EVENTO E VERDADE: APONTAMENTOS SOBRE O SUJEITO EM ALAIN BADIOU

 

Imagem: The Crouching Man, Anthony Gormley, 2010, Holanda


Evento e Verdade: Apontamentos sobre o sujeito em Alain Badiou


Por Daniel S. Mayor Fabre

Aborda-se aqui um panorama geral da filosofia de Alain Badiou para traçar alguns apontamentos sobre a originalidade de seu conceito de sujeito. Através de uma problematização do sistema de Badiou, apresenta-se contraposições a Slavoj Zizek, Althusser e Lacan.

Para compreender o conceito de sujeito na filosofia de Alain Badiou é preciso antes compreender o que o próprio denomina como A aventura da filosofia francesa no século XX, título de seu recente livro[1]. Badiou é, antes de tudo, um produto deste grande movimento filosófico francês que se operou a partir dos anos cinquenta, no qual a fecunda relação entre marxismo e psicanálise, por um lado, e ciência e filosofia por outro, resultou na diversa produção de autores como Foucault, Deleuze, Althusser, Rancière, entre tantos outros, que influenciaram e influenciam amplamente os debates contemporâneos. Na obra de Badiou, após o que Bruno Bosteels afirma ser a viragem do maoísmo para a matemática[2], viu-se surgir em Teoria do Sujeito e posteriormente em Ser e Evento e Lógicas dos mundos, um projeto filosófico no sentido clássico do termo, ou seja um projeto total, de uma filosofia completa sobre o ser, o mundo e a existência[3]. Não é por menos que Zizek assinala que “uma figura como Platão e Hegel anda em meio a nós”.
Entretanto, proponho que para adentrar a filosofia de Alain Badiou é preciso ter em mente antes de tudo que ele é, como o próprio diz, um “radical de esquerda”[4]. E é desse ponto de vista que se deve lê-lo, sob pena de se perder em fantasias ideológicas e idealistas sobre a matemática, filosofia antiga, psicanálise, etcetera, ou de, simplesmente, desvirtuar toda sua obra. Portanto, a filosofia de Badiou é antes de tudo uma filosofia (como talvez nunca se pode dizer em termos filosóficos) comprometida com a transformação do mundo, com o advento do novo.
O papel da Filosofia
Tendo em vista o papel da filosofia, talvez se possa dizer que Badiou tenha sido um dos únicos a perceber uma outra leitura da tese onze sobre Feuerbach de Marx: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”[5]. É quase imperceptível, ou poucas vezes lembrado, que esse filomena marxista pode se dirigir também ao filósofo, e não apenas ao proletariado ou aos cidadãos, por exemplo. Pode-se ler esta tese tendo que os filósofos não importam, pois o que é necessário é mudar o mundo. Ou pode-se ler esta tese tendo que precisamente os filósofos se equivocaram passando tanto tempo interpretando o mundo de diferentes maneiras, e não se ocuparam da tarefa de muda-lo, que é o que importa. “Busco, pura e simplesmente, dar uma razão à possibilidade da mudança, à possibilidade de passar de um certo regime de leis do que é para um outro regime, pela mediação do protocolo de uma verdade e de seu sujeito”[6]
Badiou outorga um papel central a filosofia, não apenas porque é formado filosofo. A contemporaneidade é marcada por uma relativa decadência do papel da filosofia, de sua legitimidade e validade. O futuro da filosofia é ser reduzida a uma “voz sem significado e sem destino”[7]. Não apenas a chamada pós-modernidade afirma a todo instante a morte da filosofia, como o século XX viu surgir novas disciplinas do conhecimento, como a antropologia ou a psicanalise, que, sob vestes cientificas, ocuparam o lugar que antes era conferido a filosofia enquanto campo do saber. Opondo-se a esse movimento histórico, Badiou busca reabilitar essa decadência, dando a filosofia um lugar e um status próprios no que foi objeto de seu próprio sistema filosófico: o ser e o evento.
