QUEM SÃO OS SUPER-RESISTENTES Á COVID-19: EXISTEM PESSOAS RESISTENTES E GENETICISTAS TENTAM DESCOBRIR POR QUE

Colorized scanning electron micrograph of an apoptotic cell (green) heavily infected with SARS-COV-2 virus particles (purple), ...

Micrografia eletrônica de varredura colorizada das células de um paciente (verde) infectadas com partículas do vírus Sars-CoV-2 (roxo).

FOTO DE NIAID, NIH, SCIENCE SOURCE

Existem pessoas resistentes à covid-19? Geneticistas tentam descobrir

Milhares de pessoas repetidamente expostas ao vírus nunca adoeceram. Cientistas esperam que o DNA possa conter pistas para novos tipos de tratamentos.

POR PRIYANKA RUNWAL

PUBLICADO 18 DE ABR. DE 2022 15:46 BRT


Depois de se safar da covid-19 várias vezes durante a pandemia, a comissária de bordo Angeliki Kaoukaki se perguntou se ela era uma anomalia médica. Mas ela possivelmente está entre um pequeno grupo de pessoas que podem ter resistência genética ao vírus. Cientistas correm para entender como essa resistência ao Sars-CoV-2 poderia funcionar – e se a característica pode ser aproveitada para desenvolver novos remédios contra a doença.

Kaoukaki já havia trabalhado ao lado de outros tripulantes de cabine que deram positivo sem adoecer. Então, em julho de 2021, o parceiro de Kaoukaki contraiu um caso grave de covid-19, com febre alta e dor insuportável que duraram quase 10 dias. Kaoukaki não mostrou sintomas, apesar do fato de os dois se isolaram juntos por duas semanas em seu apartamento em Atenas, Grécia.

Ela continuou a testar negativo em múltiplos testes de PCR e antígeno rápido, e um teste que ela fez 23 dias após a infecção confirmada de seu parceiro não revelou anticorpos em seu sangue.

"Todos os dias, [os médicos] me diziam que talvez eu estivesse com covid", diz ela, "mas, uma vez após a outra, eu testava negativo."

Apesar de ambos terem sido vacinados, seu parceiro contraiu covid-19 novamente durante a onda da variante ômicron, em janeiro. Kaoukaki isolou-se com ele por cinco dias e, novamente, não apresentou sintomas e continuou a testar negativo para o vírus. Foi quando ela começou a procurar uma explicação.

Um artigo online a levou a Evangelos Andreakos, imunologista da Fundação de Pesquisa Biomédica da Academia de Atenas. Ele faz parte de um consórcio internacional chamado Esforço Genético Humano-Covid, que tem procurado variações genéticas que podem revelar por que algumas pessoas nunca contraíram a doença.

Andreakos e seus colegas não esperavam encontrar muitos indivíduos para o estudo, mas logo se viram sobrecarregados com e-mails de pelo menos cinco mil voluntários em todo o mundo com histórias semelhantes às de Kaoukaki.

Usando amostras de saliva de 20% das pessoas que atenderam aos critérios do estudo, Andreakos e sua equipe vão escanear as regiões de genes responsáveis pela codificação de proteínas no DNA, para detectar quaisquer mutações ausentes nas sequências genéticas de pacientes que tiveram casos graves ou moderados de covid-19. A esperança é que algumas dessas pessoas guardem o segredo da resistência ao vírus.

"Esperamos que seja uma população rara", diz Andreakos. "Mas há precedentes."

Resistência a outras infecções virais

Por muito tempo, supunha-se que o resultado de qualquer infecção dependia das características genéticas do patógeno.

“A tendência sempre foi pensar mais sobre a força do patógeno em termos de gravidade – se é um patógeno grave ou um patógeno leve", diz o virologista molecular Johan Nordgren, da Universidade de Linköping, na Suécia. Por isso, menos atenção era dada a um hospedeiro e como seus genes afetam a capacidade de combater uma infecção, diz ele.

Nas últimas duas décadas, porém, cientistas têm conduzido os chamados estudos de associação de genoma para identificar certos genes ou regiões do DNA que podem estar ligados a doenças específicas. Eles fazem isso comparando as sequências genéticas de indivíduos infectados com as mesmas sequências de pessoas saudáveis, e buscam correlações entre mutações e resistência.

