SEMANA DE ARTE MODERNA NO BRASIL DE 1922: DEZ NOMES DA CENA ARTÍSTICA NACIONAL REAVALIAM O MOVIMENTO

 

Semana de Arte Moderna de 22: dez nomes da cena artística nacional  reavaliam o movimento (Foto:  Julia Lego)

(Fotos: Julia Lego)

Semana de Arte Moderna de 22: dez nomes da cena artística nacional reavaliam o movimento

De que maneira o Modernismo influencia a cultura brasileira hoje? Quais as críticas a ele se fazem necessárias? Vogue convida os expoentes da arte nacional para reavaliar a herança deixada pelo movimento, que completa cem anos este mês, e apontar novos caminhos na busca de um conceito de identidade para o país

ELIAN ALMEIDA, ARTISTA

“Acho que a Semana de 22 demarca uma grande ruptura, se você pensar na questão do regionalismo, de falar de Brasil mesmo, de brasilidade, mesmo que de uma maneira exótica. Um século depois, essa discussão ganhou outros corpos e por isso se torna mais consistente. Se antes existia uma classe artística, existe uma mudança drástica: hoje há um novo grupo de pessoas falando de modernidade e que antes pensava em sobreviver e produzir (indígenasartistas negros e mulheres, e outros povos que não estavam abarcados nessas discussões).

Emicida lançou o álbum dele no Theatro Municipal, uma instituição que carrega uma aura histórica para o Modernismo, que reprimiu e continua, de uma certa maneira, reprimindo indiretamente diversos desses corpos. Então quando ele propõe fazer um álbum (AmarElo) no mesmo lugar onde aconteceu a Semana de 22, já é uma quebra de paradigma absurda. É o mesmo lugar em que Villa-Lobos se apresentou, ou seja, Emicida estar ali já é um manifesto. Tenho certeza de que, nas favelas do Brasil que estavam se formando durante a Semana de 22, ninguém sabia que a Semana estava acontecendo, nem quem era Villa-Lobos ou Mário de Andrade. Mas hoje sabem que é Djamila Ribeiro. Já ouviram Emicida, já viram Maxwell Alexandre, e o meu trabalho. Isso democratiza o debate.

Elian Almeida usa camiseta e calça, ambos Handred e sandálias acervo pessoal (Foto: Julia Lego)

Elian Almeida usa camiseta e calça, ambos Handred e sandálias acervo pessoal (Foto: Julia Lego)


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A capa que assino para a Vogue este mês e a minha série de pinturas Vogue, que é justamente sobre olhar para a ideia de apagamento e o que está fora das discussões, são complementares. Hoje as pessoas se identificam com a possibilidade de se ver dentro de um museu, ou no Theatro Municipal, algo que antes era praticamente impensável. Quando comecei a imaginar o que seria esta capa, a primeira coisa que me veio à cabeça foi a ideia de um encontro que seria impossível na arte contemporânea, e brincar com o imaginário de muitas pessoas que acompanham o meu trabalho, que talvez não tenham a oportunidade de consumir a revista, mas a veem nas bancas e sabem de sua importância na moda.


Comecei a olhar imagens de arquivo, os livros de história e cheguei àquela foto dos escritores que participaram da Semana de 22 reunidos (em 1924) no Hotel Terminus, em São Paulo. E o que fica na cabeça sobre essa imagem? Que são todos homens e brancos. Então fiquei pensando: se existisse uma semana de 22 agora, quem seria mesmos intelectuais? Quem eu colocaria? Existe uma série de intelectuais negros que a gente não conhece, e é justamente sobre isso o meu trabalho, e a série Vogue. Então esta capa promove um encontro atemporal e improvável. São só mulheres, porque tenho trabalhado muito com essa ideia de matriarcado, do ponto de vista da vivência. Porque na periferia, os pais foram embora, e a ideia de resistência é matriarcal. Cresci, estudei e cheguei onde cheguei porque tive mulheres que fizeram isso por mim. Então essa foi a ideia. São mulheres que admiro, todas mulheres negras: Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Beatriz Nascimento e Maria Auxiliadora da Silva. É uma escolha política, afetiva e de identificação.”


Ronaldo Fraga usa acervo pessoal (Foto: Julia Lego)

Ronaldo Fraga usa acervo pessoal (Foto: Julia Lego)


RONALDO FRAGA, ESTILISTA

“O Modernismo foi na sua essência a desconstrução do olhar do colonizador sobre a cultura brasileira. A partir da Semana de 22, a geração seguinte forjou o Brasil moderno. Ali nasceu a semente da arte, da literatura e da música brasileira. O Modernismo rompeu com a influência do eurocentrismo e nos provocou a olhar para o chamado Brasil profundo. Mário de Andrade é o meu mentor intelectual desde a adolescência. O seu livro Turista Aprendiz foi sem dúvida o farol para a construção da minha trajetória profissional. Através das minhas coleções chamadas “etnográficas”, fui de encontro aos saberes, fazeres e histórias que talvez, pelas vias normais eu não iria.