Matemática e Ontologia
A tese de que a matemática corresponde a ontologia, ou que a matemática é a língua que descreve o ser-enquanto-ser, é sem dúvidas algo crucial na compreensão de seu sistema. Em Manifesto pela Filosofia, Badiou afirma que a filosofia requer condições[8], de domínios que não lhe sejam próprios para sua existência. É somente após um evento ocorrido em outro campo que não o filosófico que a filosofia age. Assim como Hegel, Badiou também entende o papel da filosofia como o voo de minerva ao crepúsculo, a filosofia agindo após o acontecimento. Toda filosofia surge após um evento, como uma grande descoberta cientifica. Assim foi a descoberta grega das matemáticas orientais e a filosofia do velho Platão e Aristóteles, com Galileu e Descartes, Newton e Kant, e assim por diante. Deve-se recordar que para Badiou, diferentemente de uma primeira fase de Althusser, que depois reviu sua posição[9], as condições da filosofia não se reduzem à ciência, elas incluem as artes, a política e o amor, como veremos adiante. O papel da filosofia está atrelado a nominação dos eventos, compondo seus traços indefinidos em determinada situação.
Por esse aspecto, a tese estabelecida em torno da correspondência entre matemática e ontologia é um ato filosófico relacionado a descoberta matemática de Georg Cantor sobre a axiomatização da noção de múltiplo e da hipótese do continuo.[10] A teoria dos conjuntos cantoriana foi o começo de um profundo debate teórico matemático ao longo dos últimos cento e quarenta anos. O desenvolvimento do evento cantoriano foi realizado por diversos autores, como Husserl, Zermelo, Frankel, Goddel, Cohen, dentre outros, que certamente nunca estiveram no centro das atenções das ditas ciências humanas e em raras oportunidades ocuparam a filosofia propriamente dita. A filosofia de Badiou é o voo de minerva do evento cantoriano, sua tradução.
E porque se pode dizer que a teoria dos conjuntos é um evento nas matemáticas? Pois a própria linguagem matemática tem como seu fundamento lógico-teórico esta teoria. Um círculo em um quadro branco é uma forma abstrata e gráfica de demonstrar uma unidade, seus elementos e partes, o que pertence ou não a esta unidade, o que está incluído ou excluído. A divisão que estabelece entre o que está dentro e o que está fora é a própria formação do que é um. Os conjuntos podem ter intersecções entre si, fazendo com que suas partes possam ser também as partes de outro conjunto. A pertença e inclusão de determinado múltiplo em determinado conjunto é uma questão de como o um conta seus subconjuntos, se como elementos ou como partes, subconjuntos dotados de certa unidade. Os fundamentos abstratos da formação numérica e das operações matemáticas não se limitam a teoria dos conjuntos, mas certamente derivam dela. E os paradoxos que o desenvolvimento desta teoria conduziu foram cruciais para uma transformação teórica da matemática enquanto campo apartado do conhecimento.
A tese de correspondência entre ontologia e matemática resta mais evidente quando temos em mente o desenvolvimento histórico da matemática concomitante ao da física. Lembremos não apenas a imagem de Pitágoras, mas também a de Galileu e Newton. O desenvolvimento das matemáticas e da física nunca esteve totalmente dissociado, como talvez o seja na contemporaneidade. Newton, por exemplo, estabelece as leis da física moderna, porém é também quem desenvolve o cálculo das integrais e derivadas, a partir da própria conjuntura histórica da matemática e da física na qual vivia. Tomada a relação entre física e matemática resta mais clara a tese de que esta é a linguagem que descreve o ser-enquanto-ser, que ela é o que a filosofia reconhece por ontologia. O ser, o que é, se formalizado, é o que a matemática diz ser.
