CIENTISTAS INVESTIGAM O VERDADEIRO PAPEL DAS MULHERES NA PRÉ-HISTÓRIA

 

Venus de Willendorf — escultura do Paleolítico Superior datada de 24 mil a 22 mil a.C. — foi descoberta em 1908 na Áustria
Venus de Willendorf — escultura do Paleolítico Superior datada de 24 mil a 22 mil a.C. — foi descoberta em 1908 na Áustria Getty Images

Cientistas investigam o verdadeiro papel das mulheres na Pré-História

Com participação de mais pesquisadoras em áreas como arqueologia, hipóteses até recentemente tidas como verdades sobre o sexo feminino naquela época são questionadas


Por Isabela Moreira, com edição de Luiza Monteiro

 

Em 1966, o filme Mil Séculos Antes de Cristo entrou em cartaz nos cinemas ao redor do mundo. Trata-se de uma das primeiras produções ficcionais de sucesso sobre a pré-história, período que começou 2,5 milhões de anos antes de Cristo (a.C.) e terminou em 3,5 mil a.C., com a invenção da escrita. No longa, um homem chamado Tumak é banido de sua tribo e conhece uma mulher de outro grupo, Loana. Mas, para ficar com ela, precisa vencer uma luta contra outro homem.

Interpretada pela atriz Raquel Welch, Loana é quem estampa o pôster do filme: com cabelos volumosos e olhos delineados, ela veste um top e uma saia curta de couro. Em uma das cenas mais famosas, a personagem briga com outra mulher, tão sensual quanto ela, por um objeto. Os homens param o que estão fazendo para assisti-las e se divertem com o conflito.

Vênus de Amiens-Renancourt, escultura pré-histórica descoberta em 2019 na França — Foto: Reprodução/Inrap

Vênus de Amiens-Renancourt, escultura pré-histórica descoberta em 2019 na França — Foto: Reprodução/Inrap

A ideia da mulher pré-histórica como uma beldade sedutora se repetiu décadas depois no filme Os Flintstones. Lançada em 1994, a adaptação do desenho animado dos anos 1960 traz a personagem Sharon Stone (que, apesar do nome, é vivida pela atriz Halle Berry), secretária de Fred que se oferece sugestivamente para fazer o que o chefe precisar. Vilma, a esposa, apesar de se apresentar de forma mais modesta, também está à disposição dele: como dona de casa, ela cuida do lar, da filha do casal e de todas as necessidades do marido.

Nenhuma das duas representações se aproxima da realidade. Em 2019, a descoberta de uma escultura pré-histórica em Amiens-Renancourt, na França, fez com que alguns pesquisadores começassem a repensar os estereótipos atrelados à mulher desse período. O achado é uma estatueta do tipo Vênus, nome em homenagem à deusa do amor, da sedução e da beleza feminina na mitologia romana.

O termo foi cunhado em 1908 pelo pré-historiador austríaco Josef Szombathy, ao encontrar uma estatueta feminina feita entre 24 mil e 22 mil a.C. em Willendorf, na Áustria. Diversas vênus foram achadas na Europa e em sua intersecção com a Ásia desde então.

Segundo o Instituto Nacional de Investigações Preventivas (INRAP) da França, a Vênus de Renancourt foi produzida há 23 mil anos. Com 12 centímetros de altura, a estatueta representa um corpo feminino com peitos grandes, barriga proeminente com o umbigo saltado e um triângulo na pelve indicando a parte externa do órgão sexual.

Quando as vênus começaram a ser descobertas, os arqueólogos as viam apenas como figuras de deidades da fertilidade. “A ciência pré-histórica foi inventada no século 19 por homens que projetavam suas próprias visões nas sociedades pré-históricas”, analisa Sophie A. de Beaune, professora da Universidade Jean Moulin Lyon 3 e pesquisadora do Laboratório de Arqueologia e Ciências da Antiguidade em Nanterre, ambos na França, em entrevista a GALILEU. “Isso até que as mulheres começassem a entrar na profissão e a se interessar por assuntos negligenciados ou desprezados pelos homens.”

Responsável por vários livros sobre a pré-história, incluindo Da beleza do gesto técnico na pré-história (Zazie Edições), de Beaune foi consultora científica do projeto Lady Sapiens, que começou com um documentário e resultou em um livro de mesmo nome recém-publicado na França, na Espanha e previsto para 2023 na Inglaterra.

