Putin, empossado, prepara-se para a Guerra Fria 2.0
Putin entra na Guerra Fria 2.0 ao lado da China contra os EUA
Líderes da China e da Rússia
formalizaram aliança para denunciar a expansão da Otan
Por IGOR
GIELOW | FOLHAPRESS
04/02/22 - 11h07
Os líderes da China e da Rússia formalizaram nesta sexta (4) uma
aliança que vinha ganhando corpo nos últimos anos contra as políticas
ocidentais personificadas na agenda dos Estados Unidos, apontada como
"abordagem ideologizada da Guerra Fria".
Assim, Xi Jinping e Vladimir Putin concordaram em um comunicado
em denunciar a expansão da Otan (aliança militar ocidental) que está no cerne
da grave crise em curso na Ucrânia e também os pactos militares americanos na
região do Indo-Pacífico.
Esses são os exemplos mais vistosos, mas não únicos, do texto de
5.300 palavras em russo divulgado pelo Kremlin, do que ambos os líderes
chamaram de "amizade sem limites" entre Pequim e Moscou. Algo
"sem precedentes", na voz de Putin.
Vistosos por exemplificar os principais problemas estratégicos
afetando, respectivamente, o maior país do mundo que formava o centro da União
Soviética e a segunda maior economia do mundo, uma ditadura comunista adepta da
economia de mercado.
"As partes se opõem a expansão adicional da Otan e pede
para que a aliança abandone a abordagem ideologizada da Guerra Fria", diz
o texto. Putin tem cerca de 130 mil homens mobilizados em torno das fronteiras
ucranianas, um movimento que inicialmente parecia visar resolver o status do
conflito no leste do país entre rebeldes pró-Rússia e Kiev.
A questão virou algo maior: a definição de uma paz europeia em
termos aceitáveis para o Kremlin, o que não inclui a Ucrânia como parte da Otan
e mesmo a presença de armas ofensivas em membros do Leste Europeu do clube. EUA
e aliança rejeitaram o ultimato, e o impasse prossegue.
No entorno chinês, a Guerra Fria 2.0 movida em reação à maior
assertividade de Xi já causou conflitos diversos com os EUA: guerra comercial e
tarifária, disputa sobre a autonomia de Hong Kong, provocações nas rotas
marinhas que Pequim considera suas e a ameaça da China de tomar Taiwan.
"As partes se opõem à formação de estruturas de blocos
fechados e campos opostos na região da Ásia-Pacífico, e permanecem altamente
vigilantes sobre o impacto negativo da estratégia americana no Indo-Pacífico
para a estabilidade e paz na região", diz o texto.
No ano passado, o governo de Joe Biden formalizou um pacto
militar com Austrália e Reino Unido e reavivou a aliança Quad (com
australianos, japoneses e indianos) contra a China.
Se alguém tinha dúvida acerca do afinamento entre Xi e Putin, os
líderes resolveram desenhar suas intenções. Elas incluem esforços conjuntos
contra "revoluções coloridas", o nome genérico e de assimilação
midiática fácil àquilo que Moscou chama de golpes para derrubar governos
pró-Kremlin na antiga periferia soviética.
Elas ocorreram em locais como Ucrânia e Geórgia, e não acabaram
bem de todo modo. A China acusa os EUA exatamente da mesma coisa ao patrocinar
os movimentos pró-democracia de Hong Kong, que foram esmagados com mão de ferro
após a revolta de 2019, e o governo taiwanês – na ilha que Xi chama de sua,
incursões aéreas com aviões militares chineses são eventos semanais.
O encontro de Xi e Putin ocorreu antes da abertura dos Jogos
Olímpicos de Inverno, em Pequim, evento que foi boicotado diplomaticamente pelo
Ocidente. Pouco mais de 20 líderes participarão da abertura, mas o russo é a
estrela.
Com isso, o governo fortemente autocrático russo e a ditadura
chinesa dão as mãos oficialmente. Não há menção no documento a aspectos
práticos já em curso, como a crescente cooperação militar entre as potências e
os grandes projetos de energia.
Eles são a chave e também o limite da associação. Do ponto de
vista militar, Rússia e China são rivais históricos, e seria surpreendente se
chegassem a uma aliança formal, integral, como por exemplo a que existe entre
Moscou e a ditadura de Belarus.
Economicamente, a deferência política de Xi a Putin embute o
risco percebido em Moscou de que a Rússia pode se tornar uma província
energética da China, ofertando gás natural barato por meio de um projeto de US$
400 bilhões chamado Força da Sibéria –o segundo gasoduto da rede deve ser
anunciado logo.
Para o russo, contudo, é uma saída única. Se a pressão americana
sobre países como a Alemanha, que está adiando a abertura de um novo gasoduto a
ligando diretamente à Rússia, ou uma ruptura devido a uma guerra na Ucrânia
ocorrerem, o mercado europeu pode se fechar ao gás de Putin.
A China, cujo consumo anual do produto deve ultrapassar o de
toda a Europa até o fim da década, pode oferecer uma linha vital para a
sobrevivência desse pedaço central da economia russa, que de resto tem
enfrentado bem as sanções ocidentais que se abatem sobre ela desde que Putin
anexou a Crimeia, em 2014.
Naquele ano, um arremedo de "revolução colorida", mais
violento e menos romântico que as versões dos anos 2000, derrubou o governo
pró-Kremlin de Kiev. A anexação e o fomento à guerra civil no leste ucraniano
foram as respostas imediatas de Moscou, que depois participou de um cessar-fogo
frágil que agora Putin quer ver implementado como plano de paz.
O encontro de ambos foi altamente coreografado e, apesar de
ambos os líderes serem conhecidos pelos cuidados extremos para não contrair
Covid-19, não houve máscaras ou distanciamento. É a primeira reunião deles
desde a pandemia, e a 38ª desde que Xi assumiu, em 2012 –Putin está no poder
desde 9 de agosto de 1999, quando virou premiê pela primeira vez.
No texto divulgado, um trecho atribuído a Xi resume diversos
discursos feitos pelo chinês nos últimos anos, no qual ele discorre sobre sua
visão particular de democracia. "Estamos trabalhando juntos para trazer à
vida o verdadeiro multilateralismo. Defendendo o real espírito da democracia
serve como uma fundação confiável para unir o mundo nas próximas crises, e
defendendo a igualdade".
A visão, contraditória a olhos ocidentais por ser feita pelo
líder de uma ditadura, é compartilhada por Putin. Ambos denunciam a defesa de
valores democráticos feita pelos EUA como hipócrita, já que há exemplos de
sobra (Iraque, Afeganistão etc.) de que ela pode ser forçada por meios
militares, gerando desastres.
A principal diferença entre ambos até aqui é a abordagem
externa. Xi se vale de instrumentos econômicos, enquanto Putin não hesita em
flexionar musculatura militar: nos últimos anos, suas tropas estiveram em
guerras ou intervenções em locais como Geórgia, Ucrânia, Síria, Líbia,
Azerbaijão e Cazaquistão. Moscou ainda tem um arsenal nuclear rival ao
americano, enquanto a China prepara uma expansão no campo.
Do lado ocidental, o exemplo cotidiano da repressão nos dois
rivais é suficiente para fazer a acusação de hipocrisia no sentido contrário. A
Guerra Fria 2.0, o embate China-EUA que define geopoliticamente o século 21,
parece ter acabado de ganhar um terceiro participante oficialmente, vindo da
primeira encarnação do conflito.
Fonte: https://www.otempo.com.br/mundo/putin-entra-na-guerra-fria-2-0-ao-lado-da-china-contra-os-eua-1.2607563
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