A PRÁTICA DO ALTAR - LAMA PADMA JORGE

  Félix Zucco / Agencia RBS

Referência na disseminação do budismo tibetano no Brasil,o lama divide-se entre os cuidados com os filhos mais jovens e as viagens pelo Brasil

Casado, com cinco filhos, o físico gaúcho Alfredo Aveline, 66 anos, discípulo do mestre Chagdud Rinpoche (o fundador do Templo Budista de Três Coroas), é presidente do Centro de Estudos Budistas Bodisatva e tornou-se uma referência na disseminação do budismo tibetano no Brasil. Reconhecendo suas qualidades de líder espiritual, Rinpoche, em dezembro de 1996, ordenou Aveline como Lama Padma Samten - ("lama" é o sacerdote; "padma" significa lótus; e "samten" refere-se à capacidade meditativa). Desde então, Lama Samten tem viajado, ensinado e ajudado a estruturar e manter grupos pelo país.

Fundada em 1986, sua organização tem sedes nas cinco regiões brasileiras e planeja expansão dentro do Estado. Recebeu treinamento de professores de várias tradições budistas, incluindo a zen, e viajou à Ásia em muitas ocasiões. Contribuiu para trazer grandes mestres para o Brasil, incluindo o Dalai Lama.


Fonte:https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2015/08/lama-padma-samten-nao-meditamos-para-achar-a-felicidade-ela-ja-esta-la-4836110.html

A PRÁTICA DO ALTAR - LAMA PADMA JORGE

Recentemente duas pessoas me indagaram a respeito do altar, bem no momento em que estive fazendo mudanças no meu, por esses meses. Também cada vez encontro mais pessoas que já ouviram muitos ensinamentos, e que se consideram praticantes do budismo, e que aparentemente colocam o darma como algo bastante prioritário em suas vidas – ou ao menos proclamam isso –, mas que nem cogitaram ainda ter um altar em casa. É um dos efeitos ruins da secularização do darma, já que se trata de uma prática muito poderosa. Eu mesmo tive uma relação muito irregular com o altar até assumir um compromisso formal com a prática, em 2002. Então resolvi escrever algo com pessoas como eu mesmo em mente.

 

Chagdud Rinpoche costumava dizer que o treinamento da mente é como desenrolar uma cartolina para o uso. Quando a compramos está fechada num tubo. Então, para que ela fique plana e possamos trabalhar com ela, primeiro enrolamos a cartolina no sentido oposto, depois a deixamos quieta num lugar plano, e após algum tempo, ela estará plana, pronta para servir para seu fim como cartaz, e não tenderá a se enroscar nem para um lado, nem para o outro.

Na visão budista, a mente também é assim: ela pode ser treinada. Nesse momento, ela possui uma natureza flexível inexplorada, que se enrijeceu numa série de hábitos desafortunados, ou pelo menos bastante incoerentes – alguns bons, outros ruins, como se tivessem surgido sem muito critério, o que é exatamente o caso. Quando enfim nos deparamos com o treinamento budista, percebemos a princípio que é uma coisa artificial – algo arbitrário e não muito diferente do que já estamos fazendo: enrolar a cartolina na direção oposta não parece ser diferente dos outros hábitos que temos criado. Na verdade, até surge certo desconforto, uma vez que nosso hábito é de um jeito, e desafiá-lo requer certo esforço. Pensamos algo do tipo: “ora, se é para enrolar a cartolina, bem, então deixemos enrolada – que grande diferença!”

Queremos já saltar para a etapa de não interferir com a cartolina, mas o que ocorre é que, sem esforço de nossa parte, ela vai simplesmente ficar ali, enrolada. Isto é, bastante inútil. Neste estado atual, é bastante difícil de escrever, recortar ou fazer colagens nela. A nossa mente também, normalmente, não faz o que a gente quer – e algumas vezes passamos muito esforço para nos focar em algo e concluir uma tarefa, sem falar em mudar tendências nossas que claramente reconhecemos como contraprodutivas.

Claro, o fim do treinamento da mente não é o próprio treinamento da mente – o que precisamos é deixar a mente numa situação desembaraçada, em que ela efetivamente pode ser usada para nosso benefício e dos outros. Porém, quando nos deparamos com o treinamento da mente, ele além de, a princípio, ser desconfortável ou chato (por ir contra nossos hábitos), parece bastante bobo, por ser justamente uma formação de novos hábitos. Já queremos ir além deles, de imediato.

Porém, isso não é bem possível para a maioria de nós.

Repare novamente que o exemplo de Rinpoche tem duas etapas. Primeiro precisamos enrolar a cartolina no sentido oposto algumas vezes, talvez deixá-la descansar um tempo no seu estado “não natural”. Então, no fim desse processo, temos uma cartolina um bocado desengonçada, mas que pelo menos fica aberta. E então não precisamos mais mexer, deixamos a cartolina sozinha numa superfície plana, talvez com algumas coisas pesadas nos cantos, e ela dado um tempo chegará espontaneamente e sozinha a seu estado natural – em que ela serve bem para fazer qualquer coisa que se faz com uma cartolina.

Esse texto diz respeito à primeira etapa. Algumas pessoas podem pensar que todos os “rituais” budistas estão na primeira etapa, essa em que adicionamos uma artificialidade, um hábito novo, para combater hábitos arraigados – enrolar a cartolina no sentido oposto. Mas efetivamente, mesmo a prática aparentemente mais “natural” – e que não tem “cara” de ritual – pode não ser nada mais do que também uma artificialidade desse tipo.

Até mesmo ficar imóvel, com a coluna ereta, sentado em silêncio, com uma instrução extremamente geral do tipo “não altere nada” – algo bem difícil de seguir, na nossa situação enrolada atual – pode ser pura artificialidade.

Então precisamos, por um momento, pausar nosso desconforto com a artificialidade. Precisamos aceitar que temos hábitos, e que para contrabalançar certos hábitos, podemos gerar outros novos. E então precisamos abandonar nosso preconceito com o termo “ritual”, que em nossa cultura parece necessariamente implicar algo que se faz mecânica e repetitivamente, sem coração ou cabeça.

