Você sabe o que é necropolítica?
Os Estados modernos adotam em suas estruturas internas o uso da força, em dadas ocasiões, como uma política de segurança para suas populações. Ocorre que, por vezes, os discursos utilizados para validar essas políticas de segurança podem acabar reforçando alguns estereótipos, segregações, inimizades e até mesmo extermínio de determinados grupos.
Dessa ideia surge o termo “necropolítica”, questionamento se o Estado possui ou não “licença pra matar” em prol de um discurso de ordem. Neste texto, te explicamos como esse termo surgiu e como ganhou destaque recentemente.
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Onde surgiu o termo necropolítica?
A origem da termo parte da obra do filósofo, teórico político, historiador e intelectual camaronês Achille Mbembe. Mbembe nasceu na República dos Camarões, país da região ocidental da África Central, no ano de 1957 (63 anos). Atualmente é professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul e na Duke University, nos Estados Unidos.
Ele é reconhecido como estudioso da escravidão, da descolonização, da negritude e, também, como um grande leitor do também filósofo Michael Foucault, em quem se baseou para propor o livro “Necropolítica”, de 2011. Dessa forma, para entendermos melhor a obra de Mbembe, vale também conhecermos um pouco de Foucault.
Quem foi Foucault?
Michael Foucault foi um filósofo, historiador, teórico social, psicólogo, crítico literário e professor francês que pensou de forma crítica à história da modernidade. O trabalho de Foucault se tornou conhecido por suas reflexões sobre poder e sobre as estruturas políticas das sociedades ocidentais, desde a antiguidade até a contemporaneidade.
Para o filósofo, o poder está sempre associado a alguma forma de saber que emana de diferentes direções, pessoas e instituições pois:
“o poder opera de modo difuso, capilar, espalhando-se por uma rede social que inclui instituições diversas como a família, a escola, o hospital, a clínica. Ele é, por assim dizer, um conjunto de relações de força multilaterais” (Foucault, 1999).
Foucault defende que, para embasar e fortalecer decisões, ações ou escolhas que influenciam várias pessoas, é preciso dominar técnicas e instrumentos que justifiquem e afirmem esses decisões. Por meio desses, podem ser viabilizadas diversas práticas de organização social como, por exemplo, os direitos e deveres em uma sociedade.
No entanto, para ele essas técnicas e instrumentos serviram também para práticas autoritárias de segregação, monitoramento, controle dos corpos e até mesmo dos nossos desejos. Por isso, no pensamento de Foucault o discurso juntamente ao poder e ao saber, constituem um objeto de estudo constante.
O autor tinha a preocupação em conhecer por que determinados discursos são aceitos como verdadeiros e não outros. Como eles são criados? Quais os seus impactos? Foi aí que elaborou dois termos que serão de igual importância para a obra de Mbembe: a biopolítica e o biopoder.
Para Foucault, biopolítica é a força que regula grandes populações ou conjunto dos indivíduos, diferentemente das praticas disciplinares utilizadas durante a antiguidade e a idade média que visavam governar apenas o indivíduo.
Já biopoder se refere aos “dispositivos” e tecnologias de poder que administram e controlam as populaçõespor meio de técnicas, conhecimentos e instituições. Os biopoderes se ocupam da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade, dos costumes, etc., a medida em que essas se tornaram preocupações políticas.
Por isso, os instrumentos do biopoder (Biologia, a Matemática, a Economia, entre outros campos do saber), se tornaram, ao longo dos anos, fundamentais para fornecer dados, informações e políticas sobre endemias, natalidade, seguridade social, poupanças, etc.
Foucault desejava demonstrar com esses termos a ideia de como o poder mudou durante os séculos e como foi influenciando as relações sociais nas cidades modernas e, principalmente, nos discursos. Para ele, a civilização moderna assistiu várias transformações de suas estruturas de poder e saber durante a história, pois os conhecimentos, leis e as políticas mudaram muito desde os primórdios da humanidade, e de maneira ainda mais acelerada após a revolução industrial nos séculos XVIII e XIX.
A partir desse marco, todo o saber produzido visava controlar fenômenos, como aglomeração urbana, transformação dos espaços públicos, epidemias, organização da economia, manutenção da paz, organização das cidades e de suas estruturas. As sociedades modernas tornaram-se politica, econômica e socialmente organizadas de formas semelhantes. No entanto, essas estruturas semelhantes não colocaram fim aos conflitos.
