CORONAVÍRUS,IMUNIIDADE DE REBANHO: 'BRASIL É EXEMPLO DE TUDO QUE PODIA DAR ERRADO',DIZ INFECTOLOGISTA QUE TRABALHOU NO CDC DOS EUA

Denise Garrett trabalhou mais de 20 anos no Centro de Controle de Doenças (CDC) do Departamento de Saúde dos EUA

O que é imunidade de rebanho e por que “não se aplica” a Covid-19

"O número de mortes, no final, é inaceitável para um tipo de abordagem dessa", disse a epidemiologista e vice-presidente do Instituto Sabin, nos EUA. Assista

Jornal GGN – Denise Garrett é médica, epidemiologista, trabalhou por 20 anos Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos. Participou do trabalho de resposta ao surto de SARS entre 2008 e 2009. Hoje é vice-presidente do Instituto Sabin, nos EUA, cuja missão é expandir o uso de vacinas pelo mundo. Em entrevista à jornalista Cintia Alves, Denise explicou didaticamente por que o conceito de imunidade de rebanho, ou imunidade coletiva, não deve ser aplicado no contexto do coronavírus para nortear políticas públicas. Comentou também sobre as sequelas da doença já conhecidas e pouco comentadas na imprensa, e falou ainda da expectativa pelas vacinas em desenvolvimento.

“Para mim, essa ideia de imunidade de rebanho para covid-19 é uma falácia, é uma ideia que não se aplica”, avaliou Denise Garrett. Segundo ela, não há motivos que justifiquem a aposta na imunidade coletiva – como fazem líderes da estirpe de Jair Bolsonaro – se essa estratégia custa dezenas de milhares de vidas, sendo que “o Brasil tem os recursos para proteger a população.”

“Muito da imunidade de rebanho depende da taxa de transmissão do vírus, e essa taxa de transmissão depende de várias coisas. Eu posso abaixar essa transmissão, países fizeram isso com medidas de controle, de distanciamento social, uso de máscaras. Quando essa taxa abaixa, o ponto de corte para imunidade de rebanho – vamos dizer que antes fosse de 60% a 70% – ele automaticamente vai abaixar.”

Para Denise, “a gente dá muita atenção para medicamento, vacina, mas podemos escrever parte dessa história com uma boa liderança, que pode implementar [medidas para reduzir a transmissão do vírus], fazer o que precisa, já que nós temos os recursos para isso. E na falta dessa liderança, ainda são importantes as escolhas individuais e as ações coletivas. E aí entram: uso de máscara, manter distanciamento, não lotar bares no Leblon”, indicou.

O que é imunidade de rebanho

Na primeira parte da entrevista, gravada na quarta (15), Denise Garrett explicou o que é imunidade de rebanho e porque ela acha que essa estratégia não se aplica à realidade do coronavírus.

Imunidade de rebanho é um termo criado por um grupo de pesquisadores da Universidade de Manchester, em 1923. Eles queriam saber como um grupo de animais poderia ser imunizado sem que fosse necessário aplicar vacina na manada toda. “A ideia de imunidade de rebanho foi criada no contexto de vacina, mas pode acontecer no contexto de infecção natural.”

As dúvida são: essa imunidade coletiva, ela é possível no contexto do coronavírus? E qual o custo disso?

Para responder à primeira questão, os cientistas calcularam a porcentagem da população que precisaria estar imune ao coronavírus para frear a transmissão exponencial da doença. No começo da pandemia, acreditava-se que essa taxa girava entre 60% a 70% da população, no mínimo, que deveriam desenvolver anticorpos para que a imunidade de rebanho fosse considerada atingida.

Entretanto, esse número varia de acordo com alguns fatores. Entre eles, a taxa de reprodução do vírus. No começo da crise sanitária, essa taxa era de 2,5, em média. Quanto maior a transmissão, maior o percentual da população que precisará estar imunizado para reduzir a transmissão.

A questão é que na COVID-19 existe outra variável, que é o fato de que essa imunização não será homogênea, porque as pessoas podem ser mais ou menos suscetíveis ao coronavírus, e podem também transmitir mais ou menos cargas virais.

Os pesquisadores, então, lançaram essas variáveis nos modelos matemáticos. E os trabalhos mais recentes mostram que a previsão sobre imunidade de grupo pode ter como referência uma taxa menor.

Segundo Denise Garrett, há trabalhos indicando taxas de 20%, 25% até 40%. Dessa forma, alguns cientistas acreditam que a imunidade de rebanho pode ser atingida em algumas cidades como São Paulo e Manaus.

