PANDEMIA OBRIGA A CLASSE MÉDIA DO BRASIL A REVER GASTOS,HÁBITOS E PRIORIDADES E A USAR POUPANÇA PARA ENFRENTAR CRISE
Cláudia Vasconcellos, dona de um bufê, passou a oferecer um
cardápio de sopas para entrega. Foto: Agência O Globo
Pandemia obriga
classe média a rever gastos, hábitos e prioridades e a usar poupança para
enfrentar crise
Parcela
da população nas faixas de renda mais altas vai encolher em 276 mil domicílios
este ano, prevê consultoria
Glauce
Cavalcanti
26/04/2020
- 04:30 / Atualizado em 26/04/2020 - 13:47
RIO — Moradora da Barra da Tijuca, na
Zona Oeste do Rio, a carioca Cláudia Vasconcellos, de 53 anos, comanda há 25 um
bufê. Com o isolamento dos que podem ficar em casa para conter o avanço do
coronavírus, ela teve toda a agenda de pedidos que renderiam R$ 130 mil em
faturamento cancelada. Suspendeu as atividades da empresa em 19 de março, botou
as cinco funcionárias em férias. Dias depois, montou um cardápio de sopas para
entrega e passou a prepará-las na cozinha de casa, como no início de sua
carreira:
— O dinheiro da empresa é para manter o
negócio até que possamos voltar. A minha renda agora vem das sopas. É menos da
metade do que eu ganhava, mas estou feliz por ter encontrado um caminho — conta
ela, que assumiu as tarefas em casa e frisa já não ser de muitos gastos, embora
esteja avaliando comprar um aspirador de pó.
A reviravolta repentina na vida
financeira da empresária mostra como a pandemia do novo coronavírus aperta
também o bolso de quem está no topo da pirâmide socioeconômica no país. Os mais
pobres são os mais afetados pela crise econômica, mas, guardadas as devidas
proporções, as classes média e alta também sofrerão um forte impacto. Com a
paralisação de atividades econômicas, pequenos empresários e profissionais
liberais reorganizam os orçamentos, assim como trabalhadores assalariados que
terão remuneração e jornada reduzidas nas condições previstas na medida
provisória (MP) 936, elaborada para evitar demissões, e que prevê
contrapartidas do governo.
Adaptação ao ‘home office’
Até
o fim de 2020, o número de domicílios urbanos nas faixas de renda A e B1,
com rendimento superior a R$ 11.279,14, deve encolher em 276 mil, segundo
estimativa feita pela consultoria IPC Marketing para O GLOBO, considerando
previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI) de um recuo de 5,3% na economia
brasileira este ano. Esses mais ricos deixarão de consumir o
equivalente a R$ 70 bilhões ao longo do ano.
Esse recuo nas duas faixas de renda
mais alta equivale à perda de 11,8% dos domicílios em áreas urbanas na classe A
e de 3,79% na classe B1. Já na B2, com renda acima de R$ 5.641,64, haverá
avanço de 1,41%, com 140 mil famílias a mais.
—
A previsão é de a classe B2 crescer este ano, porque entram nela pessoas vindas
de A e B1— diz Marcos Pazzini, diretor da IPC Marketing. — As classes menos
favorecidas são as mais vulneráveis, mas não há preparo financeiro suficiente
para ninguém diante do que está ocorrendo. Há atividades que cessaram. Por mais
retaguarda financeira que se possa ter, o negócio ou a atividade profissional
está em xeque, exigindo rapidez de reação.
Juntas,
as classes A, B1 e B2 vão somar, segundo a estimativa, 23% do total de
domicílios urbanos no país este ano, ou 13,9 milhões, ante 23,2% no ano
passado.
Alem de arregaçar as mangas na
cozinha, Cláudia conseguiu um desconto de 50% no aluguel do espaço do bufê, no
Itanhangá, após uma renegociação. E está recorrendo à MP 936 para manter a
equipe após as férias, mas teme pelo futuro do negócio:
—
Numa economia como a nossa, eu já quase quebrei várias vezes. Já encolhi o
negócio para, depois, voltar a crescer. Mas nunca tinha vivido nada parecido
com uma guerra. Não vai voltar igual. Será preciso outro olhar, adaptação.
Graciela Pozzobon, 44
anos, dona da Cinema Falado Produções, viu sua remuneração cair pela metade com
o fechamento de teatros e a suspensão de eventos. Foto: Acervo pessoal / .