Para atender aos interesses e vontades das mais variadas sociedades modernas, ideias de ameaça, medo e ódio ao inimigo foram mantidas como na antiguidade e idade média. Mas há um diferencial: se antes as guerras eram iniciadas a fim de proteger o soberano, com objetivos delimitados, e a morte de uns asseguraria a existência de todos ao final, os conflitos travados ao longo dos dois últimos séculos mostraram uma crueldade humana sem precedentes. Ou seja, para Foucault os massacres, extermínios e regimes totalitários modernos, como o stalinismo e o nazi-fascismo, radicalizaram os mecanismos políticos de morte já existentes.
Ideias de controle dos corpos, purificação da população, supremacia de um determinado grupo sob outro não surgiram no século XX, mas nesse momento foram amplamente aceitas com base no poder exercido por governos e estruturas administrativas. Por meio do discurso do Estado tais práticas tornaram-se aceitáveis, mesmo visando a rejeição, expulsão e aniquilação de determinados grupos.
Assim, para Foucault, o discurso é o instrumento de poder que determina condutas e valida políticas. No entanto, como analisado pelo mesmo, é preciso cautela ao lidar com tal instrumento já que este acabou possibilitando práticas cruéis e políticas que reforçam estereótipos, segregações, inimizades e extermínios.
A teoria de Mbembe
Como vimos, em certos episódios da história da humanidade, alguns discursos políticos validaram massacres, extermínios e regimes totalitários modernos.
Foi a partir da ideia de que discurso é um instrumento de poder que Mbembe se inspirou em Foucault e foi além. Em seu livro “Necropolítica” apontou que esses dois conceitos são insuficientes para compreender relações de inimizade e perseguições contemporâneas. Como estudioso da escravidão, da descolonização e da negritude, relacionou o discurso e o poder de Foucault a um racismo de Estado presente nas sociedades contemporâneas, que fortaleceu políticas de morte (necropolítica).
E o que é a necropolítica?
Para ele, necropolítica é o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Com base no biopoder e em suas tecnologias de controlar populações, o “deixar morrer” se torna aceitável. Mas não aceitável a todos os corpos. O corpo ”matável” é aquele que está em risco de morte a todo instante devido ao parâmetro definidor primordial da raça.
Mbembe explica que, com esse termo, sua proposta era demonstrar as várias formas pelos quais, no mundo contemporâneo, existem estruturas com o objetivo de provocar a destruição de alguns grupos. Essas estruturas são formas contemporâneas de vidas sujeitas ao poder da morte e seus respectivos “mundos de morte” – formas de existência social nas quais vastas populações são submetidas às condições de vida que os conferem um status de “mortos-vivos”.
Sabemos que em cada sociedade existem normas gerais para o povo – homens e mulheres livres e iguais. A política é o nosso projeto de autonomia por meio de um acordo coletivo nos diferenciando de um estado de conflito. Nesse sentido, Mbembe afirma que cabe ao Estado estabelecer o limite entre os direitos, a violência e a morte. Mas, ao invés disso, os Estados utilizam seu poder e discurso para criar zonas de morte. O filósofo levanta exemplos modernos: a Palestina, alguns locais da África e o Kosovo. Nessas zonas, a morte se torna o último exercício de dominação.
O autor afirma que quem morre em zonas como estas são grupos biológicos geralmente selecionados com base no racismo. Funciona assim: é apresentado o discurso de que determinados grupos encarnam um inimigo (por vezes fictício). A resposta é que, com suas mortes, não haverá mais violência. Assim, matar as pessoas desse grupo pode ser aceito como um mecanismo de segurança.
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Outros pontos da obra de Mbembe
Mbembe também utiliza os conceitos de estado de exceção para mostrar como a relação de inimizade torna-se a base de uma licença para matar e como o poder apela a uma exceção (emergência fictícia da existência inimigo) para justificar um extermínio.
Outro ponto relevante das críticas do camaronês é que as análises de Foucault permaneciam em uma esfera eurocêntrica (focada na sociedade europeia) que ignora fenômenos ocorridos fora dessa visão desde o imperialismo colonial. Segundo o autor, a ideia de “eliminação de inimigos do Estado” sempre esteve ligada ao período escravocrata.
