Em um passado não tão distante, nos anos 1960, o Centro Psiquiátrico Pedro II do Rio de Janeiro viria a se tornar palco para uma descoberta perspicaz: os animais podem auxiliar na recuperação física e no desenvolvimento mental de pacientes psiquiátricos.
Tudo começou de repente, quando uma cadelinha abandonada e faminta entrou no hospital. A psiquiatra junguiana Nise da Silveira, que ali realizava os seus trabalhos humanizados, a tomou nos braços e percebeu o interesse de um dos internos. A médica então perguntou se ele gostaria de cuidar do animal e, diante da resposta afirmativa, deu-lhe o nome de Caralâmpia – personagem de um livro de Graciliano Ramos.
Nise da Silveira logo percebeu os resultados positivos da relação entre o interno e o bicho e passou a utilizar animais na terapia dos demais pacientes. Em sua obra, ela registra outros casos, como o de Abelardo. Conhecido por sua força física e fácil irritabilidade, o paciente assumia postura tranquila quando cuidava de cães e gatos. Djanira, por sua vez, retomou a capacidade criativa de pianista por meio da relação com os bichos.
A médica percebeu que era importante que o paciente contasse com a presença não invasiva de um co-terapeuta (no caso, o animal) que permanecesse ao seu lado, servindo como um ponto de apoio seguro para que ele pudesse se organizar psiquicamente e facilitando a retomada de contato com a realidade.
Nise da Silveira foi pioneira ao enxergar o valor terapêutico da interação de pacientes com bichos, revolucionando a psiquiatria brasileira. Hoje, muitos profissionais da saúde se inspiram em seu trabalho para continuar o que chamam de intervenções assistidas por animais.
Intervenções assistidas por animais: o que são?
Bichoterapia, pet terapia, zooterapia ou cinoterapia: provavelmente você já deve ter ouvido um ou mais destes termos, mas a verdade é que todos fazem referência à mesma definição: à intervenção assistida por animais (IAA).
De acordo com a International Association of Human-Animal Interaction Organization (IAHAIO), trata-se de uma intervenção estruturada e orientada por objetivos que intencionalmente inclui ou incorpora animais na saúde, educação e serviços com o propósito de trazer benefícios terapêuticos em humanos. O termo engloba o que se conhece por Terapia Assistida por Animais, Educação Assistida por Animais, Atividade Assistida por Animais e Treinamento Assistido por Animais.
Segundo a psicóloga Karina Schutz, especialista em terapia cognitivo-comportamental que desenvolve IAA com idosos institucionalizados e crianças do espectro autista, a terapia tem um objetivo claro e pode ser quantificada.
"É possível, assim, avaliar o desenvolvimento do paciente antes, durante e depois do processo terapêutico. A terapia assistida por animais requer o treinamento do bicho e a supervisão de um profissional da saúde, como um médico, psicólogo, enfermeiro, dentista, etc. É quando, por exemplo, um fisioterapeuta trabalha com autistas em clínicas e utiliza o animal para objetivos específicos: pede para o paciente escová-lo, para fazer um certo movimento de braço ou caminhar", explica a especialista.
Este trabalho visa melhorar o funcionamento físico, cognitivo, comportamental e socioemocional do receptor humano em particular. Além disso, demanda a presença de um profissional que compreenda o comportamento, necessidades, saúde e indicadores e regulação de estresse dos animais envolvidos.
Já a Educação Assistida por Animais foca nos objetivos acadêmicos, habilidades pró-sociais e funcionamento cognitivo. Acontece, por exemplo, quando o animal é levado para dentro do contexto escolar para ajudar crianças que estejam enfrentando bullying ou tenham dificuldades de aprendizado ou concentração. Este processo também requer profissionais qualificados, como professores, psicólogos ou pedagogos que entendam as demandas dos animais.
A Atividade Assistida por Animais, por sua vez, é uma modalidade informal de intervenção que utiliza o animal para objetivos recreacionais, educacionais ou motivadores. Os agentes (o que inclui o animal) presentes nas visitas devem ser previamente instruídos, mas o profissional não precisa ser, necessariamente, especializado na área.
Um exemplo destas atividades é quando pets são levados a residenciais geriátricos para distrair e alegrar os idosos, ou quando um adestrador leva o cão para uma escola com fins recreacionais. É possível que haja benefício terapêutico, nestes casos, mas as atividades não o têm como objetivo final.
O Treinamento Assistido por Animais, por fim, é realizado por treinadores ou conselheiros capacitados para aumentar o crescimento pessoal do destinatário e atuar no insight e no aprimoramento dos processos do grupo ou nas habilidades sociais e funcionamento socioemocional de quem o recebe. Segundo a IAHAIO, a intervenção pode ser medida e incluída na documentação profissional.
Os benefícios da IAA
De acordo com a psicóloga Samantha Maranhão, preceptora multiprofissional do Centro de Educação e Pesquisa em Saúde do Instituto Santos Dumont, a intervenção assistida por animais envolve o vínculo animal-humano e isso, por si só, já é extremamente importante para o corpo.
