PRECISAMOS FALAR SOBRE RELACIONAMENTO TÓXICO FAMILIAR

  

Vogue Editorial (Foto: Reprodução/ Vogue US)

(Foto: Reprodução/ Vogue US)

Precisamos falar sobre o relacionamento tóxico familiar

"Estabelecer os limites de uma relação no contexto familiar pode ser ainda mais complicado, pois nem sempre as fronteiras do que é ou não abusivo estão claras", explica o psiquiatra Filipe Batista em sua coluna para a Vogue

  • FILIPE BATISTA (@FILIPEBATISTAPSIQUIATRIA)
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Muito se fala sobre relacionamentos tóxicos, mas se esquece de dizer sobre toxicidade nas relações familiares. É razoável pensar que nossa primeira relação tóxica se dá no núcleo da família, um primeiro modelo de laço afetivo que, para o bem ou para o mal, dará o tom dos nossos vínculos futuros. Aos pais, ou quem quer que exerça essa função, cabe a difícil tarefa de educar, o que significa impor limites, dizer não à voracidade infantil que tudo quer e acha que tudo pode. Ideais puristas à parte, não se educa alguém sem algum grau de toxicidade, se admitirmos que para todo remédio há efeito colateral.

O processo contínuo de internalização das regras sociais convoca cada um de nós, desde o princípio, a lidar com a seguinte questão: como dar vazão ao desejo, sem romper os pactos sociais e da cultura? Esse equilíbrio nem sempre é fácil e estende-se continuamente. Ou seja, presume-se que mães e pais estejam primordialmente compromissados em mostrar à criança que existem necessidades para além das dela e que nem sempre poderá ser atendida. Paulatinamente, ela precisará desenvolver a habilidade diplomática do acordo e negociação. Frustrar, então, é parte do processo.

Se não é possível atendermos ou sermos atendidos inteiramente quanto às nossas expectativas, a outra pessoa torna-se uma espécie de obstáculo ou entrave. Mas não é simples, afinal é também nesse enganche relacional que nutrimos nossos desejos, o que gera um impasse. Ao mesmo tempo que nos sentimos repelidos, somos atraídos por algum tipo de conexão que nos mantém atrelados. Lidar com essas tensões é parte natural da construção dos laços sociais e familiares. Ocorre que, às vezes, esse desequilíbrio salta aos olhos, e algumas pessoas exercem sobre outras poder e controle capazes de levar à profunda alienação e sofrimento.

Estabelecer os limites de uma relação no contexto familiar pode ser ainda mais complicado, pois nem sempre as fronteiras do que é ou não abusivo estão claras. Esse cenário de contradições e ambivalências, onde frequentemente coexistem amor, admiração, dependência, ódio e ressentimentos, pressupõe uma engenharia afetiva complexa. Por isso, desatar certos nós, redimensionar a relação, impor limites ou, quando necessário, romper laços familiares, talvez demande a necessidade de psicoterapia.

Uma relação pode ser considerada especialmente intoxicante quando é permeada por intolerância, violência, manipulação, ameaça, inveja. Ou seja, sufoca, não admite a diversidade de ideias ou maneiras de existir, e exerce sobre a pessoa uma forma abusiva de controle e poder. O ideal romântico e da família patriarcal faz parecer que é possível encontrar unidade na multiplicidade, e isso é sempre motivo de sofrimento para quem não se enquadra em um projeto idealizado, ou foge às regras socialmente impostas ou presumidas no seio de cada família e relacionamento. Críticas constantes, ironias, sarcasmo, atitudes reiteradas de descredibilização, até casos extremos de agressão física e psicológica compõem o quadro.

Por que pode ser tão difícil identificar e libertar-se de uma relação tóxica familiar? Como dito, toda relação tóxica pressupõe uma dualidade, característica fundamental para a sua perpetuação. Ou seja, além de eventualmente causar mal, agredir ou sujeitar a outra pessoa a uma realidade limitada ou humilhante, a relação tóxica também costuma exercer um forte poder de sedução e manipulação, causando a ilusão de que é imprescindível ou fazendo a pessoa questionar-se quanto aos seus próprios valores e convicções. Essa ambivalência é o que costuma manter alguém enredado em uma relação que faz mal, mas da qual não consegue se livrar.

Frequentemente, os abusadores são aqueles que se vestem do papel de autoridade na família, e costumam justificar suas práticas sob pretexto de proteção e amor, ou simplesmente impondo sua vontade de maneira arbitrária. O vil metal é um importante instrumento de dominação também no contexto familiar. Por isso, embora não seja requisito, independência financeira pode ser determinante.

É muito provável que o próprio abusador também precise de ajuda psicológica. Quando uma pessoa não vai bem, uma família inteira torna-se alvo e reflexo disso. Atacar pode significar uma maneira precária de pedir socorro. Embora valha a reflexão, cabe lembrar que não é dever do agredido salvar o agressor.

Sempre que possível, diálogo é o melhor ponto de partida. Presumir que um membro da família já sabe o que você precisa é um engano frequente. Algumas pessoas têm muita dificuldade em comunicar seus limites assertivamente. Dizer “não” significa apenas apontar esse limite, mas não pressupõe rejeição. Um bom “não”, empregado na hora e da maneira certa, é fundamental para fazer a relação caminhar com respeito e confiança.

Cada caso exige um olhar específico, é verdade, mas quando uma relação familiar não caminha bem, calcular e ajustar uma distância que seja segura e saudável para você pode ser necessário. Ninguém precisa se sujeitar aos modelos impostos pela família. Romper com essas projeções é tão importante quanto desejável. Parece clichê, mas amor pressupõe liberdade, sempre.

Fonte:https://vogue.globo.com/Wellness/noticia/2021/09/precisamos-falar-sobre-o-relacionamento-toxico-familiar.html



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