Apoiadores do
presidente Jair Bolsonaro em uma carreata de protesto contra as medidas de
isolamento social para o combate à covid-19 recomendadas pelo governador de São
Paulo, João Doria.AMANDA PEROBELLI / REUTERS
Pandemia expõe “necropolítica à brasileira” e uma certa elite
que não vê além do umbigo
Para
psicanalista Christian Dunker, desigualdade provoca distorção da realidade que
atinge parte importante das classes altas
"O
pico da doença [da covid-19] já passou quando a gente
analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país
com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo.”
A fala de Guilherme Benchimol, presidente da corretora XP, uma importante peça
no mercado financeiro brasileiro — e um dos executivos mais engajados no
movimento Não Demita, incentivando empresas a manter suas equipes durante a
pandemia —, aconteceu durante uma transmissão ao vivo do jornal O
Estado de S. Paulo nesta semana e causou uma enxurrada de críticas e
revolta nas redes sociais. Ao fatiar a gravidade da pandemia do novo
coronavírus entre uma crise de pobres e outra de ricos, o bilionário mostrou a
faceta mais caricata da elite brasileira, que se põe à parte frente aos mais de
8.500 mortos em decorrência da doença, o que coloca o país na 6ª posição em número de
óbitos.
O próprio
Benchimol veio à público se desculpar pela frase “mal construída”, que, segundo
ele, foi tirada do contexto e não representa o que acredita. Mas na medida em
que a população mais rica começa a se sentir confiante de que a maior ameaça―
para eles ― já passou, um movimento perigoso avança no Brasil, na visão do
psicanalista e professor da USP, Christian Dunker. “Há uma negação do que se
sabe de outros países: de que quando chega o ponto mais crítico, o ponto de
saturação do sistema de saúde público e privado, não adianta você ter dinheiro
ou ser de uma classe mais alta porque não haverá sistema disponível”, afirma.
Segundo a Confederação Nacional de Saúde (CNS), em ao menos seis Estados já há
saturação dos sistemas públicos e privados de atendimento.
O
psicanalista afirma que a onda negacionista e a percepção de
estar fora de perigo abrange, sim, uma parte importante da elite nacional, e
tem como base uma crença dessas pessoas de que são excepcionais, fora de grupos
de riscos, já que são privilegiados. Por isso, podem relaxar regras de
isolamento e até promover encontros com amigos. “Escuto muito isso no
consultório. Que as pessoas se sentem especiais, que são saudáveis, atletas como Bolsonaro e que isso é uma gripezinha. O
presidente repetiu à exaustão esse discurso de negação da realidade assim com
várias lideranças religiosas.”
Dunker
ressalta que essa narrativa se instala mais fortemente na sociedade brasileira
pela negação da desigualdade social já existente. “Esta é a
realidade primeira da qual nós não queremos saber”, pontua. Em seu livro Mal-estar,
sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros, o
psicanalista explica como, há anos, as classes média e alta lidam com o
conflito: com a construção de um muro e a designação de seus síndicos,
responsáveis por manter em dia a dia de seu status quo. “Essa ideia
de negação do conflito e da diferença já estava lá em 1970, quando inventamos
um Brasil em que a gente aparta a diferença. E acho que agora estamos
regredindo para uma maneira de ver o mundo, até favorecida pelas medidas
sanitárias, em que o mundo é o tamanho do seu condomínio”, diz.
A vida privada
dos condomínios é também uma janela que expõe abismos sociais —em geral, quanto
maior a renda, maior a chance de realizar trabalho remoto. Em meio à escalada
do coronavírus, os locais, em geral, mudaram regras de convivência, com
restrições de acesso a visitas e entregadores. Áreas de lazer e academias de
uso coletivo também foram interditadas, mas, já passadas algumas semanas de
isolamento, embates começam a ser travados entre vizinhos para afrouxar as
medidas, o que pode colocar em riscos moradores, mas também funcionários que
seguem trabalhando. “Esse trabalhadores nunca deixaram de ser invisíveis, assim
como os moradores de ruas, pedintes, os informais, os precarizados. Eles são
formas de vidas que não fazem parte dos ‘outros’. Mas, no contexto da pandemia,
são também elementos que transmitem o vírus, o que se choca muito com essa
administração imaginária do mundo ”, lembra o psicanalista. Nesta quarta,
provocou debate o fato de o serviço doméstico ter sido considerado essencial em
Belém, que está em regime de bloqueio total de atividades não essenciais (lockdown), já
que os profissionais ficariam impedidos de fazer a quarentena ou cuidar
da própria família por causa da ausência de creches e escolas.
O prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho (PSDB), argumentou que pessoas, como
profissionais de saúde, "precisam, pela necessidade de trabalho essencial,
ter alguém em casa”.
Necropolítica já
estava aí
Na visão de
Christian Dunker, a pandemia trouxe mais à tona a “equação obscena” da escolha
entra a vida ou a economia fortemente martelada pelo empresariado. O grupo, por
sua vez, tem respaldo ativo de Jair Bolsonaro. O psicanalista frisa que o
movimento apenas escancara a ideia de ter vidas matáveis que
já existia na necropolítica à brasileira, diz ele,
citando um conceito desenvolvido em 2003 pelo intelectual camaronense Achille
Mbembe, que questiona os limites da soberania do Estado na escolha de quem deve
viver e quem deve morrer. “Neste momento de impasse e crise da economia, vai se
comunicar com as classes mais elevadas e populares a ideia de que é melhor
continuar trabalhando e ganhando do que morrer de fome. Apesar do aumento do
sofrimento e da crise alimentar, obviamente a gente teria medidas de suporte
para isso sem chegar a essa equação”, afirma.
A insistência
no argumento de que é preciso privilegiar o funcionamento da economia em
detrimento das medidas de isolamento social ficou evidente de novo nesta
quinta-feira. Em mais um movimento para pressionar a retomada da atividade
econômica, o presidente levou uma comitiva de empresários e ministros para a
sede do Supremo Tribunal Federal (STF) para alertar o presidente da Corte,
Antonio Dias Toffoli, sobre os impactos que o isolamento social tem gerado na
iniciativa privada e como a paralisia econômica pode transformar o Brasil “em
uma Venezuela”. “Nós devemos nos preocupar com economia, sim. Mas também com
empregos”, declarou Bolsonaro. “Emprego é vida.” Na ocasião, empresários
procuraram chamar a atenção dizendo que as “indústrias estão no UTI”, alheios
às filas de pessoas que estão morrendo por falta de leitos em vários pontos do
país.
Sairemos
melhores da pandemia?
A disputa
sobre o presente e como será o futuro pós-pandemia está por toda parte, não só
na política. Se há os negacionistas, há também os que encaram a crise global
econômica e sanitária como uma espécie de purgação, limpeza ou uma catarse que
o mundo está atravessando. Na meio disso, as marcas e empresas tentam se
sintonizar e se atrelar inclusive a ações positivas do combate à doença ou à
crise econômica, mas nem sempre o objetivo é alcançado. Nesta semana, a marca
carioca Osklen, do grupo Alpargatas, lançou uma campanha em que vendia duas
máscaras de proteção por 147 reais. Para cada kit vendido, ela doaria uma cesta
básica no valor de 70 reais para a comunidade do Jacarezinho, na Zona Norte do
Rio. A campanha, no entanto, recebeu fortes críticas nas redes sociais, já que
o preço foi considerado abusivo pelos usuários. Máscaras são tecido são
vendidas por menos de dez reais em São Paulo. Muitos questionavam como a marca
queria lucrar em um item essencial para prevenir a doença. A empresa
justificou-se dizendo que o projeto foi pensado com uma margem de retorno “que
apenas viabilizaria a operação”, além da doação de comida, mas a força da
crítica a fez recuar e "repensar o projeto”.
Para o
psicanalista Dunker, o momento poderá, de fato, levar as pessoas a dois
caminhos. Um de progredir para uma super individualização. “Eu tenho recurso,
eu preciso salvar meu lucro, eu pago respirador, eu sou especial e posso sair
na rua”. E outro de maior solidariedade. “A situação impõe que as pessoas olhem
para o lado, se organizem a ajudar quem está numa situação pior, de se
importarem com a coletividade”. Dunker acredita que há esperança de que a
sociedade saia “um pouquinho melhor” dessa nova realidade imposta, mas alerta
que o discurso de que o mundo se transformará em outro muito melhor,
reverberado por artistas e propagandas é falacioso. “Porque está dizendo que eu
preciso de uma coisa muito grande para a verdadeira transformação acontecer. As
pequenas transformações surgem das pequenas diferenças”.
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