O problema da imunidade de rebanho

O primeiro problema que surge nesse debate é que “a gente não sabe ainda o nível de imunidade que está sendo criado pela produção de anticorpos, nem quanto tempo essa imunidade vai durar”.

A SARS conferiu alguma imunidade duradoura, de 1 a 2 anos. Esse dado para COVID-19 ainda é desconhecido. Sem isso, apostar na imunidade coletiva – ou seja, deixar as pessoas se infectarem à vontade – é um tiro no escuro.

O segundo problema é que essa imunidade coletiva no Brasil não vem sem um alto custo: dezenas de milhares de mortes.

Denise lembra que apesar da letalidade do coronavírus girar em torno de 1%, o volume de infectados por COVID é muito alto, o que eleva a curva de óbitos. “O número de mortes, no final, é inaceitável para um tipo de abordagem dessa”, diz ela a respeito da imunidade de rebanho.

Como a imunidade coletiva não é uniforme, ela pode então ser maior ou menor a depender da região. “A possibilidade de novos surtos estará sempre aí.”

“Em Nova York, no Queens, há duas regiões [que servem de exemplo]. Em Corona, a prevalência foi de 68% de infecção. Em Jackson Heights, a prevalência foi de 56%. Se você me perguntar, [eu diria que] nesses dois bairros eles provavelmente atingiram a imunidade de rebanho. Mas isso não se estende para toda a cidade de Nova York.”

As cidades não são ilhas, as pessoas entram e saem levando o vírus para outros lugares. “Pode haver surtos em outros lugares de Nova York, logo, isso não garante imunidade coletiva para a cidade toda, de maneira nenhuma.”

Fonte:https://jornalggn.com.br/noticia/o-que-e-imunidade-de-rebanho-e-por-que-nao-se-aplica-a-covid-19/

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Coronavírus: 'Brasil é exemplo de tudo que podia dar errado', diz infectologista brasileira que trabalhou no CDC dos EUA

  • Luis Barrucho - @luisbarrucho
  • Da BBC News Brasil em Londres

"O Brasil é o exemplo de tudo que podia dar errado numa pandemia. Temos um país com uma liderança que, além de não implementar medidas de controle, minou as medidas que tínhamos, como distanciamento social, uso de máscaras e, por um bom tempo, também as vacinas. Viramos uma ameaça global."

Essa é a opinião de Denise Garrett, infectologista, ex-integrante do Centro de Controle de Doenças (CDC) do Departamento de Saúde dos EUA e atual vice-presidente do Sabin Vaccine Institute (Washington).

Com a experiência de quem trabalhou no CDC por mais de 20 anos, Garrett não poupa críticas ao governo federal em relação ao combate à pandemia de covid-19.

No órgão, ligado ao Departamento de Saúde dos EUA (equivalente ao Ministério da Saúde no Brasil), ela atuou como conselheira-residente do Programa de Treinamento em Epidemiologia de Campo (FETP) no Brasil, como líder da equipe no Consórcio de Estudos Epidemiológicos da Tuberculose (TBESC) e como conselheira-residente da Iniciativa Presidencial contra a Malária em Angola.

"Um ano depois, estamos no pior lugar em que poderíamos estar, com uma transmissão altíssima, com uma variante extremamente alarmante e com sistema de saúde à beira de colapsar".

"O Brasil parece viver em um universo paralelo. Enquanto todos os países estão indo numa direção, seguimos na contramão".

Especialistas consideram que o Brasil vive o pior momento da pandemia - o país vem registrando nos últimos dias seguidos recordes de mortes diárias.

O Brasil é o segundo país do mundo em número de óbitos (294 mil), atrás apenas dos EUA (542 mil), de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins (EUA).

Garrett falou por telefone à BBC News Brasil. Confira os principais trechos.

BBC News Brasil - Faz um ano que a OMS decretou a pandemia de covid-19 no mundo. Qual é a sua análise a respeito da situação do Brasil?

Denise Garrett - O Brasil é o exemplo de tudo o que podia dar errado numa pandemia. Temos um país com uma liderança que, além de não implementar medidas de controle, minou as medidas que tínhamos, como distanciamento social, uso de máscaras e, por um bom tempo, também as vacinas.

A situação hoje é extremamente preocupante. Temos uma população que está exausta. E fizemos um lockdown 'meia boca'.