Em 1996, este método permitiu que o biólogo molecular Stephen O'Brien e seus colegas descobrissem uma rara mutação genética que protege contra o vírus HIV, que causa a aids.

A maioria das pessoas tem um receptor de proteína presente principalmente na superfície de certas células do sistema imune, chamadas receptor de quimiocina 5, ou CCR5. Esse receptor permite que o HIV se ligue e entre na célula. Mas a equipe de O'Brien descobriu que algumas pessoas têm uma mutação que produz um defeito nessa parte da célula.

Para ser resistente, um indivíduo precisa de duas cópias dessa chamada mutação delta-32 – uma de cada um dos pais. Uma única cópia ainda pode permitir que o vírus infecte células, embora possa desacelerar o desenvolvimento da aids no indivíduo.

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"O delta-32 foi um bom exemplo, que convenceu as pessoas de que a genética era importante e que era possível ter uma resistência genética", diz O'Brien.

Os cientistas também rastrearam uma mutação em um gene diferente, que confere resistência a certas cepas de norovírus, um dos principais causadores da gastroenterite aguda em todo o mundo. Essa mutação impede que os norovírus entrem nas células que revestem o trato digestivo humano.

"Em outras palavras, ou você tem a porta que o vírus usa para entrar na célula, ou não", diz Lisa Lindesmith, pesquisadora de norovírus na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, Estados Unidos. "Se você não tem isso, não importa quantos vírus podemos te dar, você não será infectado."

Embora a resistência genética a infecções virais não seja generalizada, o fato de que isso acontece tem despertado o interesse em mutações semelhantes em indivíduos expostos ao Sars-CoV-2.

Fundamentos genéticos para a resistência à covid-19

O Esforço Genético Humano-Covid começou a recrutar voluntários no ano passado, com foco em profissionais de saúde que foram expostos ao vírus, mas não foram infectados, e adultos saudáveis que viviam em uma casa com um cônjuge ou parceiro que adoeceu e experimentaram sintomas moderados ou graves da covid-19, como Kaoukaki.

Os cientistas levantaram uma hipótese: se esses indivíduos fossem repetidamente expostos e ainda escapassem da infecção, eles seriam mais propensos a carregar uma mutação que oferecesse resistência ao vírus.

Um alvo promissor é o gene que codifica para o receptor ACE2 humano e os que regulam sua expressão em superfícies celulares. O vírus Sars-CoV-2 deve ligar-se ao ACE2 para entrar nas células e infectá-las. Uma mutação que altera sua estrutura e expressão pode bloquear a ligação do vírus e prevenir infecções.

Até agora, o ACE2 parece ser nossa melhor aposta, diz Jean-Laurent Casanova, geneticista da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos, que faz parte do Esforço Genético Humano-Covid. Variações genéticas que permitem que o ACE2 funcione normalmente, mas interrompem sua interação com o vírus – "esses seriam bons genes candidatos", diz ele.

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É possível, porém, que haja outros fatores biológicos além do receptor ACE2 que poderiam explicar por que algumas pessoas não desenvolveram uma infecção por Sars-CoV-2.

Algumas pessoas podem possuir um sistema imunológico robusto, que produz proteínas antivirais chamadas interferons tipo I, que limitam a capacidade do vírus de se replicar em células humanas. Eles são a primeira linha de defesa do corpo e aparecem antes mesmo de anticorpos se formarem contra o vírus.

Outra hipótese é que as células imunes chamadas células T de memória que podem ter se formado durante encontros prévios com outros tipos de coronavírus, como aqueles que causam o resfriado comum, ajudam a limitar a infecção pelo Sars-CoV-2 em certos pacientes.

Em 2020, antes da chegada da vacina, um estudo encontrou maior presença de células T de memória em profissionais de saúde que foram expostos ao vírus, mas que não desenvolveram covid-19.

As células T de memória podem ter eliminado o vírus muito rapidamente para algumas pessoas. Mas não é garantia de que essas pessoas estarão protegidas de infecções futuras. "Na verdade, sabemos que alguns foram contaminados com variantes mais infecciosas e/ou talvez com uma dose maior do vírus", diz Mala Maini, imunologista viral da University College London, no Reino Unido, e uma das autoras do estudo.