A profissional, que trabalha com equoterapia para crianças do espectro autista, defende: "este vínculo nos faz liberar sensações de prazer e a relação vai fazendo a pessoa envolvida ganhar benefícios de autoestima, de autoconfiança e emocionais de diferentes proporções".
O que Samantha diz tem respaldo científico. Em 2003, o Dr. Johannes Odendaal, pesquisador do Life Sciences Research Institute, na África do Sul, conduziu uma pesquisa sobre a relação neurofisiológica do comportamento afiliativo entre seres humanos e cães.
As conclusões mostraram que, após a interação positiva, ambas as espécies apresentaram maiores níveis de beta-endorfina, ocitocina, prolactina, beta-feniletilamina e dopamina, hormônios e neurotransmissores que produzem sensações de prazer, de bem-estar e de vínculo social. Além disso, nos seres humanos, notou-se a diminuição dos níveis de cortisol, o hormônio do estresse.
Outro ponto positivo decorrente desta interação é que, por não agirem com preconceito diante do desconhecido, os animais podem facilitar o processo de autoaceitação, segurança e autonomia dos pacientes. A parceria pode contribuir ainda para o reconhecimento da liberdade de ir e vir e o estabelecimento da responsabilidade sobre outros seres vivos.
Quais espécies podem ser utilizadas nas intervenções assistidas por animais?
De acordo com a psicóloga Karina Schutz, todo animal que tenha um perfil adequado para interagir com humanos pode ser utilizado nas intervenções assistidas por animais.
"A IAHAIO e a Pet Partners dispõem de protocolos internacionais sobre animais cujos perfis podem ser trabalhados nas instituições. Há cachorro, gato, coelho, porquinho-da-índia, passarinho, lhama, burro, etc. Mas há também animais contraindicados, como o macaco. Por sua fisiologia semelhante ao homem, ele pode se tornar agressivo na adolescência e apresentar instintos primitivos muito aflorados, tendo reações inesperadas", explica.
Além disso, os répteis e anfíbios também não são indicados, uma vez que podem apresentar a bactéria salmonella na pele. "Cágados, tartarugas, cobras, jabutis, lagartos e salamandras podem portar, em sua microbiota natural, a salmonella. Se a criança tocar neles e depois levar a mão à boca, pode se infectar", diz Karina.
Como estes animais, as aves, cachorros e gatos também podem representar um perigo caso estejam doentes. O importante, segundo Karina, é avaliar o comportamento destes bichos e estar sempre de olho na manutenção da sua saúde.
Os cachorros acabam sendo a espécie mais utilizada pelo seu já conhecido temperamento amistoso. No processo de seleção do animal, importa mais o seu perfil do que a raça.
"Pode ser um pitbull, contanto que ele tenha um perfil adequado. Assim como a gente tem labradores e goldens que não têm esse perfil, há pitbulls que têm. Este cachorro precisa conseguir se entregar e se sentir confortável na presença de estranhos", comenta a psicóloga.
Cada atividade requer um perfil diferente. "Animais de pequeno porte podem ser utilizados para pacientes hospitalizados. Há também os de grande porte, como cavalos, que podem ser utilizados na equoterapia, que não é restrita a pessoas autistas. A única restrição é para crianças menores de 3 anos de idade que têm alguma hipotonia motora, pois um movimento brusco do cavalo pode gerar algum dano; e para idosos com problemas ósseos graves, como osteoporose, muito em função do impacto da andadura do cavalo poder trazer alguma lesão na coluna do praticante", explica Samantha Maranhão.
A médica-veterinária Lígia Issberner Panachão, especialista em comportamento animal, também chama atenção para a saúde física do animal: "o cavalo utilizado na equoterapia, por exemplo, tem que ser dócil, não pode ser assustador, deve ser acostumado com a função e estar em boa condição física. Se houver alguma lesão, dependendo do grau, este cavalo não pode ser utilizado na intervenção".
Prestar atenção no bem-estar deste bicho também é de suma importância, por isso a necessidade da supervisão de um profissional que compreenda as suas demandas.
"Os animais não podem ser sobrecarregados. Eles não podem interagir mais do que conseguem, o paciente não deve machucá-lo (como puxar os pelos) e nunca se deve colocar os animais em uma situação de medo", defende Dra. Lígia.
Para facilitar que a interação entre humanos e animais seja a mais positiva possível, estes bichos devem estar em constante treinamento para se sensibilizar a cada intervenção.
"É preciso sensibilizar o cachorro para que ele ande ao lado de uma pessoa de cadeira de rodas ou para estar ao lado de alguém com acesso na veia, por exemplo. Muita gente quer ensinar o cão a ser um co-terapeuta, mas não é tão simples. É preciso prepará-lo para cada atividade diferente a ser realizada", diz Karina.
Fonte:https://revistacasaejardim.globo.com/Vida-de-Bicho/Saude/noticia/2022/01/pet-terapia-como-os-animais-podem-ajudar-na-saude-e-no-bem-estar-dos-humanos.html
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