No budismo não existe o termo “ritual” – esse é um termo que usamos em comparação com mais ou menos o que vemos certos budistas fazerem em seu contexto nativo e o uso do termo no ocidente. E não só isso, muitas vezes o termo é usado com toda a carga de preconceito que o humanismo secular, ressentido com os abusos das religiões, tenta apregoar.

De toda forma, no budismo chamamos de cultivo, prática, treinamento da mente. Tenha que forma tiver, se é uma forma ensinada por um professor budista (sentar, se mover, fazer isso, fazer aquilo), essa forma invariavelmente é um treinamento da mente – e é uma artificialidade, que pode e deve ter como objetivo transcender a artificialidade, mas que nesse momento, se apresenta como algo bem fabricado, bem arbitrário, bem peculiar. E essa forma ensinada pode ser mais do que treinamento da mente, ela pode ser talvez terapêutica, ou relaxante: mas o cerne propriamente budista é o reencontro com a maleabilidade da mente, e a criação de bons hábitos. E isso é sempre treinamento da mente, que toda vez que é ensinado, é ensinado com um subterfúgio artificial – por mais que o objetivo não seja a artificialidade, e isso está bem claro nos ensinamentos budistas.

No budismo há hábitos bons, ruins e neutros. Os hábitos bons são os que nos conduzem a uma maior proximidade com isenção epistêmica (isto é, não ter preconceitos, viés), intensidade e esclarecimento. Algumas vezes se pode dizer “não conceitualidade, êxtase e luminosidade”, ou variantes. Embora meros bons hábitos não possam diretamente criar essas condições – elas não podem ser estabelecidas por hábito – eles permitem que sua presença natural seja reconhecida e usufruída.

Um hábito ruim, por exemplo, pode ser nossa tendência a não pensar no outro, ou não ser generoso. Claro, todos nós, vez que outra, temos consideração pelos outros e somos generosos – porém existe um limiar habitual de até onde vamos com essas atitudes, e a prática do treinamento da mente visa gerar novos hábitos, e tornar nossa mente mais propensa a obedecer nossas prerrogativas mais benévolas e relevantes – e assim ampliar essas qualidades via hábitos. Assim nossa tendência de autotrapaça e autosabotagem pode um dia ser superada, e vai ser bem mais fácil seguir as instruções do Buda, e encontrar a liberdade além de qualquer artificialidade. Nesse ponto são superados quaisquer possíveis limites impostos até mesmo por esses novos hábitos budistas, que invariavelmente possuem uma inteligência interna que não obstaculiza sua autosuperação.

Os hábitos do treinamento da mente ensinados no budismo são orgânicos, são projetados para se decompor automaticamente assim que se tornam obstáculos para uma maior liberdade da mente.

 

A prática de altar diz respeito à tomada de refúgio. Tomar refúgio significa relembrar o que realmente importa e se comprometer em seguir os métodos que levam ao que realmente importa. No caso do budismo, isso é representado pelo Buda, os ensinamentos do Buda, e todos os companheiros no caminho budista – o que chamamos de Três Joias.

O refúgio é tanto uma cerimônia específica, que alguém solicita a um professor quando deseja “se tornar budista” (isto é, se comprometer formalmente com os ensinamentos do Buda, seus resultados e seus métodos), quanto uma prática diária – e deve até mesmo ser uma prática frequente, com a aspiração de que se torne contínua ou ininterrupta. Lembrar o Buda é um dos hábitos que, ora, naturalmente conduz a atitudes que se coadunam com nosso objetivo e nossa visão de mundo. Lembrar o Buda é, portanto, uma prática não porque o Buda tenha por acaso o poder de mudar nossa mente, mas porque o próprio poder do Buda de mudar nossa mente não está, ele mesmo, fora de nossa mente.

Novamente, algumas pessoas não entendem algo crucial no budismo: a artificialidade aqui não é um problema, ela é mais uma ferramenta. Quando digo “artificialidade”, imagine tudo aquilo que parece pitoresco, peculiar e arbitrário. Alguma tendência megalomaníaca em nossa cultura exige uma pureza abstrata em tudo que se faz – as pessoas não querem nem mesmo dar um nome para aquilo que acreditam, de forma que não se torne algo perante o qual tem que responder, ou algo que a identifique de alguma forma com algum estereótipo.

Porém, no darma, “se usa gravata” – o budismo não vê nenhum problema em usar qualquer coisa que se apresente, por aparentemente idiota que pareça a princípio, desde que exista um contexto “funcional” (apareça, se apresente, seja reconhecível) e tenha o potencial de apontar uma perspectiva profunda (e tudo tem). E veja a forma “geral” que preciso usar para apresentar essa forma específica, tão tradicional! É um cuidado imenso que se tem que ter para tornar o budismo palatável ao sujeito moderno descompromissado, não rotulável, autotranscendente, descolado, “cético”, etc. No fundo, é só outro hábito criado por moda, mas que as pessoas confundem com sofisticação, isenção e neutralidade.

Por exemplo, algumas pessoas ficam muito contentes em saber que o Buda não está fora de nós, e que nossa mente é nosso maior mestre. Isto é absolutamente correto, e regozijar com isso não é nenhum problema. Agora, sinto dizer, mas essa não é a visão “mais sofisticada”. Para começar, ela solidifica noções de “dentro e fora”.

A visão mais ampla reconhece isso e faz a volta: já que o Buda e o professor presente da pessoa são o mesmo, e são a própria mente da pessoa, o Buda histórico externo e o professor externo se tornam nada mais do que as verdadeiras expressões milagrosas dessa mente livre. Ora, tanto o Buda é nossa mente, e tanto é que nos confundimos e nos esquecemos disso, que nossa mente criou essa expressão externa – que é como melhor podemos nos aproximar da realidade, pelo menos neste momento.

A sua mente é tão livre que ela permitiu que você ouvisse alguém dizendo que ela é o próprio Buda! Mas alguém disse. E você foi capaz de ouvir. Talvez, se você não tivesse várias camadas de conhecimentos culturais e históricos, você veria a imagem do Buda e esse nome, e algo da história de sua vida, e achasse simplesmente irrelevante e desinteressante.