Se seu estudo apresentar pistas sobre resistência genética, Casanova espera que a informação possa ser usada para desenvolver técnicas terapêuticas contra a covid-19, semelhante aos inibidores de ccr5 projetados para tratar infecções pelo HIV. Mas as decisões para desenvolver essas terapias, diz Casanova, dependerão da natureza dos genes mutantes descobertos.

 

Quem são os super-resistentes à Covid-19

Novos estudos levantam as principais características de homens e mulheres que ainda não se infectaram


Por Giulia Vidale — São Paulo

 

Todos nós conhecemos alguém que, de alguma forma, conseguiu evitar a Covid-19. Após a tsunami da Ômicron, a quantidade de pessoas que conseguiu essa façanha diminuiu, mas o fato é que elas ainda existem. Há alguma razão pela qual uma pessoa pode ser resistente à infecção? É justamente isso o que a ciência está tentando descobrir.

Imagens da pandemia da Covid-19 pelo mundo

Mulher passa por um túnel de desinfecção em Mumbai, em abril de 2020. Cidade de 20 milhões de habitantes é agora responsável por 20% das infecções por coronavírus na Índia e quase 25% das mortes — Foto: ATUL LOKE / The New York TimesCorpos empilhados em um trailer refrigerado no Brooklyn Hospital Center, em Nova York, em abril de 2020. Mais de 20 mil nova-iorquinos morreram na primavera de infecções por coronavírus — Foto: VICTOR J. BLUE / The New York Times
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O Papa Francisco preside a cerimônia da Via Sacra na praça vazia de São Pedro, no Vaticano, durante a Sexta-feira Santa, em 10 de abril de 2020 — Foto: NADIA SHIRA COHEN / The New York Times
Metópoles vazias, hospitais lotados e rotinas mantidas através da internet marcaram o enfrentamento ao coronavírus

Inicialmente, as pesquisas focaram em entender quais fatores genéticos contribuíam para o agravamento da doença mesmo em pessoas sem fatores de risco. Eles descobriram que 20% dessas pessoas apresentavam mutações no genes que produzem interferon, uma substância usada pelo organismo como primeira linha de defesa contra o vírus.

Assim como a genética pode ser um determinante da gravidade da doença, ela também pode ser a chave para a resistência à infecção pelo SARS-CoV-2. E é nisso que os estudos se concentram agora: encontrar essas pessoas super imunes e identificar os genes que conferem essa proteção. A expectativa é que esse conhecimento leve ao desenvolvimento de tratamentos e vacinas que impeçam não só o agravamento da Covid-19, mas o desenvolvimento da doença em si.

— Identificar as variantes no material genético que ajudam a proteger essas pessoas também ajuda a entender o mecanismo de ação por trás dessa proteção e isso sim pode servir para um grande número de pessoas — diz o geneticista Salmo Raskin, diretor do Laboratório Genétika, em Curitiba.

Alguns estudos já apontam para as principais características dessas pessoas, que variam de ausência do receptor que permite a entrada do vírus na célula até uma poderosa resposta imunológica.

Resposta imunológica poderosa

Um estudo publicado na revista Nature mostrou que profissionais de saúde que foram altamente expostos ao coronavírus, mas que não foram infectados, tinham um sistema imune que conseguia controlar o vírus. Embora nunca tivessem tido contato com o vírus, amostras de sangue revelaram que estas pessoas já tinham células T protetoras, que reconhecem e matam as células infectadas pelo Sars-CoV-2.

Na prática, essas pessoas nunca foram de fato infectadas. Seus testes de PCR e anticorpos registram resultado negativo porque assim que o vírus entrou no corpo, ele foi prontamente eliminado por essas células, impedindo sua replicação no organismo e a instalação da doença.

A descoberta é particularmente significativa porque estas células T tendem a gerar uma imunidade que dura por anos, não meses, como os anticorpos. Além disso, elas são capazes de detectar uma parte do vírus diferente da que a maioria das vacinas atuais treina o sistema imunológico para encontrar. Esse conhecimento pode ajudar no desenvolvimento de imunizantes que têm como alvo ensinar o corpo a produzir essas células T contra diferentes partes de proteínas virais. Isso pode ajudar a proteger não só contra as cepas existentes, mas contra novas cepas e até mesmo contra patógenos inteiramente novos.