Esta tese não deixa de ser uma arma contra pensamentos conservadores calcados em um suposto progresso tecnológico e das ciências exatas, que não são outras do que as que se valem da linguagem matemática na análise de seus objetos. Badiou ressalta em diversas oportunidades que não buscou fazer outra coisa que apresentar e demonstrar o que as matemáticas já tinham estabelecido anteriormente.[11]
É importante também considerar que no período em que Badiou desenvolve sua filosofia o pensamento francês – em especial o marxismo e a psicanalise – estava no auge de um longo processo de ‘abstratização’ e formalização de suas ciências. Influenciados pela epistemologia de Bachelard, tanto Althusser como Lacan procedem com o corte epistemológico na obra de Marx e Freud, respectivamente, desvendando o núcleo científico destes novos campos do conhecimento, a história e o inconsciente. Lacan em especial, passou a desenvolver abertamente uma relação com a matemática, investigando a formalização das relações entre o sujeito e o inconsciente estruturado como linguagem, como, por exemplo, com a transcrição dos mitemas freudianos em seus famosos matemas, ou em seu uso da lógica de Frege. A formalização teórica deste período, um processo de ‘abstratização’ das relações e determinações, certamente influenciou e justifica a tese de que a matemática é a linguagem que descreve o ser-enquanto-ser por excelência.
Badiou defende que desde sua origem em Parmênides a ontologia tem um estatuto matemático. É curioso notar que o diálogo de Platão sobre o tema se denomina justamente: Parmênides, o Uno e o Múltiplo.[12] Um diálogo em que se vê claramente a caracterização do ser-enquanto-ser como um problema de matematização do que é e não-é, do paradoxo entre um e múltiplo. Para Badiou a verdadeira dialética não é entre um e múltiplo, esta oposição faz parte da própria ontologia, é de dimensão da estrutura e das formas de apresentação do ser. A verdadeira dialética badioudiana é entre o ser e o evento. É a relação entre a estabilidade e concretude do mundo ontológico e a irrupção dos acontecimentos que transformam as coisas, e reconfiguram a situação. Não se trata de uma intrusão de outro ‘conjunto’ na ontologia do que é, mas de uma irrupção mais bem característica da inconsistência inerente das estruturas do ser, da condição de múltiplo de múltiplos do ser. O evento é, portanto, o verdadeiro não-ser, a irrupção da inconsistência inerente ao que é.
Ontologia matemática
O ser para Badiou se sustenta na ordem positiva ontológica e em sua multiplicidade infinita. O ser, entretanto, ao se apresentar em determinada situação ou mundo, está estruturado. Em termos lógicos há, de início, uma multiplicidade pura, que não está ainda simbolicamente estruturada e que é notada com a inconsistência dos múltiplos que não apareceram, ou não foram ainda apresentados em determinada situação. Esta multiplicidade pura não é de forma alguma ‘um’, uma vez que para essa instancia inconsistente, ainda não houve conta, característica fundamental do que é um.[13]
Um múltiplo consistente seria justamente o que Badiou designa como um conjunto, uma vez que aparece, é contado por um e assim, apresentado. Uma situação ou um conjunto são múltiplos consistentes que já estão sempre estruturados por uma conta por um. Um múltiplo é consistente e, portanto, é apresentado na situação em virtude de sua estrutura, que está relacionada com a conta que uma unidade lhe aplica. É precisamente essa estrutura do próprio múltiplo consistente o que possibilita ser contado por “Um” novamente, por uma segunda estrutura que Badiou denomina metaestrutura.[14] Ou seja, todo múltiplo consistente e representado tem por definição uma reduplicação de sua estrutura. Para ser contado por um pela metaestrutura da situação, deve já apresentar em si uma estrutura. Quando uma situação qualquer é então “contada por um” novamente, identificada por esta segunda estrutura, temos o chamado estado da situação. Este redobramento da estrutura dos múltiplos consistentes que Badiou denomina “estado da situação”, brincando com a expressão “estado das coisas” e o sentido político-jurídico do Estado.