Procurei e procuro não perder de vista a cartilha do mestre Mário de Andrade buscando diálogo entre o Brasil feito à mão com o Brasil industrial. Essa sempre foi a tônica do meu trabalho. Em tempos de negação e demonização da cultura brasileira pelo governo atual, é importantíssimo lançarmos luz sobre o legado de Mário de Andrade, Drummond, Portinari e tantos outros que ajudaram a forjar um ideário de país. Questões urgentes como o olhar sobre a diversidade, questão racial e inclusão social são o grande desafio de uma nova semana de arte moderna brasileira.”


Maxwell Alexandre usa acervo pessoal e calça Handred (Foto: Julia Lego)

Maxwell Alexandre usa acervo pessoal e calça Handred (Foto: Julia Lego)


MAXWELL ALEXANDRE, ARTISTA

‘‘Mesmo sem nunca ter estudado a ideia de antropofagismo, percebi que essa era a minha maneira de fazer e enxergar as coisas. A possibilidade de rompimento e reavaliação me interessam. Mas é preciso olhar criticamente para decisões que se deram majoritariamente por homens brancos em 1922. Ainda mais quando se fala de uma brasilidade que não foi ativamente pensada e produzida com representatividade efetiva. Tenho uma necessidade de ruptura que aparece no trabalho pela biografia e pela exceção. Tenho uma postura de irreverência como fazer em artes que vem justamente da falta de formação em artes.


Acredito que questionar a espetacularização da jornada, seja através dos reality shows da televisão, ou mais ainda com os fenômenos de massa das redes sociais, onde cada indivíduo tem uma noção centralizada de si mesmo como produtor de conteúdo, são exemplos recentes de avanços importantes na discussão cultural brasileira.’’


Mel Duarte usa acervo pessoal (Foto: Julia Lego)

Mel Duarte usa acervo pessoal (Foto: Julia Lego)


MEL DUARTE, POETA


“Acredito que existiu uma grande quebra de paradigmas na ocupação do Theatro Municipal pelos modernistas. O slam poderia ser considerado como a arte moderna em curso na minha geração. Não penso que a Semana de 22 abriu grandes oportunidades, nós pegamos uma peixeira e abrimos os nossos caminhos de outras formas. Conseguimos ocupar espaços públicos com pessoas plurais da periferia, com corpos que sempre foram discriminados. Brinco que a poesia é o patinho feio das artes, falam que é fácil de fazer. Mas se colocar no mundo coma sua verdade como munição lírica é carregar um fardo muito grande e, muitas vezes, a minha arte incomoda.


Tem sido cada vez mais difícil trabalhar como artista nesse país, vi muita gente na pandemia ficar sem receber cachê e não ter como pagar contas básicas pela falta de acesso à internet de qualidade. Várias portas se fecharam com o atual governo. Precisamos lutar por leis, emendas e cachês de verdade, pois ajuda de custo não resolve. Foram vários os retrocessos, mas, por outro lado, senti que teve um aumento na rede de apoio e sigo firme pois penso que a poesia movimenta as pessoas para a ação.”


Denilson Baniwa usa acervo pessoal (Foto: Julia Lego)

Denilson Baniwa usa acervo pessoal (Foto: Julia Lego)


DENILSON BANIWA, ARTISTA


‘‘É inegável que as conquistas mais radicais do Modernismo se deram pelo contato com os povos originários. A ruptura entre o romantismo e o indianismo foi importantíssima. Não cabia mais a idealização de conto de fadas dos nossos corpos. Usei essa janela criada a partir da Semana de 22 para contestá-la a partir de falhas do processo, como o fato da cultura indígena ser tratada como um passado inspirador já superado e a falta da nossa presença como parte do grupo. Não quero apagar o que foi feito, mas proponho outra perspectiva. É o que Jaider Esbell fazia, é o que eu faço.


Crio uma reflexão a partir da análise de documentos históricos e entendo a antropofagia como um elemento capaz de nos ajudar a superar certos tabus da sociedade, como o aborto. Acredito que faço o que os modernistas fizeram em sua época, que é pegar um instituto da arte ocidental tido como padrão e transformá-lo, rasurá-lo a partir do presente. Estamos bem preparados para falar coisas que nos calaram durante muito tempo. E por ‘nós’, leia-se afro-indígenas, pessoas LGBTQIA+, mulheres... Todo um conjunto de seres que foram silenciados. Há uma possibilidade de mudança significativa sendo construída a partir dessas vozes. Só não vejo um interesse do Estado em apoiar isso.’’