Na casa de Graciela
Pozzobon, de 44 anos e dona da Cinema Falado, que presta serviço de
acessibilidade comunicacional em cultura e entretenimento, a rotina teve de ser
revista. É que ela e o marido estão trabalhando em sistema de home office, mas é preciso conciliar o trabalho com a rotina dos dois
filhos do casal, de 4 e de 7 anos.
Graciela explica que, com a retração
nas atividades de arte e cultura no país nos últimos anos, ficou difícil fazer
reservas. Após o fechamento de teatros e a suspensão de eventos, a renda dela
caiu à metade.
—
Montei uma estrutura de trabalho em casa. Com a renda menor, nós dispensamos
nossa diarista, mantendo 50% do que pagávamos a ela. E assumimos todas as
tarefas domésticas: lavar, limpar, cozinhar. Estou fazendo pães, inclusive. A
gente se reveza no cuidado com as crianças para que os dois possam trabalhar de
casa. E compramos uma lava-louça, que foi uma forma de viabilizar o home office.
Miguel José Ribeiro
de Oliveira, diretor executivo da Associação Nacional dos Executivos de
Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), lembra que a classe média
chegou à pandemia com o orçamento já corroído. Agora, a crise também deteriora
as reservas de muitas famílias.
— A crise econômica
já vinha causando achatamento da renda da classe média. É uma camada que, com a
queda da taxa de juros, migrou de aplicações financeiras mais conservadoras
para outras de maior risco, como renda variável. Com a derrubada da Bolsa,
tiveram perdas expressivas.
O tributarista Ilan
Gorin observa que a parcela do seguro-desemprego paga àqueles que firmaram
acordos de suspensão de contrato ou redução temporária de salário e jornada faz
pouca diferença para quem tem maiores salários. A mudança não limita
necessidades básicas, mas compromete estruturas familiares caras, como
mensalidades escolares e planos de saúde.
“Perdemos a capacidade de gerar receita. Pena acontecer agora, quando
voltamos a crescer. Na crise, de 2014 e 2018, o faturamento recuou em 20%. O
comportamento do consumidor vai mudar de novo, não apenas pela restrição
financeira, mas pelos novos hábitos.”
CLEUSA
VALENÇA
Dona de um salão de beleza
Há profissionais que não têm a opção
de manter sua atividade a distância, caso da dentista Aline Areas, de 47 anos e
moradora da Barra. Com os dois consultórios fechados, teve sua renda zerada,
embora a despesa mensal de R$ 8 mil com os espaços e os equipamentos esteja
mantida. O jeito foi recorrer ao dinheiro que tinha guardado.
—
Como estou usando minhas economias, espero que isso não dure muito tempo. Em
casa, eu e meu marido dividíamos as contas meio a meio, mas, com a crise, parei
de pagar a minha metade. Estamos evitando pedir comida fora, estou cozinhando
tudo. Mas isso ampliou os gastos no supermercado — conta Aline, sublinhando que
a viagem em família já programada foi cancelada, entre outros gastos
planejados.
Mais tempo livre
Cleusa
Valença, de 68 anos, está há 40 à frente do salão de beleza La Vie en Rose, na
Gávea, na Zona Sul, onde emprega 54 profissionais. Os 20 contratados diretos
foram colocados de férias este mês, quando ela realizou uma desinfecção das
instalações, trocou estofados e adotou outras medidas para reabrir assim que
for permitido.
—
Nunca vivi situação semelhante, nem na época do Plano Collor. Perdemos a
capacidade de gerar receita. Pena acontecer agora, quando voltamos a crescer.
Na crise, de 2014 e 2018, o faturamento recuou em 20%. O comportamento do
consumidor vai mudar de novo, não apenas pela restrição financeira, mas pelos
novos hábitos.
Assim como suas clientes de classes
privilegiadas, Cleusa também já mudou seu comportamento. Ela e o marido dispensaram
a empregada de ir ao trabalho, mesmo mantendo o salário dela, e dividem as
tarefas do lar. A empresária lamenta não poder ver o neto, que mora a um
quarteirão de distância, mas comemora ao menos agora ter tempo para retomar
hábitos como ler, estudar e bordar, que sempre perdiam na lista de prioridades
para o trabalho. Só não abriu mão da corrida, treinando no pequeno pátio do
edifício em que mora, para aliviar o estresse. (Colaborou Vitor da Costa, estagiário sob orientação de
Glauce Cavalcanti)
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