Para o filosofo francês, o múltiplo é sempre múltiplo de múltiplos. Seu estatuto não está relacionado ao um, mas ao vazio. Se ao um o fora, não haveria evento e o mundo seria uma constância universal. “Os múltiplos que a ontologia apresenta são todos tecidos do vazio, e são qualitativamente muito indistintos.”[15] A multiplicidade pura será contada por um, porém esta conta sempre surge como um suplemento ulterior, que se passa após a apresentação bruta. Inicialmente o múltiplo é uma inconsistência sem estrutura, apresentando a comunicação entre os conjuntos e a desordem anárquica do “universo conjuntístico” no plano formal da pura apresentação.
Considerando o vazio como nome próprio do ser[16], como elemento minimal constitutivo de tudo o que existe, tais múltiplos que aparecem na situação nem sempre estão igualmente representados no estado da situação. Há uma discrepância entre as estruturas, em função do chamado teorema do excesso, de origem matemática, que não convém desenvolvê-lo por completo aqui. O estado sempre excede de alguma maneira a situação, nunca corresponde totalmente a ela. Importa saber que um múltiplo pode se apresentar em uma dada situação, porém não estar representado no estado. Estes múltiplos, Badiou denomina como singulares. Já aqueles que se apresentam na situação e também estão representados no estado, estes seriam os múltiplos normais; e por fim haveriam os múltiplos que não se apresentam na situação, porém estão representados no estado, múltiplos estes que Badiou denomina como excrecências.[17] Cada estado da situação envolve, portanto, algum elemento de excesso, em relação com suas partes. Ele não simplesmente representa a situação existente, há sempre uma decalagem em relação a situação. Ou seja, o estado é sempre necessariamente “excessivo”, não simplesmente representa o que está apresentado, ele age intervindo violentamente sobre o que representa.
Evento
O desenvolvimento da ontologia badioudiana, portanto, deriva da teoria dos conjuntos de Cantor e de seus desenvolvimentos pela matemática ao longo do século XX. Se esta ontologia demonstra a estrutura do ser, de tempos em tempos, e em campos específicos – nunca os da natureza – surge de forma totalmente contingente e imprevisível o evento, que é algo situado fora do alcance do ser múltiplo, inacessível ao conhecimento. Na realidade o evento é precisamente a negação do ser, aquilo que não pode ser contado, identificado ou compreendido. Valendo-se desta oposição, Badiou separa necessariamente o saber, o conhecimento, do que é a verdade.[18] A verdade não é da ordem do conhecimento e do saber, estes são próprios da ontologia, do-que-é, enquanto a verdade é da ordem do evento. É uma tese fundamental de Badiou, que apresenta grandes consequências em sua teoria do sujeito, pois este não é um sujeito do saber, do conhecimento, mas da verdade.
Por outro lado, o evento é a irrupção do vazio inerente à estrutura do ser. O evento não é algo exterior a ontologia, uma intervenção do além. O evento é parte da própria situação, pois deriva da irrupção do vazio inerente ao múltiplo de múltiplos, e assim do excesso inerente ao estado sobre a situação. Em suma, o evento é a apresentação da inconsistência inerente de toda situação, inconsistência que o estado da situação a todo instante reprime. O evento é a verdade da situação, revelando suas incongruências e falhas. Por exemplo a revolução russa, enquanto evento político, revelou as inconsistências da sociedade russa tzarista, as falhas do antigo regime e as “mentiras” do governo de Kerensky. Já Marx, enquanto evento da ciência, demonstrou como a aparência da troca de mercadorias generalizada da sociedade capitalista escondia a exploração de uma classe por outra através do mais-valor. O estado da situação busca a todo instante suturar o evento, impedir que este apareça na situação.
O evento possui uma série de determinações que lhe são próprias, estando sempre localizado em uma situação tal. Nela se dispõem os seus traços propriamente ditos, sua denominação (nominação do evento, simbolização dos que o vivem), seu objetivo (uma sociedade sem classes, por exemplo), seus operadores (movimentos sociais, partidos, organizações, etc.) e por fim seu sujeito, principal ponto de nosso interesse neste trabalho.