Xenia França usa vestido Mônica Anjos, colares Lita Reis, pulseiras acervo pessoal e anéis Santa Prata (Foto: Julia Lego)

Xenia França usa vestido Mônica Anjos, colares Lita Reis, pulseiras acervo pessoal e anéis Santa Prata (Foto: Julia Lego)


XENIA FRANÇA, CANTORA E COMPOSITORA


“A primeira coisa que pensei quando fui convidada para debater sobre esse tema foi a pergunta: ‘de qual Modernismo estamos falando?’. Enxergo esse movimento como um recorte artístico de poucas cabeças pensantes vindas de um único estado dentro de um país com proporções continentais. Acredito que exista um valor histórico desse acontecimento, mas ao longo da minha vida, com exceção da escola, confesso que não resvalei mais com ele. É uma turma de elite, filhos de fazendeiros, então a principal ruptura que enxergo neles foi o de questionar os moldes da Europa como padrão vigente, como norte do fazer.


Eles queriam criar a própria narrativa, mas usaram a cultura brasileira num lugar meio exotificado, o que é bem problemático. É um movimento muito autocentrado que não chegou em mim na Bahia. Minhas referências estão na cultura popular brasileira, como o senhor Abdias Nascimento, Dona Ivone Lara, Djavan. Vim do mais absoluto nada e fiz da minha vida o meu próprio manifesto artístico. Me inspiro em artistas como Elza Soares, nossa grande entidade, nosso Sol. Coloquei tudo isso num caldeirão para construir a minha identidade a partir de um processo decolonial.


As presenças intelectuais que são relevantes para esse tempo tecnológico do agora, de 2022, são a antítese desse tempo dos modernistas ao meu ver. Tem uma fala da Nina Simone que gosto muito que é ‘todo artista precisa refletir o seu tempo’ e acredito que isso esteja acontecendo bastante agora. Cada pessoa é a mudança em ação e, no meu trabalho, proponho um estudo íntimo sobre identidade usando a música como ferramenta. Antes de me diluir no coletivo, antes de salvar o mundo, quero ser a minha própria heroína. Esse é meu lance.


O meu convite para quem não me conhece é: ‘me ouça com todos os seus ouvidos e seus sete corpos’. Sinto que tivemos um salto quântico em termos de posicionamento de uma parte da população, em contraponto com uma realidade política horripilante. Vejo menos silenciamento bruto e mais pessoas abertas ao diálogo. Fazendo essa comparação do Modernismo de romper diretamente com um Brasil velho e arcaico, acho que estamos tentando colocar esse passado de uma vez por todas no lixo. Que ele não seja reproduzido jamais. Já tivemos provas e mais provas de que ele não serve e só nos atrasa.”


Élle de Bernardini usa acervo pessoal (Foto: Julia Lego)

Élle de Bernardini usa acervo pessoal (Foto: Julia Lego)


ÉLLE DE BERNARDINI, ARTISTA


“A Semana de 22 é uma representação de uma primeira instância da possibilidade de se fazer uma arte sem se preocupar com as regras do Classicismo na pintura, na poesia, na literatura, e com aquela linguagem rebuscada, incompreensível. Ela trouxe a possibilidade, ainda que embrionária, de a gente olhar para a nossa própria realidade e retratá-la sem essa idealização eurocêntrica, trazendo para a discussão a epistemologia ameríndia, dos trópicos, da América do Sul. Mas ela tem muitos problemas, por ter sido uma semana de arte feita majoritariamente por homens, por pessoas brancas, da classe alta.


Existem muitos avanços na discussão cultural brasileira de lá para cá, que estão mais presentes no campo das artes, especialmente depois de 2010, quando se começa a falar sobre a questão dos negros, dos indígenas, da arte produzida por pessoas trans, não binárias... O Brasil é pioneiro em todos esses campos. A diferença da ruptura de 1922 para agora é a presença desses novos sujeitos, de pessoas não brancas, longe dos padrões eurocêntricos, como a produção de arte latino-americana e a arte trans.”


Aline Bei usa vestido Mônica Anjos (Foto: Julia Lego)

Aline Bei usa vestido Mônica Anjos (Foto: Julia Lego)


ALINE BEI, ESCRITORA


“Um dos legados mais importantes da Semana de 22, que foi tão emblemática para a nossa cultura, é justamente esse enfrentamento dos padrões preestabelecidos na arte. Essa inquietação, essa efervescência, essa não aceitação de limites que vão sendo impostos para a gente, e de alguma forma amarrando certas estéticas e jeitos de pensar o trabalho artístico. Sinto que com os modernistas e com seu pensamento arejado surge o enfrentamento dessas estéticas, que já estavam estabelecidas na época e ainda estão, de alguma forma. Acho muito interessante a gente pensar nessas novas formas de colocar uma história na folha, e acho que os modernistas fizeram isso muito bem, com muita coragem.