Mas, não, com você foi diferente. Aconteceu uma interdependência com essa história: ela reverberou em você, e agora você está lendo um texto qualquer sobre budismo na internet, escrito por alguém que em algum momento passou pela mesma experiência.

Não é comum se interessar pelo darma.  Você pode até não ter muito mérito, por estar lendo esse texto, e não algum texto realmente bom e profundo, escrito por um professor qualificado. Mas alguma pequena coisa profunda até um texto desse quilate pode ter. E você aguentar – e ansiar por ler o que vem a seguir – é extremamente extraordinário e incomum. Reconhecendo essa sua capacidade fantástica, então você presta homenagem ao Buda Sakyamuni – que não é diferente exatamente dessa capacidade e abertura!

O exemplo do Buda, esse exemplo se aplicar de algum modo a você, e o fato de alguém dizer a você que isto tudo se aplica de algum modo a você, não são diferentes das Três Joias: o Buda, o ensinamento e a comunidade de praticantes que ao longo da história sustentaram essa perspectiva e mantiveram esses treinamentos. Quando ouvimos e levamos a sério, reconhecemos o valor disso, isso significa “prestar homenagem”.

O refúgio tem três aspectos. Lembrar, prestar homenagem e fazer compromisso. Dentro disso, a prática de refúgio pode ser tão simples quanto refletir um momento e tomar uma decisão mental, ou vastamente elaborada, com muito “ritual”.

Com relação a compromisso, você pode fazer um bastante geral, que é nunca se desviar do reconhecimento do Buda inseparativo – mas você pode fazer vários bastante específicos, como se comprometer com os cinco preceitos (não matar, etc.), bem como respeitar tudo que lembre o darma, tal como textos, imagens e companheiros de comunidade. Ao tomar refúgio, você de fato faz todos esses compromissos, mas em cada prática de refúgio, podemos nos focar em um ou outro com mais intensidade, ou mesmo listar extensamente todos os pequenos detalhes e implicações de compromissos mais gerais.

O mesmo com a homenagem e a lembrança (tornar vividas na mente). Precisamos constantemente reforçar nossa conexão com as Três Joias. E essa é a prática do refúgio. Uma das formas de prática de refúgio, da qual vou falar aqui, é manter um altar.

 

Qual é a vantagem da elaboração? Estamos, neste momento, na etapa de girar a cartolina no sentido oposto – precisamos gerar novos hábitos, e é bom colocar certo tempo e esforço nisso. Não é bom porque “alguém mandou”: é bom porque apenas fazer alguns conceitos transitarem na mente por um instante evidentemente não tem muita força sobre nossos hábitos. Precisamos criar um processo que dure um tempinho, que exija atenção e foco, e que efetivamente se torne, ele mesmo, um hábito.

A prática de que vou falar aqui existe em todas as tradições budistas, inclusive a que é muitas vezes tida como a mais despojada (o zen) e deveria ser feita por todos aqueles que se identificam com o caminho budista e se comprometem com suas práticas. Quem está olhando o showroom e não decidiu se vai comprar, talvez possa se dedicar a outras práticas. Mas, para quem já saiu da loja com sua sacolinha “Darma do Buda”, essa prática tradicionalmente não é muito opcional. Porém, a nossa cultura descoladérrima de algum jeito conseguiu transformar a prática de altar num tabu – porque parece muito coisa de gente religiosa, e nossos amigos não vão nos achar legais, e o budismo chique, se ele ficar meio parecido com catolicismo ou umbanda. É nossa mente de terceira-série operando.

Independente disso, eu não tenho vergonha alguma de fazer o que todos os meus perfeitos professores sempre fizeram. Eu teria vergonha é de seguir a mentalidade secular rasteira.

Seguimos em frente, portanto.

O formato específico do altar pode variar bastante, então eu rogo que perguntem a seu próprio professor como exatamente é feito em sua tradição. O modo que vou apresentar é bastante neutro, rápido e simples, mas tem alguns elementos particulares do budismo tibetano – embora seja seguro dizer que, embora possa haver variações, e essas variações devam ser respeitadas por quem pratica outras tradições, o que vou descrever aqui é perfeitamente aceitável em qualquer tradição budista, pelo menos até que você receba instruções mais específicas.

 

Em primeiro lugar, você precisa de um espaço reservado para o altar. Há vários detalhes quanto a isso, mas a prática em si ocorre quando já se tem um altar. Então esses primeiros detalhes sobre como iniciar um altar não é necessário decorar. Os outros detalhes, sobre a prática diária, você não precisa parar para decorar, mas você vai acabar decorando, se fizer a prática com consistência.

O espaço para o altar vai de acordo com suas possibilidades. Se você tem a boa fortuna de poder construir seu altar num prédio separado de sua casa, especificamente dedicado apenas a isso – este é o melhor caso. O ideal é que tenha sido construído para ser uma sala de prática e altar, e para nada mais do que isso – um pouco menos ideal é usar um prédio que já foi usado para outras atividades. É mais ou menos como a ideia de uma capela, portanto.

Claro, a maioria de nós não está nem perto de ter essa possibilidade. Alguns talvez morem em uma casa bem grande, e então seja possível dedicar uma peça inteira. Isto está bem. Mas para a maioria, mesmo isso ainda é bastante difícil, então precisamos separar um espaço em meio a outro ambiente da casa.

O melhor recinto é possivelmente um que seja reservado, mas não um quarto. Uma biblioteca ou escritório. Depois, a sala de estar (que normalmente não é reservada), e então o quarto. Na cozinha, só se não houver melhor posição, e no banheiro de forma alguma.