Sujeito
O conceito filosófico de sujeito talvez seja uma das categorias mais importantes do pensamento contemporâneo, e de fato, entreteve e assombrou toda a filosofia do século XX. Em plena vigência das filosofias pós-modernas e da disseminação de ideias como a da “pós-verdade”, o conceito de sujeito de Badiou se fia precisamente na tese da universalidade da verdade. Como ressalta Peter Hallward, evento, verdade e sujeito são apenas partes de um mesmo processo de transformação do mundo.[19]
Para o Badiou o sujeito não pode ser compreendido pelo cogito ergo sum cartesiano. O sujeito não é uma substancia, um ser, uma alma, uma coisa pensante, ele depende de um processo que começa, se desenvolve e termina.[20] O sujeito não corresponde imediatamente ao indivíduo humano, não é a consciência, a fonte da significação e do sentido e tampouco é o resultado necessário de uma tal ordem social. O sujeito sequer é necessário. Na verdade, ele é a consequência da existência da verdade e da dialética entre ser e o evento.
O sujeito é aquele que intervém na situação através da fidelidade que exerce em função do Evento-Verdade que ocorreu, ele surge após o evento. O sujeito é, portanto, uma consequência do acontecimento e não sua causa. O que o define é sua fidelidade, persistindo em identificar e discernir os traços do evento na situação. Deve-se ressaltar que não há verdades, no plural, para o sujeito. Pelo contrário, o sujeito é produto de um Evento-Verdade de determinada situação.[21] Resta evidente que Badiou opõe-se ferozmente às chamadas teorias da “pós-verdade”, já evidentemente marcadas pela pós-modernidade. Não há múltiplas verdades para cada sujeito envolvido na situação, o que há é uma e apenas uma verdade que é contingente e ainda assim parte irrenunciável da situação.
De qualquer modo, deve-se considerar que o evento é também um múltiplo, ainda que raro e especial. Sua apresentação na situação passa por certo procedimento genérico, reduzido por Badiou aos campos da ciência, política, arte e amor. Valendo-se do conceito de Paul Cohen, o procedimento genérico de uma verdade é o que permite identifica-la na situação, apresenta-la, pois, uma verdade é um múltiplo indiscernível, não se deixando discernir pelos predicados do saber e do conhecimento. Aí reside a dialética entre ser e evento. Os procedimentos genéricos são os meios pelos quais a verdade evental muda o saber, o conhecimento do ser-enquanto-ser. Através de um forçamento dessa verdade sobre os demais múltiplos de determinada situação, forçamento este atravessado pelo sujeito, a verdade ganha consistência alterando o saber e sendo introduzida na situação. O forçamento é um movimento de compatibilidade entre o corpo das verdades e os múltiplos da situação. “No fundo, uma verdade é sempre uma multiplicidade unificada, dominada ou organizada por alguma coisa que torna compatível algo que não o seria necessariamente. Para dar um exemplo bastante simples: boa parte da concepção daquilo que seria um partido revolucionário consistiria em criar uma teoria em que intelectuais e operários fossem compatíveis, e onde a política tornasse compatíveis as diferenças de classe que em geral não o são.”[22]
Apontamentos
Sob diversos ângulos o sujeito de Badiou encontra eco nas concepções lacaniana e althusseriana de sujeito. É seguro que muitos afirmam que Badiou seria um pós-marxista. Mas o certo é que há diversas relações, menções e discordâncias ao marxismo, aproximações e distanciamentos, assim como com relação à psicanálise e a outras filosofias e anti-filosofias. Se assim puder ser considerada, a filosofia de Badiou pertence ao pós-marxismo tanto quanto à pós-psicanálise.
