"O MUNDO CARECE DE SONHADOR", REFLETE O PSIQUIATRA FILIPE BATISTA SOBRE A IMPORTÂNCIA DE SONHAR NOS DIAS ATUAIS

 

WELLNESS MEDITAÇÃO (Foto: Vogue Brasil)

O psiquiatra Filipe Batista refletiu sobre o privilégio de ser ouvido nos tempos atuais (Foto: Vogue Brasil)

"O mundo carece de sonhador", reflete o psiquiatra Filipe Batista sobre a importância de sonhar nos dias atuais

Em uma nova coluna para a Vogue, o especialista faz uma crônica relembrando a necessidade de alimentar os sonhos para ter esperança no futuro

  • FILIPE BATISTA (@FILIPEBATISTAPSIQUIATRIA)
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Cheguei vivo. Se você me lê, é possível que também tenha chegado. Provável que tenha morrido pelo caminho, revivido e morrido de novo, talvez esteja morto agora. Um leitor morto é a pior coisa, porque aceita passivamente o que recebe. Nem um pingo de contrariedade ou indignação, a ausência de troca mata qualquer pessoa que escreve. A pessoa que escreve sou eu, pois autoproclamar-se escritor é pretensioso demais. É preciso um leitor, de preferência vivo ou que esteja em vias de reviver, que nos diga isso. Ser lido é um baita privilégio hoje em dia, assim como ser ouvido, porque ninguém quer parar pra prestar atenção nos outros. Cada um no seu canto, morrendo sozinho.

É muito melhor morrer junto, posso afirmar com conhecimento de causa de quem já morreu algumas vezes. Toda vez que caio sozinho é uma dificuldade para me erguer novamente, sacudir o pó e levantar o astral. A chance de ficar largado no canto, esquecido, é enorme. Já houve tempos assim, quando a poeira e a teia assentavam no corpo moribundo, formando um cobertor cinza opaco, propício pra se embrulhar no frio e não encontrar ninguém. Tanta gente passa apressada. É ordem do acaso quando uma se esbarra em você. Quando estende a mão, questão de humanidade. Recusar a mão estendida, aí é problema de desistência. É triste quem desiste de acreditar, como é triste quem desiste de escrever.

Se você está vivo agora, sente-se vivo enquanto lê, então deve ser daqueles que insistem esperançando. “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar”, lembrou Paulo Freire, “E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir.” Mas depois de tanto baque, tanta porrada, tanta feiúra, vai ficando difícil levantar-se. Na estrada de mortos vivos, só resistem em pé os que insistem nessa história de continuar vivendo, os que insistem acreditar.

Sonhar não é vantajoso nesse mundo feito para zumbis acordados, de olhos sempre abertos. Essa gente que nunca descansa, nunca baixa a guarda, não tira um cochilo sequer, não derrapa uma vez. Derrapar é coisa de sonhador, de quem se atrapalha com as palavras, comete um deslize na fala, se entrega com o olhar. O sonhador é o bicho mais transparente que tem. Vê-se na naturalidade, na falta de intenção de seus gestos. Pra quem não tem a malícia afiada, não enxerga fácil a maldade e a intenção, viver dá um puta trabalho. É como dormir e não poder sonhar, aquele breu horas a fio, sem um momentinho para derrapar na casca de banana e sonhar bobagem, sem sentido ou pretensão.

O mundo carece de sonhador. Seria mais fácil não viver morrendo se pudéssemos nos desarmar, não ter medo de apenas ser, dizer o que vem à cabeça. Mas a maioria das pessoas não está preparada para tanto poder, esse poder chamado liberdade. Liberdade deveria ser privilégio de gente machucada, que faria bom uso dela, pois sabe que é uma conquista, uma responsabilidade. Só quem já morreu e se reconheceu morto em vida devia dispor de liberdade, porque é a coisa mais fina e bonita que existe. A liberdade é para chamar a viver, para estender a mão, lembrar que a vida está aí, que é preciso insistir. Os que confundem o sentido ou fazem mal uso dela, produzem estrago enorme.

Quando o projeto de lei que inscreve o nome da psiquiatra Nise da Silveira no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria é vetado, tem-se o exemplo da pior qualidade humana, incapaz de sonhar e esperançar um país. Não causa surpresa o veto, embora seja impossível não continuar se espantando com o que há de mais baixo, nocivo e vil. Nise acreditava no poder dos sonhos, incentivou os pacientes a expressarem seu universo interior através da arte, maneira profunda e eficaz de tocar a subjetividade. Nise nos convocava a sonhar e a insistir.

Para quem viveu morrendo nos últimos anos, não tem sido fácil. Toda hora o trator passa em cima, depois volta, passa de novo, sem dó nem piedade, uma massa esticada até o limite. Juntar os pedaços, recompor-se, já é complicado, parar o trator é foda. Existe muita força e dignidade na persistência. É preciso insistir vivendo e sonhando, insistir escrevendo. Escrever para reviver todo dia. Digo isso para você que me lê e para mim que escrevo.

Fonte:https://vogue.globo.com/Wellness/noticia/2022/06/o-mundo-carece-de-sonhador-reflete-o-psiquiatra-filipe-batista-sobre-importancia-de-sonhar-nos-dias-atuais.html?234


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