O problema da sala de estar é que talvez não seja muito adequado expor seu altar a visitas que podem gerar conceitos e fazer perguntas sobre o budismo. Talvez isso seja bom, mas talvez seja ruim. Depende um pouco da sua atitude, das pessoas que você recebe em casa e de sua cultura, e da configuração do seu altar. O altar vajrayana, algumas vezes com deidades iradas e kapalas, tradicionalmente sempre foi mantido discreto e fora do escopo da discursividade mental e verbal de estranhos, ou até das outras pessoas que moram na sua casa. Mas mesmo um altar apenas com uma imagem do Buda Sakyamuni e oferendas de água pode ser um pouco perturbador para pessoas de mentalidade muito rígida. Normalmente seria benéfico expor as pessoas a um altar, mas nem sempre é o caso – e é adequado manter sua prática e sua conexão discretas, caso você considere que, a seu critério, isso vai criar mais problemas do que benefícios.

O problema do quarto é que ali nos dedicamos a dormir e a atividade sexuais – tradicionalmente você trata os Budas no altar como trataria a uma pessoa que respeita, e, portanto, você não faria sexo na frente deles. Nem babaria e soltaria flatulências em sua frente, tampouco. No entanto, se não for possível montar em outro lugar, também não é o fim do mundo montar um altar no quarto. Não é como se os seres oniscientes não saibam o que você está fazendo o tempo todo. Como treinamento da mente, melhor não, mas é melhor ter o altar do que não ter, então pode ser interessante abençoar sua sexualidade e suas remelas com a visão dos Budas. Em todo caso, como treinamento da mente, é um pouco mais difícil.

Você pode usar o interior de um móvel fechado, caso deseje deixar seu altar mais discreto, onde quer que você o instale.

De toda forma, mesmo que você só tenha um apartamento de 20m2, com uma peça só, você não deve deixar de fazer a prática de altar por causa disso.

Você precisa de uma superfície plana de pelo menos 50cm por 20cm, melhor em torno de 75cm x 30cm, ou um pouco maior que isso. Os altares podem ser de qualquer tamanho, diminutos ou imensos, mas na prática, para começar, com esses tamanhos é mais fácil. Essa superfície (no topo ou dentro de um móvel, ou uma prateleira) precisa estar acima da altura de sua cintura. Algumas pessoas colocam imagens de Buda em mesas de centro, ou até no chão – e, particularmente se você é budista, isso não é o ideal. É OK colocar uma estátua que esteja danificada ou um Buda decorativo no jardim – isto é, numa posição baixa. Dentro de casa, apenas acima da linha da cintura, de preferência na altura do peito. Apenas cuide para não deixar alto demais ao ponto de não conseguir ver bem a superfície toda do altar, isso torna a limpeza e a prática mais difíceis.

Acima dessa superfície, você precisa de espaço suficiente para a imagem de Buda que vai usar – que pode ser uma foto, uma pintura ou uma estátua. A imagem pode ter qualquer tamanho. Acima dessa foto, pintura ou estátua, se houver outra prateleira, você não pode colocar absolutamente nada, a não ser textos budistas – ou outras imagens budistas. Você não deve colocar textos budistas (mesmo livros budistas de autores contemporâneos) embaixo de seu altar, ou abaixo de quaisquer imagens, mesmo budistas. Se você não os deixar no seu altar, o ideal é que estejam na prateleira mais alta, ou numa estante ou prateleira dedicada a apenas eles, com nada acima.

Como prática de refúgio, você também não deixa nenhum material do darma no chão, nem muito menos caminha por cima de textos ou imagens (se elas estiverem temporariamente num lugar baixo).

Estes pontos todos dizem respeito ao treinamento da mente e compromissos ligados a prática de refúgio. Podem parecer meras superstições, mas o fato é que os nossos hábitos mentais atuais, absolutamente arbitrários e aleatórios, também não tem um embasamento muito lógico ou científico (tanto é assim que a indústria de publicidade é bilionária).

A nossa mente, no que diz respeito a hábitos, e, portanto, treinamento da mente, nunca operou racionalmente – é simplesmente uma quimera querer estalar os dedos e achar que essa diminuta parte consciente e aparentemente coerente que você normalmente chama de “eu” esteja em controle. Tanto não está que você não consegue seguir uma simples dieta. Então contra o vodu dessa parte caótica da mente, você aplica um contra-vodu, que é o treinamento, a criação de novos hábitos – que por vezes pode soar supersticioso para aquela almofadinha pretensiosa que acha que está em controle (a mente racional), mas ela de fato manda em muito pouca coisa.

Isso não quer dizer que essas práticas sejam supersticiosas ou irracionais. Mas pode ser sua tendência habitual pensar assim. Quando você entende o treinamento da mente, elas passam a fazer sentido, ora, como treinamento da mente.

Se você optar por uma estátua, pesquise bem. Se puder conhecer o artista, tanto melhor. Cuidado com estátuas antigas sem procedência definida. Durante a invasão Chinesa do Tibete, e em outros momentos turbulentos na história de muitos países budistas, templos foram saqueados. O melhor é evitar estátuas vendidas como decoração, e procurar as vendidas em centros de darma ou em lojas budistas estabelecidas na internet. O mesmo vale para pinturas originais. Quanto a reproduções, cabe também procurar uma imagem que se adeque bem à sua tradição, como seu professor ensina.

No mínimo dos mínimos, use um porta-retratos e uma imagem do Buda com 10x15cm. Não sai nada caro usar uma reprodução emoldurada em A3 ou A4. Uma estátua de resina ou madeira também não é cara, dependendo do tamanho. Com o tempo, considere adquirir uma arte original de boa qualidade, patrocinando um artista budista. Para as dimensões de altar sugeridas, uma estátua de 15 a 20cm de altura fica proporcional.

Um ponto extremamente importante é que você leve sua imagem para ser consagrada por um professor. Uma consagração extremamente simples pode ser feita por um grande professor, que a faz meramente por olhar a imagem, e talvez recitar algo. Depois, no caso de fotos, e no budismo tibetano, ocasionalmente lamas escrevem sílabas em pontos específicos no verso da imagem. Caso seja uma estátua, com o devido espaço para consagração no fundo, é preciso levar para um professor que tenha esse conhecimento, e lhe fazer uma oferenda. Ele preencherá a estátua com as substâncias e mantras adequados. Normalmente você deixa a estátua com ele por algumas semanas.

Se você mesmo tem a instrução vajrayana de consagração, ainda assim você leva para um professor consagrar, e então depois a cada prática você consagra novamente as imagens do seu altar através dos métodos vajrayana que você domina.