Em relação ao marxismo especificamente, Slavoj Zizek aponta em artigo do fim da década de noventa uma interpretação do sujeito em Badiou que parcialmente segue os rastros do sujeito da ideologia de Althusser:
Dessa breve descrição, se tem um pressentimento do que se pode estar tentado a afirmar, em toda ingenuidade, sobre o poder intuitivo da noção de sujeito de Badiou, que efetivamente descreve a experiência de cada um de nós quando totalmente engajados, subjetivamente, em alguma Causa que é “nossa”. Não é isso, quando naqueles momentos preciosos, sou integralmente um sujeito? E precisamente essa característica não o faz ideológico? Isto é, a primeira coisa que atinge alguém versado na história do marxismo francês é quão incrivelmente próxima é a noção de Verdade-Evento de Badiou da noção de interpelação (ideológica) de Althusser. Esse processo que Badiou descreve como Verdade-Evento não é aquele no qual um indivíduo é interpelado como sujeito por uma Causa? A relação circular entre Evento e sujeito (isto é, o sujeito servindo ao Evento, que em si é visível somente como tal por um sujeito já engajado) não é o próprio círculo da ideologia? Antes de restringir a noção de sujeito a ideologia, isto é, identificando o sujeito como ideológico, Althusser rapidamente admitiu a ideia de a subjetividade estar comprimida em quatro modalidades: o sujeito da ideologia, o sujeito da arte, o sujeito do inconsciente e o sujeito da ciência. A tese de Badiou dos quatro procedimentos “genéricos da verdade” (amor, arte, ciência e política) pareceria claramente em paralelo a essas quatro modalidades da subjetividade (com o amor correspondendo ao sujeito do inconsciente – o foco da psicanalise – e a política, claro, ao sujeito da ideologia).[23]
A despeito da imensa capacidade de síntese do mestre esloveno, ousa-se aqui discordar quanto a relação do sujeito da verdade em paralelismo ao procedimento de interpelação do indivíduo enquanto sujeito pela ideologia. Para Althusser, a ideologia possui um papel reprodutivo das relações sociais de produção e circulação. Seu funcionamento se opera por meio de aparelhos ideológicos de Estado, em uma materialidade múltipla de instituições, práticas e ritos. Os indivíduos, são interpelados enquanto sujeitos por esta superestrutura, cujo caráter principal é de reprodução social.[24] O sujeito é, portanto, uma coordenada estrutural da lógica de reprodução da sociedade. Se traduzida ao sistema de Badiou, esta concepção parece corresponder ao plano ontológico do ser-enquanto-ser, e não ao do sujeito em sua relação com a verdade.
Por outro lado, o sujeito da verdade não corresponde imediatamente ao sujeito barrado de Lacan. A falta-a-ser do sujeito lacaniano, esse vazio que ocupa seu lugar, não parece corresponder ao sujeito de engajamento e fidelidade ativa ao evento, que força termos indiscerníveis em meio a situação dada. Entretanto, a ligação do sujeito lacaniano com a falha da estrutura simbólica, com o fato paradoxal de ser fundado por um Grande Outro que não existe, parece corresponder com a ligação do sujeito ao evento como irrupção do que não é o ser-enquanto-ser.
A fidelidade estabelecida entre o sujeito e o evento revelam a forma como Badiou reabilita a importância da militância em sua prática. O trabalho de uma verdade é um procedimento genérico no qual o sujeito, e não simplesmente um animal individual, é sua dimensão local e ativa.
Um sujeito não é nada mais do que uma fidelidade ativa ao evento da verdade. Isso significa que um sujeito é um militante da verdade. Eu fundei filosoficamente a noção de ‘militante’ em um tempo em que o consenso era que qualquer engajamento desse tipo era arcaico. Não apenas fundei essa noção, mas a aumentei consideravelmente. O militante da verdade não é apenas o militante político trabalhando para a emancipação da humanidade em toda sua extensão. Ele ou ela são também o artista-criador, o cientista que abre um novo campo teórico, ou o amante cujo mundo está encantado. [25]
É curioso que o grande filósofo da formalização matemática, gestado nas fileiras do estruturalismo francês, consiga responder às diversas críticas que este tipo de pensamento recebeu de setores do humanismo teórico da esquerda, bem como de politicistas, que viam nas concepções estruturalistas um impeditivo ou desnaturação das práticas militantes. Longe de negar o trabalho realizado pelo estruturalismo, através da categoria de Evento, Badiou pode oferecer uma concepção de sujeito onde a agência política militante e a estrutura ontológica natural e histórica podem, eventualmente, estabelecer uma transformação das coisas.