Outra pesquisa, feita pela Universidade de São Paulo com casais discordantes - quando um pega o vírus, mas não passa para o outro - descobriu que as pessoas que não adoeceram têm uma ativação mais eficiente de células de defesa conhecidas como exterminadoras naturais ou NK (do inglês natural killers), que servem como primeira barreira de defesa do nosso organismo contra uma infecção.

Outras pessoas podem ter mutações que aumentam os genes que impedem o vírus de se replicar ou que decompõem o RNA viral na célula, especialmente nas células que revestem o interior do nariz, porta de entrada da infecção, impedindo que ela se alastre no organismo.

Tipo sanguíneo

Um estudo realizado na China, no primeiro ano da pandemia, descobriu que o tipo sanguíneo A parece estar associado a um maior risco de contrair o vírus, enquanto o tipo O oferece uma pequena redução do risco. Entretanto, ainda não se sabe o que confere esse efeito protetor.

Alteração no receptor ACE2

É possível que algumas pessoas naturalmente resistentes tenham tipos raros de ACE2, receptor usado pelo vírus para entrar nas células, aos quais a proteína spike do coronavírus não pode aderir. Análises genéticas recentes revelaram que algumas pessoas possuem mutações genéticas que fazem com que seu receptor ACE2 não seja funcional portanto, têm uma redução do risco de infecção.

As diferenças na expressão de proteínas entre as pessoas são conhecidas como polimorfismos e essas descobertas são valiosas. As pessoas que têm um polimorfismo genético raro para a proteína CCR5 são imunes à infecção pelo HIV, vírus causador da Aids. Na década de 1990, pesquisadores identificaram que algumas pessoas que eram resistentes à doença, embora fossem altamente expostas ao HIV, tinham uma mutação rara que desativa o receptor CCR5 nos glóbulos brancos, impedindo a entrada do vírus na célula.

Esse conhecimento levou ao desenvolvimento de uma nova classe de medicamentos contra a Aids, que bloqueiam o vírus. Também houve o caso de duas pessoas que foram curadas da infecção após receberem transplantes de medula óssea de doadores com essa mutação no CCR5.

O infectologista Celso Granato, diretor clínico do Grupo Fleury, acredita que a explicação para pessoas com uma super imunidade contra a Covid-19 esteja justamente na ausência do receptor, que impede que a infecção se instale, ou em uma resposta imune extremamente robusta.

Esse fenômeno não é exclusivo da Covid-19 ou da Aids. Ele está presente em outras infecções virais. Todos conhecem alguém que dormiu na mesma cama com uma pessoa resfriada ou gripada e não apresentou nenhum sintoma. Por isso, Granato acredita que as descobertas sobre esses mecanismos para a Covid-19 podem ter desdobramentos no combate a outras doenças infecciosas.

Como ainda existem mais perguntas do que respostas, essas análises continuam em andamento. Uma equipe internacional de pesquisadores, incluindo uma brasileira, está conduzindo um estudo para identificar os genes que protegem esses indivíduos resistentes.

A principal dificuldade em um estudo como esse é selecionar os voluntários. A resistência à infecção pelo HIV, por exemplo, está presente em 1% da população.

— Populacionalmente, não se espera um número grande de pessoas com essa resistência — diz Raskin.

Por isso, é preciso garantir que os voluntários são pessoas que realmente foram altamente expostas ao vírus sem proteção e mesmo assim apresentaram um teste negativo. E não que elas não se infectaram porque tomaram vacina ou porque utilizaram medidas de proteção individual, como uso de máscaras ou distanciamento social.

A expectativa está em casais discordantes ou em profissionais de saúde que não se infectaram no começo da pandemia. Já são cerca de 700 voluntários inscritos e mais de 5 mil em análise. Uma vez identificados os possíveis candidatos, os pesquisadores vão comparar os genomas desses indivíduos com os de pessoas que foram infectadas, em busca de genes associados à resistência.

Os genes selecionados serão então estudados em modelos celulares e animais para confirmar uma relação causal com a resistência e estabelecer o mecanismo de ação. As descobertas podem levar a melhores medicamentos e conselhos de saúde pública mais direcionados.


Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2022/06/quem-sao-os-super-resistentes-a-covid-19.ghtml

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