Não sei exatamente como funciona nas diversas outras formas de budismo, mas diria que é bom, em todo caso, levar sua imagem para a presença de um professor em que você confia, e assim haverá uma interdependência dessa imagem com a tradição viva, e experiência meditativa desse professor. Parece uma expressão mágica, principalmente quando falamos em “bênção” – mas se você for muito cético, tome isso como alguma forma de “efeito placebo” extremamente poderoso – não há problema algum pensar assim. O ponto é que você precisa tornar sua imagem algo especial (mesmo que só na sua cabeça) através do contato com um professor, esse passo não deve ser evitado.

A imagem é só papel e tinta, madeira, resina, gesso ou metal – ou o que quer do que ela seja feita. Lembre que o mágico não é que sua mente é o Buda, o mágico é que sua mente pode ver um Buda em papel e tinta. Novamente, a surpresa não é o Buda interior, mas como o Buda interior consegue se espelhar nesse Buda exterior. O Buda interior cria esse Buda exterior, e o Buda exterior ajuda a lembrar do Buda interior. Eles são inseparáveis. Você não deve ter nenhum tipo de preconceito com o Buda exterior, mesmo quando ele é um desenho feito por uma criança num pedaço de guardanapo – se você reconhece o Buda, o seu próprio Buda interior consagrou essa imagem, e ela se tornou uma lembrança inequívoca das suas próprias qualidades inigualáveis, potencialmente presentes em qualquer ser senciente.

Até aqui você precisa um espaço, uma prateleira acima de sua cintura, e uma imagem consagrada por um professor. Você pode sem dúvida colocar mais imagens. A maneira ideal de dispor as imagens, porém, nem sempre é muito óbvia. A imagem central deve ser Buda Sakyamuni. Quanto a outras imagens o melhor é pesquisar de acordo com a tradição que você pratica. Uma foto de seu professor é extremamente adequada no Budismo Tibetano – e talvez em outras tradições budistas. Para a prática de refúgio budista, não devemos colocar imagens de outra tradição no altar – a não ser que elas estejam tradicionalmente já associadas com o budismo, como certos deuses hindus, que mesmo assim, devem ficar em posição menos proeminente – e algumas vezes têm formas específicas na tradição budista.

Também o aspecto estético é importante. O altar deve ser bonito. Para o meu próprio senso estético, isso significa que eu não misturaria imagens de estética extremamente díspar, porque gosto de manter um padrão visual. Porém, pode ser que misturar algo japonês com algo tibetano, com algo do Sul da Ásia, não fique necessariamente “feio”. Você apenas se esforça para com seu altar representar algo belo e digno, esse é o critério principal.

 

Agora que as especificações de dispor o altar estão prontas, enfim um elemento que é próprio do budismo tibetano, mas que com certeza nenhuma outra tradição budista encontraria falta: as oferendas de água.

A oferenda ao altar é uma prática diária. Preferencialmente você coloca a água pela manhã (ao acordar, depois de fazer sua higiene, mas antes do desjejum). E você retira a água a qualquer momento após o meio-dia, preferencialmente ao pôr-do-sol. Caso não seja possível manter estes horários, está OK apenas manter as oferendas por algum tempo, a qualquer hora do dia, preferencialmente por uma questão de horas, se possível.

O ideal é montar o altar pela manhã e então logo em seguida fazer três prostrações e seguir para sua prática formal diária, seja ela de 10 minutos, ou bem mais longa que isso. Em todo caso, você só faz sua prática após ter montado o altar – se não for possível logo em seguida, não há problema. Caso você só faça uma sessão no dia, o melhor horário é pela manhã, logo após o altar ser montado com as oferendas. Se você faz duas, o melhor é a segunda ser logo antes ou logo depois de você retirar as oferendas. Mas, se você montou as oferendas no altar, você pode praticar a qualquer momento depois disso, ou depois de retirar as oferendas – até dormir. Praticar na presença do altar é melhor, mas você pode ser em qualquer outro lugar da casa também, ou em qualquer outro lugar que seja adequado. Apenas pela manhã você não pratica antes de montar o altar, essa é a sua primeira prática, que coincide com a primeira tomada de refúgio do dia.

A prática de oferenda de água em si tem certo grau detalhamento. É preciso ter algumas coisas em mente ao ouvir instruções assim. É óbvio que nas primeiras vezes que você for fazer o altar, vai parecer muita coisa – só de ler você vai ficar cansado. No entanto, rapidamente, após algumas semanas, tudo se torna bastante automático. Daí o esforço é diferente: é lembrar o significado do treinamento da mente daquilo que você está fazendo, para não se tornar um mero “ritual”.

A maioria das práticas do darma é assim. Quando você recebe as instruções, pode parecer que são detalhes demais, e você se sente sobrecarregado. No entanto, logo a prática se automatiza – e então, como já disse, o esforço passa a ser reforçar a motivação e lembrar o sentido profundo do que se está fazendo.

Se você realmente achar impossível fazer o que está descrito (algumas pessoas têm muita dificuldade com instruções escritas), há uma solução: você vai a um centro de darma em que essa prática seja feita (virtualmente todo centro tibetano, pelo menos), e pede para alguém ensinar. (No Chagdud Gonpa Khadro Ling, em Três Coroas, por exemplo, são umas 300 tigelas de mais de meio litro de água cada, e um grupo de 3 ou 4 moradores se reveza e acorda uma hora mais cedo para fazer essas oferendas todos os dias. Eles ficam muito felizes que alguém participando de um evento compareça mais cedo para ajudar, mesmo que seja um iniciante bastante lento, recém aprendendo.)

Patrul Rinpoche diz em Palavras do meu professor perfeito: “Como forma de acumular mérito, oferecer água limpa é extremamente efetivo, e se você puder, o faça de forma diligente. Limpe as sete tigelas de oferenda, e as coloque lado a lado. Não as deixe próximas demais, nem tão separadas uma da outra. Elas devem ficar em linha reta, sem nenhum desalinho. A água deve ser cristalina, sem cisco, cabelos, pó ou insetos. As tigelas devem ser cheias com cuidado, até um pouco antes da borda, sem derramar nenhuma água. É assim que se faz oferendas de água belas e agradáveis.”