Por isso, Mbembe é considerado um dos poucos teóricos contemporâneos que pensa o contexto mundial atual utilizando ideias foucaultianas para analisar problemáticas de regiões periféricas e dar foco em genocídios não europeus a fim de demonstrar que estes seguem ainda hoje os padrões chamados por ele de tardo coloniais.
Como a obra se relaciona com a realidade?
Como observado por Foucault e Mbembe, alguns discursos podem promover inimizades entre grupos, ao instaurar regimes de medo insegurança, e precariedade. Geralmente, esses movimentos descrevem situações como “desordens”, “situações de emergência”, “conflitos armados” ou “crises humanitárias”.
A utilização de tais nomenclaturas não está incorreta em muitos casos. Diariamente percebemos diversas situações caóticas em nossa sociedade. No entanto, a preocupação acerca de tais discursos está relacionada ao limite qual pode-se chegar para “resolver” tais situações. Pois, como vimos, os discursos podem ter o poder de estabelecer parâmetros de aceitabilidade para tirar vidas.
Como Mbembe defende, a escravidão foi uma expressão necropolítica fundamentada pelo pensamento hegemônico eurocêntrico que negou por muitos anos aos negros o status de seres humanos. Esse pensamento resultou em milhares de mortes e, mesmo que aparentemente “superado” pela humanidade devido à abolição da escravidão, ainda tem reflexos enormes. Encontramos, na atualidade, estratégias de captura, aprisionamento, exploração, dominação e extermínio do corpo negro que segue ainda a cartilha do colonialismo.
Mas não só os negros. Quanto mais frágil for determinado grupo (em classe, raça, gênero, etc.) – sejam mulheres, indígenas ou outras minorias – maior o desequilíbrio entre o poder da vida e da morte sobre esse grupo. Por isso existem inúmeras discussões sobre estruturas racistas e patriarcais na sociedade que, direta ou indiretamente, produziram práticas e relações sociais desiguais, cujos efeitos ainda são sentidos.
As noções de “necropolítica” desenvolvidas pelo autor ajudam a compreender as formas pelos quais, no mundo contemporâneo, os Estados, por vezes, adotam em suas estruturas a política da morte – o uso ilegítimo da força por meio de seu aparato policial ou a política de inimizade em relação aos determinados grupos – como um discurso necessário para a política de segurança da maioria.
O que a necropolítica tem a ver com o Brasil?
No Brasil, ao longo de nossa história, alguns discursos tiveram o poder de retirar a humanidade de certos grupos através da desclassificação da pessoa, ou seja, da ideia de que ela merecia ser punida ou que as políticas são para a maioria e não para minorias.
A ditadura no Brasil foi um destes momentos. Os 21 anos do regime autoritário resultaram em mortes e corpos desaparecidos. À época, quando um opositor ao regime era preso, torturado ou assassinado, este corpo era considerado um inimigo visível e determinado que merecia um fim. O discurso promovido tinha o poder de estabelecer parâmetros aceitáveis para tirar vidas e controlar as pessoas.
A escravidão também foi um destes momentos. Os 300 anos da precarização de inúmeras vidas foram a base da construção e formação da sociedade brasileira. Mesmo assegurados a todos os direitos que nos igualam de forma jurídica, os dados mostram que nem todos tem as mesmas oportunidades.
Nesse mesmo sentido de marginalização de pessoas, existem discursos que fortalecem a ideia de que existem lugares subalternizados com alta criminalidade em que vidas podem ser tiradas em prol do bem comum. A guerra ao tráfico e à criminalidade no Brasil é um exemplo.
Mas também há necropolítica nas prisões. O tratamento da população carcerária, com punições com foco na privação da liberdade, a superlotação das cadeias e baixas condições sanitárias são reflexos disso. Conforme apontado pelo Conjur, só em 2018 foram mais de 1.400 mortes em presídios no Brasil.
