos últimos tempos, à medida que cresceu a importância da China no contexto mundial, tirando da Rússia o status de maior potência desafiadora da hegemonia dos EUA no mundo. No ano passado, os EUA continuavam a primeira economia do mundo (segundo previsão do FMI de outubro de 2021), com PIB de US$ 20,894 trilhões, e a China já ocupava o segundo lugar, com US$ 14, 686 trilhões. A Rússia aparecia apenas em 11º lugar com modestos US$ 1,479 trilhão, valor semelhante ao do Brasil. Além disso, a China aumenta sua presença e influência globalmente desde o começo deste século: lançou a iniciativa da Nova Rota da Seda, que envolve propostas de investimentos e acordos bilaterais com 140 países do mundo, é importante parceiro econômico dos países da América Latina, aumenta seus laços econômicos com a União Europeia, ocupa crescente espaço político e econômico na África; tornou-se, enfim, a maior competidora dos EUA, obscurecendo o papel da Rússia na política global.




Na geopolítica mundial, a Rússia ainda mantém um grande trunfo, o arsenal nuclear herdado da União Soviética, do qual Putin lançou mão, em recente fala, ao justificar a ação militar contra a Ucrânia: “Quem quer que tente nos impedir… deve saber que a resposta da Rússia será imediata e levará a consequências nunca enfrentadas na história”. Não se deve esquecer ainda as capacidades russas em promover guerras cibernéticas com enorme poder de semear dificuldades entre adversários. E, ao mesmo tempo em que armava sua ação contra a Ucrânia, Putin tratou de proteger sua retaguarda assinando com seu homólogo chinês Xi Jinping, em Pequim, um memorando conjunto sobre “A Nova Era das Relações Internacionais e o Desenvolvimento Global Sustentável” em que os dois países se propõem a trabalhar unidos na solução de vários problemas críticos globais. A declaração foi mundialmente interpretada como uma redefinição da estrutura de poder mundial ao aproximar ainda mais os dois países face às suas disputas com o Ocidente.

Diferentemente do conflito dos mísseis soviéticos em Cuba, o embate da Otan, liderada pelos EUA, com a URSS, apesar de tão grave quanto, tem sido indireto pois a Ucrânia, embora desejasse, ainda não faz parte da organização. O máximo que os membros do pacto puderam e têm feito é reforçar as tropas da organização nos países vizinhos, pois não têm respaldo legal para colocar tropas on the ground, na própria Ucrânia. Simultaneamente, o presidente Joe Biden, membros de seu governo e países aliados denunciaram contínua e cotidianamente que Putin invadiria a Ucrânia, o que acabou ocorrendo. E agora providenciam sanções econômicas contra a Rússia, cuja eficácia no curto prazo é posta em dúvida.

No decorrer de toda essa movimentação, entretanto, surgiram contestações sobre a conveniência de a Otan ter se expandido tanto para o Leste europeu abrigando quase todas as nações que faziam parte da ex-URSS, projetando sombras sobre a segurança das fronteiras da Rússia, o que justificaria as apreensões e cautelas de Putin. O fato é que esses países também foram atraídos pelo potencial econômico e financeiro da União Europeia, que lhes oferecia novas perspectivas de desenvolvimento depois da debacle econômica da União Soviética. Seria possível evitar que também desejassem entrar na Otan?

Reprodução: DW – Fonte: OTAN

Escrevo estas linhas panorâmicas sobre o conflito na sexta-feira pré-carnaval, que não é bem carnaval em função da pandemia, quando ainda não é possível prever os desdobramentos dos confrontos na Ucrânia. Tudo indica que Putin quer a desmilitarização da Ucrânia e a independência, que já reconheceu, das regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk, onde já há conflitos comandados por separatistas pró-Rússia. Tolerará a permanência do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, o ator transubstanciado em político, que gostaria de incluir seu país na União Europeia e na Otan?

É surpreendente vermos GUERRA NA EUROPA nas manchetes em pleno 2022. Talvez seja ingenuidade imaginar que essa manchete está fora de lugar e de tempo. Os atores principais desta crise da Ucrânia são os mesmos daquela dos mísseis soviéticos em Cuba em 1962, quando as imagens predominantes ainda eram em preto e branco.

Veja também:

• Professores da USP estão escondidos em bunker improvisado em Kiev (Globonews, 25/2, 18h40)

Ensaios interrogam justeza dos motivos e efeitos da Guerra da Ucrânia

JOÃO BATISTA NATALI

qui., 19 de janeiro de 2023 5:35 PM BRT

 

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Vamos direto ao ponto: a Guerra da Ucrânia é bastante complicada em termos políticos e históricos para ser explicada por cidadãos cuja única credencial é ser simpatizante de um dos lados. É preciso bem mais que isso, com empenho e profundidade acadêmica.

