"A DESINFORMAÇÃO É O PARASITA DO SÉCULO 21",AFIRMA PESQUISADORA EM NOVO LIVRO

People reading fake news stock illustration (Foto: Getty Images)

“A desinformação é o parasita do século 21”, afirma pesquisadora em novo livro

  • POR GRAZIELA SALOMÃO (@GRAZISALOMAO)
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Especialista em estudos sobre mídias sociais, Pollyana Ferrari traz reflexões sobre como a tecnologia transformou a sociedade, principalmente na pandemia

A realidade anda parecendo surreal demais, né? Pandemia, isolamento socialfake news, discussões sobre fascismo. “A desinformação é o parasita do século 21”, afirma a jornalista e pesquisadora de mídias digitais Pollyana Ferrari. Depois que tudo isso passar (vai passar, acredite!), qual será o novo presente que construiremos?
Como a tecnologia é responsável por termos chegado até aqui e o que podemos esperar dela nesse futuro a curto prazo? “Ninguém veio a passeio, é preciso entender o que temos para hoje, respirar, fazer a leitura do contexto e seguir”, diz Pollyana, uma das mais destacadas estudiosas brasileiras na pesquisa das relações criadas entre homens e redes sociais, tema abordado na coletânea Nós – tecnoconsequências sobre o humano (Editora Fi) em versão totalmente digital e gratuita (para baixar, clique aqui).
Nos 10 capítulos, Pollyana e um grupo de pesquisadores do Comunidatas, liderado por ela na PUC-SP, trazem reflexões sobre nosso modo de viver, sobre fake news na política, apps de relacionamento (será que eles foram bons para os relacionamentos mesmo?), influência do Instagram e do Twitter, além de provocações sobre o que estamos construindo para nosso futuro. E a cada capítulo, uma proposta de trilha sonora para acompanhar. “Vivemos com música. Por que não nos livros também? Cada tema tem uma sequência que, sinestesicamente, foi pensada para embalar aquela discussão”, explica.

O título homenageia o romance distópico Nós, do escritor russo Ievguêni Zamiátin. Escrito em 1924, o livro serviu de inspiração para o clássico 1984, de George Orwell – tão falado nesses tempos pandêmicos – e mostra uma sociedade na qual o Estado exerceria um controle único sobre uma população totalmente vigiada por ele. Era a tecnologia a serviço do poder. E será que podemos usá-la de uma forma positiva na realidade de hoje? “Com fake news, manipulamos a população e  distorcemos a história. Estamos num momento crucial, de virada. É urgente. Ou entendemos que precisamos das redes sociais, dos bots, dos APPs, dos celulares para incluir cidadãos ou perderemos o trem para sempre”.

G: Nesse cenário da pós verdade e de fake news, qual é de fato o impacto da tecnologia?
P: O impacto é total. Vivemos uma guerra de bots. De um lado bots “do mal”, como os chamo, que escalonam a patamares inimagináveis a indústria do fake, espalhando desinformação, discursos de ódio, homofobia, machismo e terraplanismo, entre outros temas. E bots que fazem checagem de fatos, bots que barram e filtram fake news no Google, Facebook, Twitter; bots que ensinam idiomas, atendem clientes (SAC), entre tantos outros usos. Ou seja, aquele cenário previsto por William Gibson no livro “Neuromancer” tornou-se bem mais sombrio na realidade atual.
G: Chegamos no atual cenário de caos político e social por causa das fake news?
P: Em Como sair das bolhas, de 2018, e agora no Nós, explico que são vários os fatores que contribuem. Por exemplo, a falta de políticas públicas, a baixa escolaridade, a falência do sistema de saúde, a falta de investimento em educação, da fome, do avanço do fascismo, do consumo sem limite, dos discursos de ódio, do racismo e isso, misturado às fake news, que são o parasita deste século, dá esse resultado maligno. O parasita é o organismo que vive de e em outro organismo, dele obtendo alimento e não raro causando-lhe dano, o que poderia ser – a meu ver – uma das definições de desinformação. Hoje no Brasil, há pessoas que dizem que o nazismo era de esquerda, que as vacinas são ruins e que a terra é plana.
G: Muito se discute sobre como a tecnologia e as redes sociais deram espaços a opiniões vazias. O que antes era impossível de se dizer em público, hoje se pode porque sempre terão vozes na rede que corroboram com essas ideias. Você concorda?
P: Não sou contra os avanços tecnológicos, mas quando eles se desconectam do seu propósito de melhorar a vida humana, perde-se o pé de vez. O livro é quase um chamado. O filósofo polonês Zygmunt Bauman nos alerta em seu último livro Retrotopia [a utopia do passado] que a perda completa da esperança de alcançar felicidade neste planeta tem levado a buscas imateriais e tecnológicas que só reforçam a volta à bolha, o olhar individualista para o próprio umbigo. Quando perdemos a conexão com o humano, dançamos à mercê de governos, de políticos, de marcas.