A necropolítica e o COVID-19
É fato que o coronavírus não faz distinção em seu contágio. A contaminação independe de raça, classe, gênero ou orientação sexual. No entanto, o comportamento adotado pelos Estados e suas sociedades pode ser capaz de produzir dinâmicas de diferenciação. A necropolítica pode ajuda a entender porque determinadas pessoas são mais vulneráveis ao covid-19
Desde o início da pandemia, as expectativas eram de que as favelas seriam grandes vítimas do coronavírus no Brasil. Como as principais medidas de combate à disseminação do vírus são o isolamento social e a higiene das mãos, não reunir condições de cumprir tais requisitos pode rapidamente tornar pessoas uma vítima da doença. Pessoas que não possuem acesso às instalações de saneamento básico adequadas, fornecimento de água tratada e recolhimento de esgoto tornam-se alvos fáceis.
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Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apenas 41,5% dos municípios brasileiros dispunham de um Plano Nacional de Saneamento Básico em 2017. O resultado dessa falta de planejamento se reflete na saúde: um em cada três municípios relata a ocorrência de epidemias ou endemias provocadas pela falta de saneamento básico.
Da mesma forma, o isolamento requer a possibilidade de trabalhar em casa ou ter condições de locomover para o seu trabalho evitando aglomerações, o que não é possível para partes mais vulneráveis economicamente já que ocupam atividades que geralmente não poderiam ser executadas a distância.
Ocorre que, já em meio à pandemia, as comunidades veem o coronavírus se espalhar, mas as vítimas da doença permanecem quase invisíveis ao sistema epidemiológico. A alta letalidade e números de casos inexplicavelmente baixos põem em dúvida dados de Covid-19 nas favelas do Rio e desperta questionamentos acerca de sub-notificações, que podem ocasionar em uma falsa sensação de segurança e, assim, agravar a situação do contágio em determinados locais.
O COVID-19 tem gerado, portanto, um agravamento de uma crise já existente. Suas consequências escancaram a desigualdade social vivenciada diariamente por indivíduos em locais onde o isolamento é praticamente impossível. A situação é um anúncio de dados possivelmente preocupantes que podem evidenciar a necropolítica em locais de vulnerabilidade.
Neste cenário já caótico, há também o debate sobre qual deveria ser a política prioridade neste momento: salvar vidas ou salvar a economia. Há estimativas de que a economia brasileira pode sofrer efeitos por mais de dez anos devido ao coronavírus, e esta é uma questão que deve ser levada em consideração pois reflete diretamente nas áreas sociais e políticas do nosso país.
Contudo, houveram críticas aos posicionamentos de diversos governantes no mundo ao relativizarem a gravidade da situação ou afirmarem que “muitos iriam morrer”, desconsiderando muitas vezes, o valor de algumas vidas. De forma geral a pandemia tem demonstrado, em alguns de seus impactos, que algumas vidas valem mais que outras e “quem tem pouco valor” pode ser facilmente desconsiderado ou descartado, afetando sempre as mesmas raças, classes sociais e os mesmos gêneros.
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REFERÊNCIAS
Achille Mbembe: Necropolítica
Fonte:https://www.politize.com.br/necropolitica-o-que-e/
A pesquisadora Rosane Borges explica como o conceito de necropolítica se relaciona com racismo, a ideia da eliminação de um inimigo e as favelas
Necropolítica é um conceito desenvolvido pelo filósofo negro, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe que, em 2003, escreveu um ensaio questionando os limites da soberania quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer. O ensaio virou livro e chegou ao Brasil em 2018, publicado pela editora N-1. Para Mbembe, quando se nega a humanidade do outro qualquer violência torna-se possível, de agressões até morte.
Aqui, o termo vem sendo usado para falar de políticas de segurança pública, como no caso de Ágatha, que, de acordo com testemunhas e familiares, morreu depois de ser atingida por um disparo de fuzil da Polícia Militar do Rio de Janeiro, estado comandado por Wilson Witzel, que, no discurso e na prática, tem adotado uma conduta de combate e violência na área da segurança.
“A gente vê hoje um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política de inimizade. Que faz a divisão entre amigo e inimigo. É o que a gente vê, por exemplo, nas favelas, nas periferias das grandes cidades brasileiras, nos rincões do país. Nossa polícia substitui o capitão do mato”, analisa Rosane Borges, jornalista, professora e pesquisadora do Colabor (Centro Multidisciplinar de Pesquisas em Criações Colaborativas e Linguagens Digitais) da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), em entrevista à Ponte.