Estamos falando de "Ensaios sobre a Guerra Rússia Ucrânia 2022", com textos organizados por Neide Jallageas e Bruno Gomide para a editora Kinoruss. Doze historiadores e especialistas em cultura russa completam, com o livro, um trabalho de reflexão iniciado, em encontro na Universidade de São Paulo, antes mesmo que o conflito entrasse em seu terceiro mês.

Nenhum dos textos transporta legitimidade às ambições territoriais da Rússia. Mas a crítica inteligente satisfaz curiosidades e leva à satisfação intelectual.

Vejamos o do historiador Daniel Aarão Reis. Em determinado momento ele se refere à surpresa da Rússia e dos próprios ucranianos com a eficiência dos coletivos de resistência. Não são grupos armados clandestinos como a resistência francesa à ocupação alemã na Segunda Guerra, mas unidades altamente tecnológicas e geograficamente dispersas, com trocas de informações pelo celular sobre movimentações mecanizadas dos inimigos, com o uso de aplicativos criados pelos americanos.

O livro também se interroga sobre a justeza das razões que levaram o presidente russo, Vladimir Putin, a deflagrar o conflito. Ele foi amplamente apoiado pela opinião pública interna --ou o que isso signifique num Estado próximo a uma ditadura-- que temia a construção de bases militares da Otan em território da Ucrânia.

Mas textos de dois especialistas, Angelo Segrillo e Vicente Ferraro, argumentam que não é bem por aí. O acesso de Kiev à aliança militar ocidental teria um longo caminho pela frente, com a necessidade de profundas reformas políticas e militares. Não é coisa para amanhã. Mas a Otan inspira uma confusão deliberada. Ela assustou a Rússia ao avançar no Leste Europeu com a adesão de Hungria, República Tcheca e Polônia, três países da antiga esfera soviética, e em seguida de três ex-repúblicas da URSS, Letônia, Estônia e Lituânia.

Mesmo assim, a guerra acaba funcionando como tiro no pé, já que Finlândia e Suécia, antes neutras, entraram na fila para ingressar no bloco militar, por medo de uma futura agressão russa.

Outro motivo evocado por Moscou para desencadear a invasão foi a suposta incrustação de neonazistas na estrutura de poder da Ucrânia. Os russos têm a respeito duas referências. A primeira é o Batalhão Azov, originariamente milícia da direita radical depois incorporada à Guarda Nacional e, com isso, operacionalmente neutralizada.

A segunda é Stepan Bandera, que o então presidente Viktor Iuschenko declarou postumamente, em 2010, "herói da Ucrânia" -título que foi cassado tempos depois. Bandera foi nos anos 1940 um chefe de milícia que se bateu pela independência ao país e que, para se contrapor aos soviéticos, aliou-se ao Exército nazista.

Mas tudo isso é secundário, argumenta o livro, porque a coligação de ultradireita, na qual os neonazistas estão alojados, recebeu no último pleito legislativo só 2,15% dos votos, sem superar os 5% que permitiriam a eleição de um deputado.

Em suma, radicais existem na Ucrânia como em todo e qualquer país europeu, e uma guerra seria instrumento delirante para desalojá-los de um poder que não ocupam.

A terceira motivação evocada por Moscou para a guerra estava nos supostos maus-tratos que a Ucrânia reservaria a suas minorias de língua e cultura russas. Mas retenham a data de 2014. Foi quando Putin anexou a Crimeia e estimulou a independência das repúblicas russófonas de Donetsk e de Lugansk, que se tornaram regiões separatistas do Donbass ucraniano.

Essas três cisões territoriais provocaram uma guerra civil de baixa intensidade. Mas, estatisticamente, nos últimos oito anos morreram nessas regiões menos civis do que depois da invasão russa na Ucrânia. A guerra tem sido mais mortífera junto a uma população que, por afinidades étnicas, pretendia proteger.

Em tempo: os ucranianos de língua russa não aderiram aos invasores e boa parte deles emigrou para não participar do conflito.

Um último tópico entre dezenas de outros aqui relegados foi o levantado por Martin Baña, para quem o conflito fez ressurgir na Europa e nos EUA um preconceito contra a cultura russa. É como se a guerra fosse decidida por artistas e intelectuais hoje injustamente cancelados no Ocidente, como a soprano Anna Netrebko e o maestro Valeri Guérguiev, dois nomes magníficos da ópera e da música sinfônica universais.

Na cultura do cancelamento por parte de militantes desinformados, não é Putin, mas a cultura como um todo, que sai perdendo.

ENSAIOS SOBRE A GUERRA RÚSSIA UCRÂNIA 2022

Autor Bruno Gomide e Neide Jallageas (org.)

Editora Kinoruss 496 págs. R$ 99

Fonte:https://br.yahoo.com/noticias/ensaios-interrogam-justeza-dos-motivos-203500485.html

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