A obra é de autoria do escritor Thomas Cirotteau, da arqueóloga Jennifer Kerner e do historiador Eric Pincas. “À margem dessa representação supostamente divina, a mulher foi simplesmente apagada do grande livro da pré-história, ou relegada ao papel de subalterna. Nessa época, cada um tinha um lugar perfeitamente designado”, escreve o trio de autores franceses em Lady Sapiens. Dessa forma, a ciência — protagonizada por homens durante a maior parte da história — colocou a figura masculina no centro de suas hipóteses. “Afinal, não era assim que o mundo funcionava desde o início dos tempos?”, provocam os pesquisadores no livro.

Igualdade de gênero

A mulher pré-histórica, chamada pelos autores de “Lady Sapiens” (algo como “Senhora Sapiens”, em livre tradução), desempenhava várias atividades. Naqueles tempos, os papéis de mulheres e homens não eram definidos de forma restrita. Apesar de alguns pesquisadores acreditarem na existência de uma divisão sexual do trabalho (que cada gênero assumia tarefas de acordo com suas capacidades físicas), outros, como a renomada arqueóloga francesa Marylène Patou-Mathis, veem mais nuances.

“Eu tendo a pensar mais numa partilha de tarefas em função das competências. E também de gostos, por que não?”, diz ela em entrevista ao livro Lady Sapiens. “Assim, imagino uma gestão que pensava na divisão das tarefas de forma a obter máxima eficácia...mas, também, um melhor ambiente coletivo.”

“A ciência pré-histórica foi inventada no século 19 por homens que projetavam suas próprias visões nas sociedades pré-históricas”
— Sophie A. de Beaune, professora da Universidade Jean Moulin Lyon 3

Patou-Mathis é autora do livro O homem pré-histórico também é mulher (Rosa dos Tempos), no qual desconstrói a ideia da mulher pré-histórica como um ser indefeso que passava os dias em casa esperando o retorno do homem. “Os primeiros pré-historiadores firmam seu objeto de estudo no modelo patriarcal da divisão de papéis entre os sexos”, explica a arqueóloga em sua obra.

A publicação traz exemplos de mulheres da pré-história que, pouco após o parto, voltavam ao posto de coletoras-caçadoras, isto é, que viviam da caça de animais e coleta de frutas e vegetais. Em algumas tribos, inclusive, elas construíam um aparato de madeira — o antepassado do sling — para carregar os bebês enquanto trabalhavam.

Estudos realizados ao longo da última década corroboram a ideia de que havia igualdade de gênero na pré-história. Uma pesquisa publicada na revista Science em 2015 coletou dados genealógicos de duas populações de coletores-caçadores, uma no Congo e outra nas Filipinas. Por meio de centenas de entrevistas, os cientistas analisaram as relações de parentesco, as movimentações entre tribos e padrões residenciais.

A partir dessas informações, eles desenvolveram um modelo de simulação do processo de seleção de pessoas para os grupos, presumindo que os membros escolheriam popular um local vazio com seus parentes próximos.

“Quando somente os homens têm a influência sobre com quem vão morar, o núcleo da comunidade é uma rede densa de homens próximos, com as esposas na periferia”, afirmou o antropólogo e líder do estudo, Mark Dyble, da Universidade College London, na Inglaterra, ao jornal The Guardian em 2015. “Já quando as mulheres eram incluídas nas decisões, ambos os gêneros participavam do núcleo da comunidade”.

Venus de Laussel, datada em aproximadamente 25 mil anos, foi encontrada em 1911 na comuna de Marquay, no sudoeste da França — Foto: Getty Images

Venus de Laussel, datada em aproximadamente 25 mil anos, foi encontrada em 1911 na comuna de Marquay, no sudoeste da França — Foto: Getty Images

A pesquisa sugere que a igualdade de gênero pode ter ajudado a aumentar a rede de contatos dos humanos, bem como a colaboração entre eles. Segundo Dyble, a desigualdade começou a surgir com a agricultura, que marcou a primeira vez em que as pessoas puderam acumular recursos — que, no caso dos homens, incluíam mulheres e filhos. “Os homens podem ter várias esposas e mais filhos que mulheres. Para eles, compensa mais acumular recursos e fica favorável formar alianças com outros homens”, analisou o pesquisador da Inglaterra ao Guardian.

Lady Sapiens

“O corpo tem uma memória, e o estudo dos ossos humanos permite a reconstrução das atividades físicas dos humanos pré-históricos”, escrevem os historiadores em Lady Sapiens. Ao comparar os ossos de mulheres da pré-história aos de atletas, arqueólogos da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, descobriram que elas eram tão fortes quanto os remadores de elite de hoje em dia.