Para ela, discutir necropolítica e segurança pública brasileira é entender que os lugares subalternizados com licença para matar “têm endereço e densidade negra”. “A polícia não toca o terror, como a gente costuma dizer, em espaços considerados de elite”, afirma.
Confira a entrevista:
Ponte – O que é necropolítica e como Achille Mbembe chegou até ela?
Rosane – A necropolítica é a política da morte adaptada pelo Estado. Ela não é um episódio, não é um fenômeno que foge a uma regra. Ela é a regra. E o Achille Mbembe elabora esse conceito à luz do estado de exceção, do estado de terror, do terrorismo. Uma das inspirações dele é o Michel Focault, com a biopolítica. Ele vai trabalhar com o conceito inicial, não contrapondo exatamente, mas dizendo: “a materialização dessa política se dá pela expressão da morte”. O Estado não é para matar ninguém, ele é para cuidar. Que a própria política não é o lugar da razão, é o lugar da desrazão. E isso vai ter um desdobramento nas sociedades contemporâneas. A gente vê hoje um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política de inimizade. Que se divide entre amigo e inimigo. É o que a gente vê, por exemplo, nas favelas, nas comunidades do Rio de Janeiro, nas periferias das grandes cidades brasileiras. Não há nenhum tipo de serviço de inteligência, de combate à criminalidade. O que se tem é a perseguição daquele considerado perigoso. A necropolítica reúne esses elementos, que são reflexíveis e tem desdobramentos que a gente pode perceber no nosso cotidiano, na nossa chamada política de segurança.
Ponte – Segundo o autor, os “mecanismos técnicos para conduzir as pessoas à morte” e a “eliminação dos inimigos do Estado” vem desde os tempos do imperialismo colonial, do período da escravidão. Ou seja, nada mudou de lá pra cá?
Rosane – Nada mudou ou, na verdade, pouca coisa. A gente não pode dizer que nada mudou, mas a gente tem uma concepção de fundo que permanece. Se a gente perceber nossa polícia, ela tem uma vocação empreguista, porque ela substitui o capitão do mato. O capitão do mato tinha a função de perseguir os fugitivos e entregar aos seus “donos”. Com o fim do sistema da escravidão oficializada, a gente tem uma polícia que nasce com essa vocação empreguista. E esse empreguismo e essa perseguição se dá a partir de questões sociais, raciais, de gênero e de território. A polícia não toca o terror, como a gente costuma dizer, em espaços considerados de elite. Ela não invade territórios de elite. Essa é a vocação empreguista e persecutória. É a humanidade subalterna que ela invade, que ela viola. Primeiro mata e depois pergunta quem é.
Ponte – Como neopolítica e racismo se relacionam?
Rosane – A política de morte, ou como o próprio Achille Mbembe vai dizer, a necropolítica adota tipografias da crueldade. São os lugares em que se tem licença para matar. Lugares subalternizados, com uma densidade negra. Então, quando a gente junta necropolítica com raça e com racismo, a gente vai ver que essa política da morte tem um endereço. Por que se fala em genocídio da juventude negra brasileira? Porque se mata negros e os números são exorbitantes.
Ponte – Como a necropolítica está sendo aplicada no Brasil e, principalmente, no governo Witzel?
Rosane – Pela militarização da força. A militarização se tornou agora uma panaceia para se combater “todo e qualquer tipo de violência e de criminalidade”. Muita gente vem discutindo como a Operação de Paz liderada pelo Brasil no Haiti construiu um paradigma. Não é a toa que se você pegar os generais [que passaram pela missão] eles estão no governo Bolsonaro. A história das guerras de paz da ONU começam na Guerra Fria e, por isso, são chamadas de guerra de paz. Elas eram orientadas por uma presença mais passiva e menos uso da força. Os conflitos de Ruanda e Bósnia deixaram a ONU em uma situação muito difícil, porque em Ruanda tiveram um milhão de mortos e a ONU não fez nada, na Bósnia a mesma coisa. Quer dizer, o genocídio da década de 90 mudou muito as missões de paz da ONU. A ONU passa a adotar uma conduta mais agressiva justamente quando o Brasil assume a liderança da missão da ONU no Haiti. E essa aplicação fez que, do ponto de vista interno da criminalidade, também fosse adotado uma nova lógica. Uma postura das Forças Armadas que acaba sendo usada no dia a dia da polícia, o que não surte efeito para a criminalidade, porque morre todo mundo. Morre inocente. Morre policiais. Morre civis. E aquilo que era para se combater não se combate.
