Homem pedala
por uma rua deserta diante do ‘skyline’ de Manhattan.MARK LENNIHAN / AP
Mundo depois da Grande Reclusão terá de lidar com populismo e
decisões sobre ajudas públicas
Passado
o alerta sanitário, os Governos deverão dar sinais de contenção; terão de
ajustar o cinto
Um filme será tão bom
quanto o vilão que o protagoniza: Hitchcock nunca falha. “A cobiça é boa”, dizia no final dos anos
oitenta Gordon Gekko, essa espécie de Norman Bates de Wall Street. A
exuberância irracional dos mercados protagonizada pelos Gekko do capitalismo
canalha inflou durante décadas uma superbolha que explodiu com o Lehman Brothers. Gekko e seus correlatos políticos, encabeçados pela
revolução neocon de Reagan e Thatcher, estavam destinados a ser os vilões de
nossas vidas: as cicatrizes da Grande Recessão –uma crise em um século, nos
diziam os historiadores; um filmão– continuam aí. Os pessimistas pensavam que
as réplicas desse terremoto viriam na forma de crises financeiras (mais
Gekkos), políticas (mais Trumps) ou climáticas, na forma de uma terrível
vingança da natureza. Mas não. Um vírus vindo da China se erigiu como novo
supervilão. Em alguns meses infectou quatro milhões de pessoas e matou 300.000,
algo só imaginável em ficções pós-apocalípticas, em 190 países. Colapsou os sistemas
de saúde e levou à adoção de medidas extremas de distanciamento social que colocaram a economia global em hibernação; em um estado de coma induzido do qual não sabemos como
vamos acordar.
Escrever
sobre o coronavírus é como respirar ar viciado.
Como mascar vidro. Para além dos dados, há semanas as sociedades tremem de medo
por causa de uma crise de caráter circular e estrutura de pesadelo. A demanda
global afunda. As grandes economias caem a taxas de dois dígitos. O confinamento
destruiu os canais de produção, obrigou ao fechamento de fronteiras, provocou
um aumento do protecionismo. Levou milhares de empresas à quebra e desencadeou
uma hecatombe nos mercados de trabalho; somente nos EUA destruiu 33 milhões de empregos desde
março. O colapso dos mercados de matérias-primas tem proporções
bíblicas. Este último trimestre do diabo já é a recessão mais fulminante e
profunda da história: a destruição de riqueza e de emprego em quatro meses
equivale a quatro anos de Grande Depressão.
Mas o vírus
também provocou uma resposta política sem precedentes: a China começa a se
recuperar e as curvas de contágio já não desenham uma hipérbole maluca como a
da faca de Bates na ducha de Psicose. A crônica a seguir é uma coleção de fatos
e conjecturas sobre o que está por vir, apoiada na análise de uma dezena de
especialistas de envergadura mundial. Um breve resumo? Estamos apenas no final
do começo da crise. E andamos às cegas: o filósofo Slavoj Zizek afirma que “não haverá
nenhum retorno à normalidade”, mas o romancista Michel Houellebecq, pelo
contrário, diz que o mundo será “exatamente igual”.
Batalha de
ideias. A
resposta política a uma crise desse calibre tem três fases. Primeira: whatever
it takes, open bar de gasto enquanto durar o período de
confinamento para conter os contágios e garantir que continuará havendo algo
semelhante a uma economia quando o pior passar. Isso se traduz em mais dívida
pública, em socialização das perdas, mas é para isso que existe o Estado e os
bancos centrais, para quando tudo o mais cai. A segunda fase está prestes a
chegar: serão aprovados estímulos milionários para revitalizar uma economia
mortiça, mas mais afinados (nos setores-chave e nos mais necessitados) para não
prejudicar a sustentabilidade da dívida. Isso requer certo gradualismo ― ir
fechando a torneira à medida que a situação se estabilizar ― e habilidade com o
bisturi: é preciso acabar com a hibernação no momento certo, para que não morra
mais tecido empresarial do que o imprescindível; mas não convém se precipitar
pois isso provocaria um novo surto do vírus. A última fase é a das más
notícias: em algum momento, quando houver algo parecido com a normalidade, os
Governos deverão dar sinais de contenção; terão de ajustar o cinto. Falta muito
para isso se nada de estranho acontecer.
A coisa mais
complicada é fazer tudo no tempo certo. “Para sair do confinamento é necessário fazer testes em massa e rastrear as infecções:
somente assim se pode impedir um novo surto fatal para a economia. Mas o
fundamental é não se precipitar na retirada dos estímulos. A Europa se
equivocou uma década atrás por saturação de ideologia e falta de mecanismos de
solidariedade. Repetir o erro seria catastrófico”, diz Barry Eichengreen, da
[Universidade da Califórnia] Berkeley. “A UE terá de encontrar mecanismos de
mutualização. Se não conseguir fazer isso com milhares de mortos sobre a mesa,
podemos estar diante de outra década perdida ou diante de um futuro incerto do
euro”, diz Ken Rogoff, da [Universidade] Harvard. O historiador Harold James
ressalta que o que for feito com essa montanha de dívidas “marcará a vida de
duas gerações”. E o ex-ministro grego Yanis Varoufakis vê o futuro negro: “A
única coisa que a Europa faz é conceder créditos aos países mais estressados.