As oferendas de água.
As oferendas de água.

Você vai precisar de sete tigelas, uma jarra para levar a água até as tigelas (bem como retirar a água no fim do dia), e um pano de prato. Preferencialmente, esse material deve ser usado apenas para isso, e, também preferencialmente, ter sido adquirido apenas para isso. Ele deve ser mantido limpo, em todo caso.

Quanto às tigelas, elas podem ser de qualquer tamanho ou material – mas elas devem ficar proporcionais e bonitas no altar. Algumas vezes é necessário erguer sua imagem do Buda com um patamar (uma caixa) de forma que as tigelas fiquem numa altura mais baixa e não escondam a imagem. Se você tem espaço, pode oferecer dezenas ou centenas, mas sete é o número tradicional. Se você puder comprar tigelas de estilo tibetano, em bronze ou prata – ou mesmo ouro – ótimo. Algumas são bastante decoradas, e o preço varia bastante. Tigelas pequenas demais, devido à delicadeza, dão muito trabalho para encher e esvaziar. Já tive alguns conjuntos de tigelas tibetanos pequenos e médios, mas atualmente uso sete taças de sorvete de aço inox que comprei num supermercado local. Contando com a base, cada uma delas tem 5cm de altura e 10cm de diâmetro, o que é um tamanho médio e comum para altares residenciais. Um altar de pelo menos 75cm, portanto, fica bem com essas tigelas, com uma pequena folga de cada lado.

A jarra pode ser de qualquer tipo, e não precisa ser bonita, já que ela deve ficar guardada e não no altar. Algumas pessoas preferem bules ou chaleiras com bicos finos – e isso realmente ajuda na hora de encher as tigelas. Eu mesmo uso uma jarra de suco de um litro, que enchida bem até a borda, serve as tigelas exatamente – mas, se estou meio hesitante em carregar a tigela com água até bem à borda, algumas vezes acabo precisando ter que voltar à torneira para pegar um pouco mais de água, então o ideal para mim seria uma jarra de 1,25l. Quanto ao pano, qualquer pano limpo serve, mas se ele puder ser dedicado ao altar, tanto melhor.

O primeiro passo é limpar as tigelas. Você começa com elas viradas de cabeça para baixo e bem alinhadas, com um pequeno espaço (um grão de cevada é o que os textos tradicionais tibetanos dizem) entre uma e outra.

Não é auspicioso (para o treinamento da sua mente) deixar recipientes vazios de boca para cima no altar – ou mesmo dar de presente para uma pessoa uma tigela vazia: na cultura tibetana, ao for presentear um prato ou tigela você sempre coloca algo dentro. Ao colocar qualquer recipiente (de boca para cima) no altar, mesmo temporariamente, ele também não deve estar vazio.

Durante todo esse processo, você deve evitar respirar sobre o altar ou as oferendas, o que é considerado desrespeitoso. Em alguns centros de darma as pessoas fazendo oferendas usam máscaras cirúrgicas, mas isso não é necessário num altar residencial – a não ser que você tenha uma casa extremamente limpa e deseje usar uma elaboração extrema. Aí, tudo bem, em algumas formas de hinduísmo você faz uma higiene ritual antes de mexer com o altar (e também no islã, antes de orações) – e se você quiser, use até uma roupa de proteção Hazmat  e faça seu altar num lugar com controle de qualidade do ar, o achar adequado: certamente haverá mérito nisso. O ponto, para a maioria de nós que não é tão exagerado, é que o altar deve estar limpo e bem organizado, bem como todo o ambiente ao redor dele, se possível.

Você deve tratar o altar como se você trabalhasse no bufê de um hotel de luxo, para um chefe exigente – os Budas são os clientes desse hotel, e por acaso, eles não estão nem aí para o bufê – eles são mais como empresários que ficam felizes de ver as pessoas se esmerando no trabalho, mesmo que em uma empresa que não é deles. O chefe aqui é sua mente racional cuidando do seu treinamento da mente, é ela que vai cuidar de tudo que você faz para que fique o mais digno possível de ser oferecido a um Buda.

O Buda não está nem aí para sua prática e para seu altar, ele regozija com seu treinamento da mente.

 

Então você pega a água com a jarra numa torneira. Caso seja fácil para você, use água filtrada. Não conheço ninguém que use água mineral, mas quando eu mesmo tomava água mineral, algumas vezes me senti hipócrita em oferecer água da torneira para os Budas. De toda forma, se a água for potável, ela pode ser oferecida. E você pode visualizar que ela tem todas as características perfeitas de uma fonte perfeita de água. As orações que acompanham oferendas de água muitas vezes falam em “água com as oito qualidades”, porque é assim que falam da água em textos da Índia Clássica. (Você pode encontrar isso procurando por “eight qualities of water” no Google, mas não precisa se importar tanto com esses detalhes.)

Depois de pegar a água, você começa desvirando e segurando com a mão a tigela mais à esquerda. Você a enche, mas até longe da borda – até a metade, mais ou menos. Então você desvira e segura na mão a segunda tigela a direita dessa, e vira a água que está na primeira tigela quase toda para a segunda, deixando pelo menos uma gota na primeira tigela desvirada. Pode deixar quanta água quiser, mas essa água inicial precisará ser dividida entre as sete tigelas, tenha isso em mente. Caso falte água nesse processo, você pode pegar mais da jarra, mas é bem mais fácil se você usar apenas essa quantidade inicial para todas elas. Você então pousa a primeira tigela em sua posição no altar, e pega a terceira. Passa á agua da segunda para a terceira, pousa a segunda, pega a quarta. Assim você segue até a última tigela, as desvirando, alinhando de boca para cima com o espaço de um grão de cevada entre uma e a outra, e deixando pelo menos uma gota de água em cada uma.