Ponte – E aí o Estado não está cumprindo seu papel por definição…
Rosane – Como bem disse Foucalt: o Estado não é para operar a morte, é para cuidar da vida de todos. Quando essa política de morte é oficializada, significa dizer que o Estado também faliu na sua função. É o papel do Estado prover as vidas, de que elas realmente serão vividas. Estado não é para matar os seus cidadãos.
Ponte – Mbembe fala em o “estado de exceção” e “estado de sítio” como “base normativa do direito de matar” para se referir ao nazismo e ao território palestino. Pensando em Brasil, podemos fazer essa leitura para falar sobre as mortes causadas pela polícia que acontecem em territórios periféricos das cidades?
Rosane – Sim, inclusive Achille Mbembe vai dizer que se fala muito dos campos de concentração do século 20. Ele vai fazer um recuo histórico e dizer: “olha, essas experiências do estado de exceção já estavam na época da escravidão”. E ele vai estender e dizer que isso acontece hoje, na nossa contemporaneidade. Isso porque tem os seus lugares privilegiados em que a necropolítica se exerce. No Brasil, a gente sabe onde ela se exerce: nas periferias das grandes metrópoles, nos conflitos agrários dos rincões do Brasil, nos morros, nas favelas.
Ponte – Mbembe fala sobre “política como o trabalho da morte”. O que isso significa?
Rosane – É uma política em de que se abre mão do que seria o poder conciliatório do Estado. O Estado é soberano quando decide sobre a vida e a morte de seus cidadãos. Se fala muito em soberania, o Bolsonaro fala de soberania quando fala da Amazônia, mas não se fala de soberania em relação aos Estados Unidos. Aquilo não tem nada de soberano. O que é ser soberano é quando você tem o poder de decidir a morte. Então, a necropolítica é uma forma de os Estados exercerem a soberania pela decisão de escolher quem deve morrer e quem deve viver na sociedade.
Ponte – Qual a relação que as expressões “parem de nos matar”, “vidas negras importam”, “a bala perdida sempre encontram corpos negros”, muito comuns em protestos contra a violência policial, tem com o termo necropolítica?
Rosane – Quando pessoas levantam bandeiras e cartazes com esse enunciado elas estão dizendo: “Olha como essa política da morte se materializa, olha como o Estado está sendo ineficaz em combater a criminalidade e promover a Justiça, em ser um Estado que protege os seus cidadãos e não os coloca em risco. Inclusive em risco de morte”. Esses cartazes, como agora na morte da menina Ágatha, apontam, primeiro, para essa falência do Estado em combater o que ele deveria combater e promover, de fato, igualdade e justiça. Famílias negras e pobres estão sentido isso na pele.Em Salvador tem um protesto que chama “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”. Essa é uma preocupação que acompanha famílias, especialmente negras, que moram nesses lugares. As chamadas tipografias da crueldade. Quando pegamos os índices, por exemplo, de morte de jovens brancos de classe média, em cidades como São Paulo, vão aparecer acidente de carro e fatalidades. Mas a incidência de mortes por policiais se dá com o jovem negro da periferia. Isso quer dizer que há uma incidência de morte em que o Estado é o agente, o sujeito. Ele é mais do que o responsável, ele é o culpado.
Ponte – O vice presidente general Mourão declarou à imprensa, em vídeo que circula nas redes sociais, que o Estado deve ter o monopólio da violência. Essa declaração é um exemplo de necropolítica, o uso da polícia como “máquina de guerra”, termo usado pelo autor?
Rosane – A excludente de ilicitude do pacote anticrime, que não tem nada de anticrime, é um pouco disso. E o que as pessoas estão dizendo? É preciso que se combata. Porque aí não precisa falar em justiça, em polícia. Já que tem que ser assim, então, que todo mundo saia por aí no bangue-bangue, matando todo mundo. Se a gente é a favor da lei, não se pode achar que o correto são os policiais matando por aí. Foram 16 crianças baleadas no Rio de Janeiro e cinco morreram só neste ano. É inadmissível. O número de policiais mortos no Rio de Janeiro é uma coisa absurda. Eles também estão morrendo. Quanto menos armas, menos criminalidade, quanto menos, mortes menos criminalidade. É assim que o Estado tem que trabalhar.
