O ANO QUE NÃO DORMI


O ano em que não dormi (Foto: Bruna Sanches)

O ano em que não dormi (Foto: Bruna Sanches)

O ano em que não dormi

Mais da metade dos brasileiros relatou sofrer com insônia desde que a pandemia do novo coronavírus se instalou. Não à toa, o problema foi ainda maior para as mulheres, afogadas em carga mental e jornadas de trabalho que nunca acabam de fato depois do expediente. Aqui, reunimos especialistas do sono e histórias que falam de um ano (e muito) em que se manter dormindo é luxo, especialmente se você é do gênero feminino

Já passa da 1h, um grupo fechado do Facebook começa a se movimentar. “Mais alguém aí acordado?”, digita uma mulher. Outras dão sinais. Inicia-se uma cacofonia em que vozes vão se sobrepondo. A intenção ali é a de se ajudarem em mais um episódio de insônia. Chás e fórmulas naturais, tricô e meditação estão entre as soluções sugeridas. “Alguém sente o coração bater nas laterais da cabeça?”, pergunta uma jovem. Não conseguir dormir é um transtorno. E essa é só mais uma noite (em claro), entre tantas do último ano e muito, na vida dessas pessoas. Com a pandemia interminável, motivos não faltam.

“A incerteza é um dos piores inimigos do sono. Sem dúvida estamos em um contexto repleto delas”, diz Monica Andersen, professora do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretora do Instituto do Sono. “Entendo muito de sono e, mesmo assim, a pandemia bagunçou o meu nas primeiras semanas”, continua Monica, que durante a entrevista se dividiu, observando sua bebê recém-nascida ao lado.

São três os tipos de insônia, ela conta: a dificuldade para iniciar o sono; o sono fragmentado, em que a pessoa acorda muitas vezes durante a noite; e o despertar precoce, quando se acorda de madrugada e não se consegue mais adormecer. Qualquer um deles impacta em outras áreas e momentos da vida. “Sono é regularidade. Nosso aparato fisiológico depende de todos os sinais externos de nossa rotina e que vão fazer diferença no descanso”, acrescenta. Ou seja, a hora em que comemos, a quantidade de luz solar que recebemos, o momento em que terminamos o trabalho e que vamos deitar. Sono depende de rotina – e a covid-19 definitivamente mexeu nela.

"A incerteza é um dos piores inimigos do sono. Sem dúvida, estamos em um contexto repleto delas"

Monica Andersen


Em julho de 2020, o Instituto do Sono quis saber como a pandemia havia afetado, até então, o principal período
de descanso da população. Não foi surpresa quando os resultados vieram: mais da metade (55%) dos entrevistados disse que piorou. No entanto, bem antes do caos pandêmico, uma parcela já estava dormindo mal. O mesmo instituto demonstrou, em pesquisa realizada a cada dez anos, que três em cada dez mulheres na cidade de São Paulo viviam com insônia em 2011. Quando outro levantamento foi feito, no ano passado, por meio de um formulário virtual, 78% dos participantes espontâneos eram mulheres – todas com problemas no sono.

A mais de 430 km, no Rio de Janeiro, Natália Mota, psiquiatra, neurocientista e professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), questiona: “Quem normalmente é colocada na armadilha da exaustão? Quem precisa assumir várias funções de carga mental intensa? As mulheres. E carga mental tem tudo a ver com sono”.

O acúmulo de funções, ao qual muitas foram submetidas, especialmente nesse período, explica, aumenta a produção do hormônio do estresse, o cortisol – o mesmo que nos prepara para fugir de situações de risco ou que sinaliza que o dia está começando. Quando isso acontece, os níveis elevados de hormônio durante a manhã são uma resposta fisiológica saudável, mas acordar no meio da noite pode ser sinal de que esse corpo está sobrecarregado. O sono também está relacionado à habilidade de aprender e regular nossas emoções. Quem nunca teve a experiência de ir dormir chorando e acordar melhor?