Na última tigela, a mais à direita, sobra uma quantidade de água. Aqui, se for fácil para você descartar essa água (deixando também uma gota) você pode fazer isso. Você não deve, porém, descartar essa água no esgoto. Você a deve colocar preferencialmente em alguma planta, seja no espaço externo a sua casa, preferencialmente, ou interno. Se isso for muito difícil, não há problema em deixar essa tigela com toda a água remanescente do processo de limpeza.

É claro, essa é uma limpeza formal. Na primeira vez que você usa seu conjunto de tigelas, é óbvio que você deve começar com as tigelas também efetivamente limpas (com detergente e esponja) e polidas. De tempos em tempos, coisa de meses, você deve também as lavar com detergente e eventualmente polir – isso além do processo de oferenda diário, com essa limpeza ritual de deixar um pouquinho de água em cada tigela (que serve para também não deixar a tigela aberta e vazia no altar, e para alinhar as tigelas antes de enchê-las com elegância).

Então agora temos as sete tigelas com uma gota ou um pouco mais de água, viradas de boca para cima, e alinhadas com o espaçamento de um grão de cevada entre uma e outra.

Em seguida, com ajuda da jarra, enchemos as tigelas estacionadas em suas posições, quase até a borda, também da esquerda para a direita. O “quase até a borda” é novamente descrito como a distância de um grão de cevada entre a borda e a água.

Há, porém um “estilo” de encher. Há um ritmo determinado para encher as tigelas.

Aqui, em vez da cevada, agora usa-se um grão de arroz como metáfora. Você começa enchendo devagar, aumenta a velocidade, e então diminui a velocidade novamente, e então para e segue para a próxima tigela. O ideal é servir continuamente, não parando até chegar no limite certo, e só parando quando for seguir para a próxima tigela. Exatamente como um grão de arroz, que é fininho na ponta, um pouco mais gordinho, e então fininho de novo. Você pode usar o pano na borda da jarra para evitar respingos. Se você respingar, é melhor secar o altar com o pano antes de seguir. Algumas pessoas colocam um vidro no altar, de forma que fique mais fácil secar qualquer água que respingue – mas isso é mais necessário se usa tecidos decorativos, ou a superfície do altar é muito delicada.

Não há problema com a dificuldade em fazer tudo perfeitamente. Fazemos sempre “como dá”. Se você tiver que “corrigir” no final, colocando mais água em alguma tigela, tudo bem. O melhor é que elas, de cara, fiquem todas alinhadas, com as superfícies todas simétricas. Se não der, você corrige. De toda forma, tem que ficar bonito e digno no final, esse é o ponto.

Rapidamente vai ser fácil reparar que essa prática envolve um treinamento da mente diretamente ligado à prática de shamata (meditação) durante o processo todo – especialmente após repetir a prática todo dia por muitas semanas. Em alguns dias, você fará isso tudo com a maior desenvoltura e facilidade, em outros dias você certamente derramará água, e achará muito difícil manter a simples disciplina de encher essas tigelas. E aqui, como em qualquer treinamento da mente, não interessa se estiver fácil ou difícil, você segue na prática diária com consistência. A consistência de fazer a prática todo dia é o que importa, as variações diárias na qualidade da sua prática não importam.

Também é bom lembrar que o melhor é não bater as tigelas, nem uma na outra, nem na mesa. Tudo deve que ser feito com delicadeza. Ocasionalmente deixamos algo cair, ou esbarramos uma tigela na outra e fazemos barulho – isso também aponta a qualidade da nossa prática.

Num centro grande, com baldes enormes de água e mangueiras, algumas vezes acontecem acidentes que, em retrospecto, soam divertidos. Porém, no dia em que você é o responsável por molhar o trono do lama, é claro que não o deixa particularmente animado.

 

Essa prática também é feita em conjunto com alguns mantras. Entretanto, o melhor, sempre, no caso de qualquer prática com mantra, é receber instrução e autorização do seu professor. Em todo caso, se você souber o mantra de 100 sílabas de Vajrasattva, ele é adequado durante todo o processo. OM AH HUNG são as sílabas que purificam as oferendas, e podem ser usadas o tempo todo enquanto se enche as tigelas, e também depois quando se descarta a água (e se faz uma segunda oferenda, como adiante será explicado). Algumas vezes também há orações e mantras específicos para as etapas de oferenda de água, mas quanto a estes o melhor mesmo é você aprender com seu professor, de acordo com sua tradição. E não há problema algum em fazer a prática toda em silêncio, apenas mantendo o método e evitando respirar sobre o altar. O mérito e o treinamento da mente seguem presentes, independente do grau de elaboração ou de coisas como a quantidade de tigelas e o tamanho do altar.

Sem dúvida, se você tem instruções e capacidade de visualização, há uma série de ensinamentos específicos do vajrayana quando fazemos essas oferendas. Podemos visualizar uma multiplicação imensa das oferendas, ou oferecer mentalmente todo tipo de coisa aprazível enquanto usamos a água como suporte. Com a visualização, essa prática pode ganhar a mesma grandiosidade da prática de oferenda de mandala no Ngondro, ou quaisquer outras práticas de oferenda do vajrayana. Com esses meios extraordinários, o mérito que levaria três incontáveis éons de prática e muitas centenas de vidas para ser acumulado com instruções comuns do mahayana pode ser acumulado em uma única vida de prática. E para que acumulamos mérito? Para nos revelarmos Budas completos, seres capazes de reconhecer as coisas como elas são, e efetivamente beneficiar os seres. Também para nossa prática do darma ser mais fácil, e para que fortaleçamos nossa conexão e abertura perante os ensinamentos, bem como para eles serem mais fáceis de encontrar nesse mundo.

Enfim, para encontrar boas circunstâncias de modo geral.