Ponte – Racismo, capitalismo e necropolítica são inseparáveis? Sustentavam as mortes do passado e sustentam agora o que o autor chama de “guerras contemporâneas”?
Rosane – Sim, um sustenta o outro. Em uma análise mais estritamente marxista temos o seguinte: aquilo que o capitalismo acha que não serve mais ele abate, porque são corpos negros. A massa sobrante do mercado de trabalho, o que se faz? O que se faz com o contingente de pessoas que não serão absorvidas pela novas competências técnicas e tecnológicas do capitalismo? Se mate, se exclui. Obviamente que essa mesma massa sobrante são corpos negros, mulheres negras, fundamentais para a acumulação de capital. Corpos que foram escravizados e hoje eles não interessam mais para o capital. A análise mais liberal, financeira, está chamando essas pessoas de desalentadas. São pessoas que estão vivendo nas franjas do sistema social, ficando marginalizadas. Nesse processo de marginalização, a gente cria linhas divisórias de nós e outros. E esses outros podem ser alvo de tudo. Inclusive da morte.
Ponte – Algumas pessoas tratam a atual situação do Rio de Janeiro como uma guerra. Essa comparação é equivalente?
Rosane – Eu acho que sim, porque se você trabalha com a ideia de amigo e inimigo, e que você tem que abater o inimigo. Você só trabalha nessa perspectiva se você trabalha com guerra. É a mesma coisa a ideia de guerra às drogas. Você não guerreia com coisas, com objetos, você guerreia com pessoas. O termo “guerras às drogas” é infeliz ao mesmo tempo que parece ingênuo, revela que se trata de uma guerra contra pessoas.
Ponte – Como a necropolítica se aplica na questão poder do Estado, antes exercido pelas colônias?
Rosane – Do ponto de vista jurídico não somos mais colônias, apesar de nunca termos deixado de ser no ponto de vista político. O presidente fala em ser soberano, que ninguém pode mandar na Amazônia, mas antes de ele ter esse discurso ele foi, em uma perspectiva, colonizado pelos Estados Unidos. O Brasil está escolhendo ser colônia. A colônia tinha uma expropriação do corpo, o corpo que era escravizado, um corpo moeda, objeto. O que permanece é o corpo que é matável. Não é mais estatuto jurídico do escravizado, mas digamos que essa escravização se dá de outras formas. A partir de imaginários, de políticas que definem o normal e o desviante, o bem e o mal, o belo e o feio. A gente vai vendo essas hierarquias se mantendo, o fantasma da escravidão e da colônia é uma presença muito forte. Inclusive orienta políticas contemporâneas. Eu uso sempre o exemplo da violência obstétrica. Uma das modalidades da violência obstétrica é que quando falta anestesia nos hospitais públicos qual é a ordem? Que não apliquem procedimentos anestésicos em mulheres negras, porque se supõe que mulheres negras resistam mais a dor. Da onde que vem essa informação? Da colônia, da escravidão. Por mais que essa regra não seja escrita, ela orienta a política de Estado, porque isso acontece no SUS. É o que se chama de conjunto das regras não escritas, que está no nosso imaginário. Não há comoção porque esse corpo já tem escrito a possibilidade de ser abatido. A gente não vai para a Avenida Paulista, não vai para as orlas de Copacabana.
Ponte – Como você avaliou o discurso de Jair Bolsonaro na ONU nesta terça-feira?
Rosane – Todo mundo está dizendo que é vergonhoso, mas é muito violento. Um presidente que diz que tem que proteger as famílias e as nossas crianças da “ideologia de gênero”, mas é o mesmo presidente que diz que não tem que proteger a família da violência. Quer dizer, a Ágatha morreu na sexta-feira e o presidente vai para a ONU dizer que tem que proteger as crianças da perversão sexual? É violento, é desrespeitoso com os pais daquela criança. Ou seja, ele não respeita família nenhuma. Não se solidarizar nesse momento com o que é a tragédia da morte da Ágatha é de uma violência extrema.
Fonte:https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/
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