É nessa coragem que eu tento apoiar sempre meu trabalho de escritora. Acho que essa agudez é algo que a gente carrega como artistas na nossa contemporaneidade. Sem dúvida, a internet atualmente tem um papel muito interessante nessas discussões, que vão se afunilando ao longo do nosso tempo. A internet, as redes sociais, elas tocam nessa questão do compartilhamento, e de uma palavra que quer comunicar em uma velocidade de urgência. Então acho que tudo isso também está no olho do furacão do nosso trabalho como artista. Sinto que há uma ruptura, ela já está acontecendo e vai se aprofundar ao longo dos anos.”


Sabrina Fidalgo usa vestido Handred (Foto: Julia Lego)

Sabrina Fidalgo usa vestido Handred (Foto: Julia Lego)


SABRINA FIDALGO, CINEASTA


“A Semana de Arte Moderna de 1922 deixou um legado importantíssimo, principalmente no que tange a identidade cultural brasileira. O evento reforçou esse pensamento, e isso é inegável. Porém, cem anos depois desse marco, é necessário fazermos um exercício de revisão histórica e crítica sobre os apagamentos e, até mesmo, o desprezo completo por qualquer expressão que não seguisse a escola europeia, mesmo em se tratando de um movimento que visava dar uma cara nacional a arte produzida aqui.


Por que somente pessoas brancas e herdeiros de uma elite econômica paulistana pós-escravocrata tiveram voz nesse movimento que visava a definir a identidade artística e cultural do Brasil? Onde estavam os pretos, indígenas e mestiços que já naquela época representavam a maioria da população brasileira? No meu trabalho como cineasta, o Modernismo influencia a partir dessa premissa de enfatizar uma identidade nacional, que o cinema brasileiro e o audiovisual poucas vezes fizeram.


O Brasil dos meus filmes tem a cara do povo e mais que isso; tira esse povo do ostracismo e de estereótipos negativos de hiperssexualização, violência, miséria, subserviência e apagamentos completos para levá-lo ao protagonismo em histórias dignas. E, sobretudo, enquanto mulher preta, sou eu a dona das minhas próprias narrativas e não mais brancos de elite, herdeiros dos senhores de engenho que idealizam um país, como qual sequer têm intimidade, porque sempre viveram segregados em uma bolha. Nesse sentido, de pensar uma identidade nacional para as minhas narrativas, o Modernismo segue sendo uma premissa inspiradora.”


Keyna Eleison usa acervo pessoal (Foto: Julia Lego)

Keyna Eleison usa acervo pessoal (Foto: Julia Lego)


KEYNA ELEISON, CURADORA E DIRETORA ARTÍSTICA DO MAM RIO


“Já tivemos muitas respostas sobre a Semana de Arte Moderna e o Modernismo no Brasil, temos expoentes, professores, críticas e artistas que desdobraram e se desdobram sobre esses assuntos. O que essas datas e esse movimento podem trazer para hoje? O que penso sobre o Modernismo é imaginar como o pensamento modernista pode fazer sentido na atualidade. Primeiro como proposta de sociedade: é maravilhoso imaginar que um movimento cultural, ou melhor, que a cultura pode e deve desenvolver propostas para o mundo... que maneiras de viver, conviver e existir sejam pensadas, discutidas e aplicadas a partir de um fazer cultural.


Pensar que a cultura é o fazer coletivo e é necessário um exercício radical de escuta. Que muito do que sabemos é resultado de construções e que, por isso, podem ser rediscutidas. Que a partir de cultura podemos discutir até saúde! Hoje, como diretora artística do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, minha principal ação é não estar só, somos eu e Pablo Lafuente à frente dessa direção. Não sou absolutamente modernista e, ao mesmo tempo, me recuso a negar o Modernismo, a Semana de 22 e todas as reminiscências incontornáveis e necessárias para pensar o que é chamado de arte hoje. Viva a cultura!”


Styling: Sam Tavares

Styling: Xenia França: César Cortinove

Produção executiva: Bruno Costa e Leili Rodrigues

Fonte:https://vogue.globo.com/lifestyle/cultura/noticia/2022/02/semana-de-arte-moderna-de-22-dez-nomes-da-cena-artistica-nacional-reavaliam-o-movimento.html


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