Quanto ao sonhar, esse é um aliado importante. É a partir desse ato que ocorre a gestão de memórias do dia a dia – sonhamos com o que vivemos. De início, a saúde mental é comprometida e a insônia não tratada pode provocar, lá na frente, doenças crônicas, como hipertensão e diabetes. E não só, diz Natália: “O sono limpa o cérebro, ele literalmente depura as várias proteínas acumuladas ali que, com o tempo, podem causar demência”.

"O sono limpa o cérebro, ele literalmente depura as várias proteínas acumuladas ali que, com o tempo, podem causar demência"

Natália Mota


A infectologista Carolina Damasio, a líder comunitária Irene Alves Cassiano de Oliveira e a stylist Louise Caetano foram algumas dessas mulheres que pararam de dormir com a pandemia. Contamos a seguir suas histórias.

O ano em que não dormi (Foto: Bruna Sanches)

O ano em que não dormi (Foto: Bruna Sanches)

Os tormentos oníricos se tornaram reais

Antes mesmo de a pandemia se instalar, Carolina, 38 anos, já vivia em desassossego. Ler notícias das mortes em Milão e na Lombardia, na Itália, e em Wuhan, na China, sinalizaram o que estava por vir. A infectologista, natural de Caicó, no Rio Grande do Norte, trabalha em um hospital de referência para doenças infecciosas em Natal. Nunca teve problemas para adormecer, exceto quando seu filho, Rafael, 2, nasceu. Mas ali estava privada dessa possibilidade. No cenário atual, era a angústia de esperar a pandemia chegar que tirava seu sono.

Ela ainda amamentava. Se adoecesse, quem cuidaria de seu filho? Seu marido, Joshua, estava trabalhando nos Estados Unidos como piloto. Além disso, temia contaminar a mãe, Angelita, que no meio da pandemia foi diagnosticada com câncer de mama. Eram muitos os receios. Carolina não foi a única entre os profissionais de saúde. Um estudo da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e da Faculdade de Saúde Pública (FSP) revelou que 41,4% desses trabalhadores em todo o país sofreram com insônia durante o ano. 13% deles precisaram recorrer a medicamentos.

“Sonhava com catástrofes, que perdia pessoas que amava. Ou com conhecidos chegando à urgência e ali já não tinha mais oxigênio.” Ela sabia que precisava se preparar. As coisas teriam que estar bem organizadas no hospital, que sem demora se tornou referência para covid. No fim do dia, depois de uma jornada inteira de trabalho, após colocar Rafael para dormir, lia sobre a doença. Por volta das 23h30 ia deitar, mas os sonhos a despertavam às 4h e tinha dificuldade para pegar no sono. Acordava 6h, 6h30. Então o novo coronavírus chegou ao Brasil, e os tormentos oníricos se tornaram reais.

No trabalho, um grupo específico lhe demandava maior atenção: as grávidas. Com a experiência da epidemia de zika vírus, havia a hipótese de um possível impacto na saúde da gestante ou do bebê. Fazia parte de sua rotina acompanhar essas pacientes, mas queria ir além. E, no meio do caos, começou um doutorado para entender os riscos que poderiam enfrentar. O que era apenas uma suspeita logo se confirmou: o Brasil foi o país com o maior número de mortes maternas por covid-19 no mundo.

A segunda onda veio e foi ainda mais dura. “Pacientes pioraram. Fazíamos de tudo para manejar, enviar para a UTI e tirá-las do tubo. O sofrimento em ver mulheres partindo, deixando filhos pequenos era enorme. Não precisavam ter ido, já existia a vacina”, lamenta.

A aflição noturna voltou. É na madrugada que costumam vir informações sobre o agravamento do quadro de pacientes. Ela ficava atenta às mensagens, aguardando o pior. Com um filho pequeno, uma pesquisa de doutorado, uma pandemia sem previsão para acabar e muitas mães morrendo, ficou difícil de segurar. Voltou a acordar de madrugada e, quando isso acontecia, não dormia mais. Sua atenção estava capenga, a memória parecia falhar até mesmo para lembrar as doses de medicações.