Seguindo o paralelismo proposto por Zizek entre Althusser e Badiou, nos parece que o sujeito da interpelação ideológica corresponda de forma mais harmoniosa ao singleto do Estado de direito da situação, proposto em Um desastre obscuro. Nesta rara passagem em que Badiou recorre abertamente ao conceito de direito para analisar a queda dos Estado-partidos do socialismo real, inserindo-o na ontologia das multiplicidades históricas, fica evidente a caracterização do estado da situação na situação histórica capitalista:
Na ontologia das multiplicidades históricas que proponho, o Estado, pensado como estado de uma situação, é o que assegura a conta estrutural das partes da situação, situação que leva em geral o nome próprio de uma nação. Dizer que um tal estado, isto é, uma tal operação de conta, é um estado “de direito” quer dizer que de fato que a regra de conta não propõe nenhuma parte particular como paradigma do ser-parte em geral. Dito de outro jeito: nenhum subconjunto, como a nobreza, ou a classe obreira, ou o Partido de classe, ou a “gente de bem”, ou os religiosos, etc…, é mencionado numa função especial em relação à operação pela qual os outros subconjuntos são enumerados e tratados. Ou também, nenhum privilegio explícito codifica as operações pelas quais o Estado se relaciona com os subconjuntos delimitados na situação “nacional”.[26]       
O qualificativo ‘de direito’ ao Estado é para Badiou uma especifica operação da conta dessa metaestrutura da situação histórica. O Estado de direito implica que a conta por um sobre os múltiplos não diferencie os subconjuntos por sua natureza ou composição de elementos. Todos elementos e subconjuntos, apesar de suas diferenças, são tratados como iguais pela conta por um que realiza o Estado de direito. Para o marxismo, esse tipo especifico de ‘conta’ operada pelo Estado de direito deriva da igualdade formal da subjetividade jurídica, arraigada inexoravelmente ao processo generalizado de trocas, conforme demonstra amplamente a tradição de crítica marxista ao direito, evocando-se aqui a figura de Bernard Edelman em O direito captado pela fotografia[27], por ser o jurista do círculo althusseriano.
Ao aparecer em uma situação o múltiplo-conjunto já é estruturado, já é contado por um. O Estado da situação não conta os múltiplos em si, mas sua própria conta por um, ou seja, o Estado toma os múltiplos enquanto subconjuntos, em sua abstração. É por isso que conta indivíduos humanos considerados em sua pertença aos subconjuntos, aos partidos, as classes sociais, grupos étnicos ou ideológicos e não em sua multiplicidade infinita particular. O sujeito de direito como conceito da crítica marxista não deixa de ser uma abstração, uma segunda conta-por-um sobre o indivíduo apresentado. Os diferentes estatutos desta forma abstrata, que são os sujeitos de direito, como o eleitor, o trabalhador, o consumidor, o empresário, etc., demonstram o que se quer dizer com ‘o Estado não lida com a multiplicidade infinita dos indivíduos, mas com a conta redobrada de sua estrutura, abstraindo sua multiplicidade específica’.
o Estado só tem relação com as partes, ou com os subconjuntos. Mesmo quando trata aparentemente a um indivíduo, não é a infinitude concreta desse indivíduo o que considera, senão essa infinitude reduzida ao Um da conta, ou seja, ao subconjunto de que esse indivíduo é (o único) elemento, o que os matemáticos chamam por singleto.[28]
singleto é um conceito de origem matemática que Badiou aborda ao desenvolver o teorema do ponto de excesso e o axioma da substituição em o Ser e Evento. Sem pretensões de desenvolver todo o conceito aqui, importa salientar que um singleto é um ‘substituto’ do conjunto do vazio, conjunto cujo único elemento é seu próprio nome, o vazio. