SOLIDÃO DA FAMA: UMA CRÔNICA SOBRE AS RELAÇÕES NO MUNDO DAS APARÊNCIAS

 

WELLNESS (Foto: Vogue Brasil)

Uma crônica sobre a solidão da fama (Foto: Vogue Brasil)

Solidão da fama: uma crônica sobre as relações no mundo de aparências


  • FILIPE BATISTA (@FILIPEBATISTAPSIQUIATRIA)
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Em sua nova coluna para a Vogue, o psiquiatra Filipe Batista faz uma provocação sobre as consequências de viver para causar boas impressões

No baile dos mascarados, todas as lentes e flashes concentrados em sua face protegida por uma enorme máscara veneziana de veludo azul a cobrir seu rosto. Garantia assim mais que mistério, não revelar era antes de tudo uma maneira de se preservar viva, havia decidido que não derramaria mais suas virtudes a troco de rasteira e maledicência. Além do mais, suas olheiras afundavam um buraco negro, vivia fraca e doente desde que se tornou famosa.

Desceu do carro com ajuda do fiel escudeiro, um Sancho Pança geração Z a carregar a enorme cauda do seu vestido desenhado com exclusividade pelo artista da vez. Ela também alcançara algo nos últimos anos, o quê exatamente, perguntava-se. Não era esperado que chegasse onde chegou, contrariou o próprio destino. Criança, exibia-se para a família, tio bufão preparando churrasco, pão com alho, pai sempre alheio e desinteressado por suas performances, mãe deslumbrada com a vida classe média medíocre que o irmão alcançara: quando crescer, será funcionária pública igual seu tio, essas danças e roupas não te levarão a lugar nenhum.

Dividia o quarto apertado e mofado com dois irmãos, onde encontrava espaço para seu mini camarim, compreendido por poucas bonecas herdadas da prima rica, uma caixa de remédios forrada com tecido chinês floral esgarçado e um pequeno espelho oxidado, dois ou três tocos de batons velhos cor berrante que recuperou dentre os descartados pela mãe. Dela, puxou a vaidade, a maneira lenta e ritmada de pentear os cabelos cantando baixo uma música. Fazia os serviços domésticos com a rádio ligada, enquanto a filha brincava de ser tudo o que sonhava quando não era interrompida pela mãe – vá fazer sua lição.  

Não há nada que justifique mais permanecer na vida glamurosa e cretina que leva hoje do que os sonhos da infância, embora não se lembre de quase nada dessa época. Queria ser reconhecida por todos – sabe aquela menina filha da Zezé, ficou famosa, está na TV – sua vingança consumada. Dedicou energia nisso, no caminho perdeu tudo, suas motivações e alegria. Nada era como pensava, sem magia, sem luz, a mesma névoa fosca que pairava na sua casa e rua. Há de haver brilho em algum lugar, insistia.

Odiava quem havia se tornado, igual a cada pessoa que ela mesma desprezava naquele meio, tristes e solitárias, receosas de ser. Compensava a solidão com a teatralidade, gestos extravagantes, frases prontas, falar muito era a maneira que encontrou para não revelar, falar, falar sem dizer nada. Você está um arraso. Na internet, interpretava uma personagem muito próxima de quem já havia sido de fato, menina natural e talentosa alcançou popularidade, não a reconhecia mais dentro de si, agora tão estranha quanto os muitos papéis que precisava desemprenhar.

Posso fazer uma foto sua? Pose, carão, uma mentirinha aqui outra ali, olhares perversos a penetrar seus olhos, o melhor a fazer era desviar, não encarar de frente toda aquela luz e falsidade, a máscara ajudava. Ela é linda, não se parece com as fotos que posta, ela é isso e aquilo. Precisou apagar-se para se tornar o que os outros queriam que fosse, um cabide sempre disponível no armário para suportar todos os trajes e ultrajes. Milhões de views, likes ou comentários de ódio pareciam iguais, tinham ganhado o peso do enfado e da desilusão. Não acreditava em mais nada, inclusive na bondade e alegria.

Voltou para casa um caco, dois eventos, entrevistas, network, gente falsa, festa triste. Sancho filma a suíte do hotel, era preciso garantir o combinado com a marca, a publi, a permuta, a mensagem maldosa no Instagram, o término do relacionamento, a maquiagem borrada. Cuidado, precisamos devolver, caiu na cama com roupa, tristeza e tudo, sem pensar que o vestido era emprestado. Sancho abaixa, encurvado e servil como seu escravo, desabotoa o feixe da sandália com o esmero de quem trisca um fóssil raro recém-descoberto. Quem dera cuidasse de mim assim.

O pior de se isolar por medo do mal é fechar junto as portas para o bem. Acreditou que não poderia ser diferente, o mundo fadado a jogos de interesses e relações superficiais. Desceu para o lobby do hotel à procura do bar, um dry martini para aplacar seu tédio. Acomodou-se no balcão, vestido colado ao corpo em perfeita harmonia com as havaianas que encontrou pela frente enquanto deixava o quarto e seu capacho questionava sua irrazoabilidade – me deixa, preciso tomar ar.

Em frente ao balcão crescia, cheia de si, um dirty martini, por favor, suíte 304, coloca na conta. Luz baixa, somente a necessária na escuridão predominante, o balcão de madeira desgastada, veios proeminentes, marcas de taças e copos que repousaram ali, vestígios de outras vidas. Tocava Cat Power, sua voz rouca fundia-se ao burburinho das pessoas ao lado, talvez namorados ou amantes, aparentavam entusiamo e curiosidade recíprocas, a batida do piano ritmada junto às suas memórias, “where is my love”. Voltou dois anos, seus sentidos atentos, aroma de sândalo e couro penetraram o ambiente, aquele beijo inesquecível, outro gole de martini, o sal da salmoura a atiçar suas papilas, sua boca úmida, os pêlos ouriçados, seu corpo inteiro açoitado pelo desejo. 

Você é a moça do baile? Te vi na internet. Sim e não, é complicado, já nem sei. Está sozinha? O gin pode ser a melhor companhia. Onde fica o toalete? Subiu as escadas do lobby cambaleando, andava sensível à álcool ou quem sabe estivesse em vertigem sóbria. Pensou que seria melhor voltar para a suíte, no dia seguinte entrevista, ensaio logo cedo. Quis mandar uma mensagem no WhatsApp, perguntar qualquer banalidade, como foi seu dia, mas não tinha em quem confiar.

De volta ao quarto, satisfeita por estar sozinha, despiu-se enquanto cantava baixo “where is my love”. No banheiro, molhou o rosto com água gelada, olhou-se no espelho penteando os cabelos lentamente como sua mãe fazia, enquanto observava dois córregos negros descerem de seus olhos, decidiu que não tiraria a maquiagem. Deitou-se na cama, pensou por um instante largar tudo, virou-se e abraçada ao travesseiro dormiu profundamente.

Fonte:https://vogue.globo.com/Wellness/noticia/2022/05/solidao-da-fama-uma-cronica-sobre-relacoes-no-mundo-de-aparencias.html


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