Um ano depois, estamos no pior lugar em que poderíamos estar, com uma transmissão altíssima, com uma variante extremamente alarmante e com sistema de saúde à beira de colapsar.

O Brasil parece viver em um universo paralelo. Enquanto todos os países estão indo numa direção, seguimos na contramão.

Um fator decisivo para isso, além daqueles sobre os que eu já falei, foi o incentivo do uso de medicações sem nenhuma comprovação cientifica com a população acreditando nelas como uma medida de proteção.

Ou seja, em vez de praticar o distanciamento social e usar máscara, muita gente acreditou no presidente da República e achou que se protegeria com ivermectina e hidroxicloroquina. Não vi nenhum outro país do mundo fazendo isso.

De fato, aqui nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump também chegou, em determinado momento, a recomendar esse medicamento. Mas, no Brasil, houve um protocolo recomendado pelo Ministério da Saúde.

O impacto dessa fake news é imenso - e faz com que até colegas médicos sofram pressão do próprio paciente.

Além de tudo isso, não temos vacina. O governo não fez acordos quando deveria fazer. O presidente disse que não se vacinaria. O estoque que o Brasil tem agora não é proveniente do governo federal.

BBC News Brasil - Muitos especialistas, tanto do Brasil quanto de fora, vêm dizendo que o país se tornou uma ameaça global. A sra. concorda?

Garrett -Claro. O Brasil virou uma grande ameaça global. O país se tornou um caldeirão para novas variantes.

Vírus estão sempre mutando. As mutações que forem favoráveis a ele, quando não há restrição à transmissão, serão selecionadas e vão predominar.

Eventualmente, e isso ainda não aconteceu, uma vez que as novas cepas estão respondendo às vacinas, que protegem contra a forma mais grave da doença, podemos ter variantes que comprometam a eficácia das vacinas.

Claro que num ambiente onde a taxa de vacinação é baixa e a taxa de transmissão alta, como no Brasil, esse risco é muito mais elevado.

Ninguém está seguro até que todos estejam seguros. Nenhum país vai se sentir seguro enquanto houver um país como o Brasil, onde não há nenhum tipo de controle.

Todos os esforços louváveis de outros países que estão funcionando podem simplesmente ser perdidos por causa de um país que não se importa com a pandemia. E onde não existe uma sensibilização pela vida por parte da liderança do país.

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil

CRÉDITO,REUTERS

Legenda da foto,

Garrett diz que falta liderança ao Brasil em combate à pandemia de covid-19

BBC News Brasil - Neste sentido, a sra. acredita que os brasileiros possam ser mal vistos e até mesmo impedidos de entrar em outros países?

Garrett -Isso é algo que já ocorrendo. E eu vejo isso se intensificando ainda mais. Há restrições contra a entrada de cidadãos brasileiros pelo mundo. Qualquer país de bom senso faria isso. Qualquer país que se preocupa com a saúde de sua população.

É óbvio que os países vão se proteger. As medidas que o Brasil não tomou o restante do mundo tomou. Quando se fala que vai ao Brasil agora é um risco. Antes era o risco de violência, demoramos para mudar essa imagem, agora é a covid-19.

BBC News Brasil - O que a sra. acha que o Brasil deveria fazer neste momento?

Garret -Duas coisas. O Brasil precisa de um lockdown estrito a nível nacional. Passou da hora de um lockdown a nível municipal ou estadual. E quando eu falo em lockdown, eu me refiro a não sair de casa, só em caso de urgência. De esvaziar as ruas, mesmo. Só funcionar serviços essenciais.

Existiu uma época em que poderíamos até fazer confinamentos a nível municipal ou estadual, quando a pandemia no Brasil ainda era "muitas pandemias".

Explico: somos um país enorme e houve um momento em que tínhamos diferentes estágios da pandemia em diferentes localidades. Ou seja, medidas localizadas poderiam ser tomadas.

No estágio atual, essa possibilidade não existe mais. O país inteiro está à beira do colapso. Não adianta fechar um Estado e os outros continuarem abertos. E as pessoas transitando de um para outro.

O Brasil precisa retomar o controle sobre o vírus. O vírus está solto - e isso é urgente. Só assim vamos reduzir os casos e, por consequência, as mortes.

Outra coisa é vacinar a população.

Precisamos de planejamento e estratégia. Mas, infelizmente, não tenho esperança quanto ao governo federal sobre isso.

Fonte:https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56401307?xtor=AL-73-[partner]-[em.com.br]-[link]-[brazil]-[bizdev]-[isapi]


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