Se você tem espaço, e disponibilidade, é claro que você pode oferecer muitas outras substâncias efetivas (não visualizadas) no altar. No budismo tibetano o segundo conjunto de oferendas, depois de sete tigelas de água, são as tigelas com oito oferendas auspiciosas: mais duas com água, uma representando água de beber, e outra com água perfumada representando água de lavar, flor, incenso, luz, perfume, comida e som. A forma de cada oferenda simbólica pode variar. Flor pode ser uma flor natural trocada todo dia, ou até um arranjo magnífico – ou uma simples flor artificial. Incenso são varetas representando a oferenda – você acende o incenso no incensário igual, mas deixa umas varetas no altar como representação. As varetas podem ser arranjadas de várias formas, em V, em tubo colocado em pé sobre arroz, etc. Luz pode ser uma lamparina tibetana tradicional, uma vela, ou – alguns professores não veem problema com isso, especialmente em ambientes com risco de incêndio – uma lâmpada elétrica (algumas são muito bonitas e imitam a chama de uma vela). Em todo caso é importante ajeitar tudo de forma que fique bonito e tradicional. Perfume pode ser representado por um pequeno vidro de perfume, comida por uma torma permanente, uma torma comestível (tormas são representações comuns no budismo tibetano), arroz, bolachinhas ou uma fruta, e som pode ser representado por uma concha, ou um instrumento musical qualquer cujo tamanho seja condizente com o espaço (tingsha tibetana, ou uma harmônica, uma ocarina, castanholas, etc.).

Normalmente essas oferendas adicionais também ficam em tigelas específicas, e o ideal é seguir os formatos tradicionais, e usar o conjunto inteiro. Mas não há problema nenhum em oferecer de forma “avulsa” apenas uma vela, ou uma flor, ou uma maçã – ou qualquer coisa que seja bonita e auspiciosa. Isso também está bem. Você pode deixar essas oferendas o tempo que quiser, até elas parecerem perder o viço – qualquer coisa que não esteja bonita você substitui. O sentido específico de cada oferenda, e porque essas oferendas são tradicionais no budismo, são ensinamentos muito interessantes que você sem dúvida deve pesquisar em livros como Buddhist Symbols in Tibetan Culture, de Dagyab Rinpoche, e The Encyclopedia of Tibetan Symbols and Motifs, de Robert Beer – bem como, é claro, consultar seu professor a respeito.

 

Nenhuma das oferendas retiradas deve ser colocada no lixo. No caso dos perecíveis, você os deve deixar na natureza, próximos a uma planta ou árvore. No caso dos não perecíveis, há muita discussão sobre reciclagem, mas qualquer descarte que você considere digno (e não seja o lixão) está bem.

Se você achar as oferendas de água complicadas demais, ainda assim é possível e benéfico ter um altar. Apenas ofereça um incenso antes da prática, isso é costumeiro em muitas tradições budistas, e sem dúvida é suficiente.

Agora, se você pode oferecer a água, isso é bastante interessante, e não só porque é tradicional e leva só uns minutinhos.

De toda forma, após oferecer a água, você também pode (e deve) oferecer incenso. Você acende a vareta e faz alguns movimentos lentos diante do altar com ela (traça um “oito” deitado com a fumaça algumas vezes), e a pousa no incensário. O incensário tradicionalmente fica abaixo das oferendas de água, ou pelo menos abaixo das imagens. Muitas vezes ele fica no chão.

Após a oferenda do incenso, o altar está pronto. Você faz três prostrações, de acordo com o que seu professor ensinou. Essa é a prática de refúgio em corpo. Então você senta para fazer prática (que normalmente começa com a repetição do refúgio em fala) ou segue para suas atividades cotidianas – caso neste momento não sobre tempo para fazer prática.

Após o meio-dia, a qualquer momento antes de deitar, preferencialmente até o pôr-do-sol, você completa a prática retirando as oferendas de água. Você pode deixar as demais oferendas, se houverem, ou retirar aquelas não estejam frescas ou com boa aparência. Oferendas de luz podem ser simplesmente deixadas sempre acesas, e trocadas quando necessário.

Para retirar as oferendas de água, você vira a tigela na jarra – levantar a tigela com cuidado, aproximar a jarra, e virar a água bem rápido para dentro dela é o método com menos chance de molhar algo, por curioso que pareça. Após retirar a água, da direita para a esquerda, você seca as tigelas com o pano, e as coloca alinhadas viradas de boca para baixo, também da direita para a esquerda. Quando viradas para baixo, também é adequado empilhá-las ou arranjá-las de qualquer forma que fique aprazível.  

A água retirada na jarra você novamente não descarta por qualquer ralo, ou qualquer lugar que dê no esgoto. Você oferece essa água a despejando vagarosamente em alguma planta, no interior ou exterior da sua residência. (Você pode recitar OM AH HUNG enquanto faz essa segunda oferenda também.) Esta é uma dificuldade para moradores de apartamento, e para pessoas que não podem ter uma planta que absorva tanta água por dia – isso você pode considerar ao comprar as tigelas: se não há como descartar a água adequadamente na rua, você pode trabalhar com menos água e tigelas menores.

De toda forma, essa é uma segunda oferenda. Após ter oferecido água aos Budas, que efetivamente não precisam da sua oferenda, mas que se regozijam com seu treinamento da mente, particularmente disciplina e generosidade – e também todas as outras paramitas – você oferece aos demais seres, em particular os seres carentes. No budismo há uma classe de seres sutis chamados pretas, ou “espíritos carentes”. Eles têm muita dificuldade de encontrar água, e a água que encontram nunca está limpa. Essa água retirada do altar é então dedicada a eles em particular – a ideia é que essa substância bastante pura agora pode ser usufruída por eles, porque foi tocada pelos Budas.

Modo geral, você mesmo nunca bebe essa água. Esse é um ponto que em outros países nem é necessário frisar, mas aqui no Brasil há uma tradição espírita e talvez até católica de consagrar a água para beber – não se trata disso aqui. Essa água é só para oferecer em treinamento da mente. Ela é uma oferenda simbólica, feita como prática de cultivo da mente, que usa uma substância física fácil de encontrar, e boa de oferecer por vários motivos.

É importante dedicar o mérito da forma que você souber, particularmente se você não vai fazer prática formal após essa retirada, talvez seja importante recitar alguns versos em dedicação. Se você for fazer prática formal, apenas um pensamento de dedicação provavelmente é suficiente.

Fonte:https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2015/08/lama-padma-samten-nao-meditamos-para-achar-a-felicidade-ela-ja-esta-la-4836110.html


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