Ela lembra de uma paciente, Maria, que estava grávida e chegou saturando em 83%. Morreu um dia após ser entubada. Não pôde salvar o filho. Uma outra em especial, Priscila, deixou Carolina preocupada. Assim como a infectologista, ela tinha 38 anos e um menino da mesma idade que Rafael. Seu estado era crítico: precisou ficar em observação e teve o suporte de ventilação mecânica. “Ela implorava para não deixá-la ser entubada. Não queria ser internada, pois tinha medo de não ver mais a família.” Era a médica quem fazia a ponte entre Priscila e o marido. Felizmente, sobreviveu.

No ápice da insônia, Carolina pôde tirar férias e descansar. Meditou, andou pela natureza, dedicou-se ao filho e voltou a dormir. Mas, apesar da redução de mortes,  não está totalmente segura. Seu receio agora é com as próximas ondas da doença – que certamente virão acompanhadas de outros períodos insones.

Adormecida, porém acordada

Todos os dias, Irene, 60 anos, subia e descia as ladeiras de Heliópolis, a maior favela de São Paulo e sua casa por mais de quatro décadas. Liderança comunitária, ajudava a organizar as reuniões entre moradores, cuidava da pastoral, alfabetizava jovens e adultos havia mais de 15 anos. Era raro estar sozinha.

Em março de 2020, sua rotina mudou radicalmente. Presa em casa, as atividades diárias eram fazer faxina e preparar a comida para o marido, José Francisco, e ela. A TV ficava ligada o dia inteiro, escutava todas as notícias, as piores possíveis. Num piscar de olhos, passou a sentir muito medo. Pensava que poderia morrer a qualquer momento – era isso que vinha à cabeça à noite. E ela, que nunca havia sido de dormir bem, perdeu o sono de vez. “Deitava mas não pegava no sono. Aí levantava, ia para o sofá, ligava a televisão. Quando voltava para a cama vinha o medo dentro de mim. E tornava a levantar.”

Os meses passaram e Irene sentiu que não estava bem. O corpo doía com frequência sem motivo aparente, sentia a cabeça esquentar, a pressão parecia subir ainda mais. Estava adoecendo, pensava.

Em janeiro de 2021, novo trauma: seu cunhado Paulo estava em casa cuidando do neto, quando sentiu um mal­estar e precisou ser levado às pressas ao hospital. Morreu de infarto em poucos instantes. Irene não conseguiu aceitar. Paulo acabara de reformar a casa, após anos de trabalho. E de uma hora para outra não estava mais lá para usufruir o que tinha conquistado. “Ele lutou tanto para ter uma casa, morava aqui [em Heliópolis] e depois se mudou para São Bernardo. A vida dele foi para reformar a casa, mas como diz a história: construiu e não pôde morar. Foi uma tristeza muito grande para todos nós.”

A reboque do desalento que viveu naquele período, a insônia ganhava força. Àquela altura, não sabia mais o que havia chegado primeiro. “Sentia algo queimar dentro de mim que não sabia de onde vinha. Deitava às 22h, 22h30. E ficava acordando a noite toda: 1h, 2h, 4h. Perambulava. No dia seguinte, sentia tontura e não conseguia ver direito, como se tivesse uma pasta colada em meus olhos, enxergava tudo turvo.”

Além da morte do cunhado, havia toda a situação na comunidade. As más notícias eram constantes. As pessoas ali foram duramente afetadas. “Muitos foram atingidos pela covid de diversas maneiras. Não havia trabalho nem alimentos. Muitos se foram. É duro para nós, que temos uma caminhada aqui dentro e conhecemos as famílias, vê-las passando por dificuldades e não poder ajudar como elas precisam.” Uma pesquisa liderada pela União de Núcleos, Associação de Moradores de Heliópolis e Região (Unas) mostrou que faltou alimento para duas em cada dez famílias de Heliópolis. Outras 65% tiveram que reduzir a quantidade de comida que colocavam na mesa.