Isso é não ter aprendido nada. Tenho pavor de pensar que a qualquer momento em
2021 a reencarnação da troika voltará a Madri ou Roma impondo austeridade por
mandato de Berlim”. A luta para impor a narrativa começou: a distribuição das
cargas dessa crise dependerá dessa batalha de ideias.
Otimismo
(ou não).
Os mais esperançosos dizem que já vimos o pior. O confinamento colocou a
economia em coma induzido, “mas se a dose de anestesia [proteger as rendas e o
tecido produtivo] for adequada, a recuperação será forte”, diz o economista
Thomas Philippon. As previsões apontam para quedas do PIB de 9% este ano na UE
e nos EUA, seguidas por recuperações de 6%. O mais provável é uma trajetória em W, com
uma recuperação no terceiro trimestre seguida de uma ligeira recaída no quarto
e mais impulso em 2021. Tudo isso depende de que os políticos não se assustem
com o relato que lhes for imposto. E também que os bancos saiam desta com todas
as penas. Quando uma crise econômica é sobreposta a uma crise financeira, a
capacidade destrutiva se multiplica. A Alemanha dá avais de 100% para que seus
bancos continuem concedendo créditos; a Espanha, de 80%; se as empresas
quebrarem, os bancos alemães estarão mais protegidos. “Essa é a diferença entre
ter mais ou menos força fiscal”, explica Charles Wyplosz, do Graduate
Institute. Existem outras batalhas semelhantes: as bolsas caíram um terço em
fevereiro e março, mas com as ajudas dos bancos centrais recuperaram a metade.
Um furacão financeiro seria uma hecatombe agora, mas nada é grátis: a contrapartida
é que a fissura entre os mercados e a economia real está aumentando. As
implicações políticas desse resgate encoberto são formidáveis.
Luta pelo
poder (e pela grana). Os primeiros sintomas do nacionalismo econômico estão aí:
protecionismo em diversas formas. As crises são brutais mecanismos de
redistribuição de poder e riqueza. A batalha pela hegemonia entre a China e os EUA depende
em parte de como cada um enfrentar esse vírus. E algo semelhante acontece na
Europa: a crise também provocará uma formidável redistribuição. Isso aconteceu
há 10 anos. A Alemanha está novamente mais bem equipada e começou a injetar
dinheiro em suas empresas: “Sem uma estratégia europeia comum a crise causará
graves distorções no mercado único e enormes divergências entre os parceiros,
que podem desestabilizar o euro”, diz o analista Lorenzo Codogno.
Espanha:
golpe triplo. A crise atingiu onde dói mais. A Espanha é o segundo país do
mundo com mais infecções: o sistema de saúde, uma das joias da coroa, é menos
sólido do que parecia. Além disso, as condições iniciais são piores: Rajoy e
Sánchez, em 2019, desperdiçaram cinco anos de crescimento e quase não há
colchão fiscal. E a crise bate forte em setores importantes como o turismo (14%
do PIB). “É por isso que vocês devem pressionar na Europa para não repetir
erros: assim que o pior passar, os falcões voltarão a exigir cortes. Há 10 anos
o desemprego na Espanha ultrapassava 25%. Se a UE voltar a se equivocar, esse
número será superado em vários países e podemos estar diante de explosões
políticas como não vimos em um século”, diz Mark Blyth, da [Universidade de]
Brown. O supervilão, em suma, é o vírus. Mas seu cúmplice são as ideias
econômicas (e políticas) equivocadas.
BÁRBAROS ÀS
PORTAS
Faz alguns
meses havia ruidosos protestos de Hong Kong até Santiago. O coronavírus os varreu. No dilema
entre liberdade e segurança, o mundo escolhe a segurança: o medo permitiu que
os Governos ocidentais estabelecessem medidas extremas que restringem as
liberdades sem que as sociedades levantem a voz. Cerca de 80% dos espanhóis
apoiaram um dos mais rígidos confinamentos do mundo, segundo as pesquisas. Mas
cuidado com os desdobramentos políticos: “Saímos da Grande Recessão com os
populismos desatados; da Grande Reclusão é bem possível que saiamos com os
populismos ainda mais fortes. As pessoas estão assustadas, desorientadas. Se
houver erros políticos esse medo se transformará em angústia, em irritação”,
aponta Charles Kupchan, do Council on Foreign Relations, o think tank mais
influente do mundo.
O historiador
da [Universidade] Columbia Adam Tooze prevê que sairemos desta “mais pobres,
mais endividados, mais assustados” e “em condições de incerteza radical os
terremotos sociais e políticos são mais prováveis”. É possível que surjam
populismos da esquerda (no estilo Syriza), de direita (no estilo Salvini) ou
soluções ‘à la Macron’ (centristas tecnocráticos). Também é possível que a
centro-esquerda e a centro-direita tenham aprendido algo com os despropósitos
dos últimos tempos: essa é uma das grandes caixas pretas da covid-19. “As
grandes crises provocam crescendos populistas, mas não sabemos o que as
pandemias provocam, apesar da insistência desagradável dos pessimistas”, diz
Thomas Philippon, da Stern [School of Business].
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