Encontrados em cemitérios espalhados pela Europa Central, os ossos foram datados entre 5,3 mil a.C. e 850 d.C.. De acordo com o estudo, publicado no periódico Science Advances em 2017, as mulheres foram a força essencial para o desenvolvimento da agricultura nos primeiros 5,5 mil anos da região.

Essa análise conversa com a de Thomas Cirotteau, Jennifer Kerner e Eric Pincas: eles também acreditam que a mulher pré-histórica tinha musculatura forte, com corpo mais robusto que o das mulheres contemporâneas.

“Suas atividades configuram seu esqueleto como igual ao dos homens”, revelam os autores. “Não há dúvidas de que as mulheres não precisavam de protetores. Esse erro antigo explica o motivo de tantos esqueletos femininos terem sido considerados masculinos no passado”, aponta Sophie A. de Beaune. “Mesmo assim, ainda hoje, muitas pessoas pensam que as mulheres são mais fracas que os homens e devem ser submissas a eles. Nós, infelizmente, temos muitos exemplos famosos disso em alguns países.”

Vênus de Amiens- -Renancourt, escultura pré-histórica descoberta em 2019 na França — Foto: Getty Images

Vênus de Amiens- -Renancourt, escultura pré-histórica descoberta em 2019 na França — Foto: Getty Images

A arqueóloga ressalta que esses preconceitos em relação ao sexo feminino continuam ecoando na literatura, nos filmes e até mesmo na publicidade. “É muito difícil erradicar esses equívocos do imaginário popular”, lamenta. Em Mil Séculos Antes de Cristo e Os Flintstones, por exemplo, as personagens femininas usam biquínis, o que não era o caso das mulheres pré-históricas. As vestimentas precisavam ser práticas e confortáveis: feitas com peles e couro de animais, por vezes cobriam o corpo todo.

“À margem dessa representação supostamente divina, a mulher foi simplesmente apagada do grande livro da pré-história”
— Thomas Cirotteau, Jennifer Kerner e Eric Pincas, no livro Lady Sapiens

Em algumas sociedades, também era comum o uso de ornamentos para expressar os diversos parâmetros sociais e econômicos da pessoa que os carregava. Pois é, nem naquela época as mulheres eram “todas iguais”.

Pluraridade de histórias

Tanto para Sophie A. de Beaune quanto para Marylène Patou-Mathis, a inclusão de mulheres em equipes de pesquisa e expedições relacionados à pré-história foi essencial para que houvesse novas perspectivas no campo. “Durante meus estudos, hesitei sobre em qual era devia me especializar e acreditava, ingenuamente, que quanto mais longe no passado fosse, mais território desconhecido teria”, conta de Beaune. De acordo com a arqueóloga, ainda há muito a ser descoberto em todas as eras.

A historiadora Giovana Xavier, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), reforça que esses esforços continuam sendo relevantes atualmente. “Acredito que é importante qualificar a palavra inclusão tanto como um compromisso de assegurar mais espaço institucional para grupos subrrepresentados no mundo acadêmico, mas principalmente para que as demandas de conhecimento de tais grupos sejam ouvidas e cientificamente legitimadas”, diz.

Esse processo inclui políticas e ações afirmativas que garantam autonomia para que esses grupos — mulheres, negros e indígenas, por exemplo — possam desenvolver pesquisas e modelos científicos. No caso da pré-história, a ideia é que as mulheres daqueles tempos sejam pesquisadas hoje não só pela lente de outras mulheres, mas também por mulheres pretas, indígenas e asiáticas fora da Europa.

Aos poucos, isso já está acontecendo. Em artigo publicado em 2017, os historiadores brasileiros João Júlio Gomes dos Santos Júnior e Monique Sochaczewski analisam como, nas últimas décadas, diferentes autores já têm adotado em seus trabalhos uma visão menos eurocêntrica/ocidental. “A história global traz uma importante diversificação de temas e objetos que, em nosso entender, é extremamente salutar para historiografia como um todo. Parece-nos ser um passo indispensável para nos tornar mais interligados e capazes de pensar a história de novas maneiras”, concluem.

Mais comum nas ciências humanas e sociais, o princípio, se utilizado em outras investigações, como na pré-histórica, pode dar belos frutos. De forma que seja possível descobrir mais sobre as mulheres que habitaram diferentes partes do mundo no passado — e o que podemos aprender com elas.


Fonte:https://revistagalileu.globo.com/sociedade/historia/noticia/2022/12/cientistas-investigam-o-verdadeiro-papel-das-mulheres-na-pre-historia.ghtml

Comentários