Abatida com tudo, Irene decidiu buscar ajuda. Consultou um psicólogo e um psiquiatra, que receitou um medicamento para tratar a depressão. Aos poucos, a vida foi voltando aos trilhos. As aulas começaram em agosto e os trabalhos na pastoral foram retomados. Ela já não estava mais tão sozinha.  Tomou as duas doses da vacina e voltou a dormir. “Fico feliz porque estou retornando à pessoa que eu era antes. Mesmo não dormindo, eu estava adormecida e não estava enxergando.”

O ano em que não dormi (Foto: Bruna Sanches)

O ano em que não dormi (Foto: Bruna Sanches)

De madrugada nem a timeline funciona

Louise, 27 anos, estava engrenando um trabalho em um longa-metragem. Animada, tinha a impressão de que a carreira de stylist estava finalmente dando partida. Chegou então a pandemia e tudo precisou ser interrompido. Quando estudava design de produto na Universidade de Brasília, era normal passar a madrugada correndo para entregar os trabalhos no prazo. Isso nunca pareceu ser um problema. Mas o que não a incomodava com tanta intensidade até ali virou um contratempo. Louise não conseguia mais adormecer. Sua ansiedade aumentou. Sentia uma tristeza profunda e tinha crises de choro. “Eu tentava analisar cada microaspecto da minha vida. E começava a surtar com o contexto interno e externo.” Dormir se tornou um luxo raro.

No Brasil, seis em cada dez jovens (entre 15 e 29 anos) relataram ter mais ansiedade na pandemia, quatro em cada dez passaram a ter problemas para dormir, segundo o Atlas da Juventude de 2021.

Louise conta que nunca teve estabilidade no trabalho e, para piorar, com aquela pausa, achava que as pessoas poderiam se esquecer dela. “Me preocupava sobre como seria a vida depois, como faria para me virar.” O salário da primeira fase da filmagem foi para pagar as contas. “A sensação era a de que teria que recomeçar do zero”, lembra. E ainda tinha o medo da covid-19. A conta da insônia começou a aparecer: não tinha disposição, quase não sentia fome, seu cabelo caía, sua unha quebrava.

Seus pais e a irmã mais nova têm uma rotina estável,  e é com eles que ela vive. Todos em casa vão dormir até no máximo meia-noite. Depois disso, Louise ficava sozinha olhando para o teto, esperando o sono. Antes que pudesse se dar conta, eram 6h e já estava amanhecendo. Isso aconteceu incontáveis vezes. Os livros da estante foram lidos, as séries e filmes da lista, riscados. Restavam apenas as redes sociais, mas de madrugada nem elas pareciam funcionar.

Dentro do vai e vem da casa, é como se Louise estivesse em uma realidade paralela: vivia na hora em que todos dormiam. Na clausura e com insônia, a solidão aumentava. “Acordava e as pessoas já estavam almoçando.”

A stylist, que sempre virou a cara para os medicamentos, estava disposta a recorrer a eles caso não conseguisse dormir. Tentou melatonina sintética, passou a tomar sol, começou terapia, aderiu à ioga e à corrida.

Nesse hiato, as gravações voltaram. A insônia agravou. A rotina de trabalho era irregular. Perdeu as contas das vezes em que foi trabalhar virada, sem ter dormido um minuto na noite anterior. Foram latas e latas de energético e doses de café para não quebrar no meio. “Só conseguia dormir quando meu cérebro estava exausto e não tinha alternativa a não ser apagar.”

Hoje, a corrida e a terapia têm ajudado Louise a dormir, “mas ainda não como uma pessoa normal”, diz. “Assim que as coisas melhoraram um pouco, comecei a correr, porque foi o mais próximo de me sentir num esporte. E estava ao ar livre, em um lugar aberto. Dava a sensação de ver a vida acontecendo.”

Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/Comportamento/noticia/2021/09/o-ano-em-que-nao-dormi.html


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