G: Estamos perdendo a esperança?
P: O fake como estratégia política gera perda de esperança nas instituições, na imprensa, nos valores, nos fatos históricos, em tudo. Como diz o Papa Francisco e que reproduzo na introdução do livro: “A distribuição justa dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É uma obrigação moral. Se quisermos repensar a nossa sociedade, temos de criar empregos dignos e bem pagos, especialmente para os jovens. A fim de fazê-lo, é necessário criar modelos econômicos novos, mais inclusivos e equitativos, voltados não para servir à minoria, mas para beneficiar a gente comum e a sociedade como um todo. Isso exige mudarmos da economia líquida para uma economia social”.

G: Que futuro vocês discutem no livro?
P: Com fake news, manipulamos a população e distorcemos a história. Estamos num momento crucial, de virada. É urgente. Ou entendemos que precisamos das redes sociais, dos bots, dos APPs, dos celulares para incluir cidadãos, incluir minorias, promover a discussão de gênero, ensinar fact-checking nas escolas, ou perderemos o trem para sempre. Não voltaremos a uma vida sem celulares e sem redes sociais. Precisamos fazer o bom uso dessas plataformas. Ao mesmo tempo que privilegiamos o mercado local, o pequeno produtor, o abraço em detrimento da curtida; o slow living, enfim, a vida sem supérfluos. O diferente é o que nos faz crescer. A opinião contrária, a opção de gênero diferente da nossa, a casa diferente, a comida diferente. É o discordante que nos faz evoluir como ser humano. Não queremos para nós, nossos filhos, nossos netos um cenário do filme Blade Runner.
“A desinformação é o parasita do século 21”, afirma pesquisadora em novo livro (Foto: Divulgação)
Pollyana Ferrari, organizadora do livro e estudiosa brasileira na pesquisa das relações criadas entre homens e redes sociais (Foto: Divulgação)
G: Uma das consequências da tecnologia seria o esvaziamento das relações humanas?
P: O que nos faz humanos é a capacidade de amar. O livro propõe um olhar sob a complexidade deste tempo fluxo, caso contrário, estaríamos mais próximos daqueles personagens de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, para os quais perambular torna-se uma questão de sobrevivência. Ninguém veio a passeio, é preciso entender o que temos para hoje, respirar, fazer a leitura do contexto e seguir.
G: O que a pandemia e o distanciamento social, diminuído pela tecnologia, pode nos ensinar?
P: Acredito que a sociedade já estava pandêmica porque estamos doentes, caminhando sem rumo. Perdemos os limites do tempo: compramos, comemos, bebemos, teclamos, trabalhamos. Tudo é demasiado. Mas pouco falamos sobre sentimentosdepressãosuicídio, tristeza.  E se pouco falamos, também pouco estamos dispostos a ouvir o outro. A busca é sempre pelo sucesso narcísico. A pandemia expôs o que temos de melhor e de pior. Precisamos mudar. Tecnologia sempre será plataforma. É o humano que está doente.

G: Como trazer esses movimentos de protestos da internet de fato para a vida real?
P: Iniciar uma ação em rede é característica deste nosso tempo fluxo e muito válida. Mas, quando se trata de questões do humano, a rede precisa ser apenas o start. É preciso ganhar as ruas, os corações e mudar o agir. Joaquin Phoenix, que ganhou o Oscar deste ano de Melhor Ator por Coringa, num dos trechos de seu discurso, diz: “Quando usamos amor e paixão como nossos guias principais, nós criamos sistemas de mudança. Não quando cancelamos pelos erros do passado, mas quando nos guiamos para crescer, por redenção, esse é o melhor da humanidade”. Acredito nisso!

G: Depois de todos esses estudos, você acha que a tecnologia é positiva?
P: Se ela será positiva ou negativa, vai depender do que [nós humanos] fazemos com ela.

G: Como relacionar o "novo normal" pós-pandemia com a tecnologia?
P: Não gosto da expressão “novo normal” como se fosse resposta para a condição do dia a dia, pós-pandemia. Séculos de batalhas antes de nós e lutas por direitos sociais do século 20, tudo para desembocar em 2020 num “novo normal”: essa realidade vivida em telas destinada a uma pequena parcela da população. Nesta pandemia de Covid-19, entre 8 horas de home-office e rotina insana de aulas online, finalizei o livro e ele instiga as pessoas a pensar onde foi parar o humano.


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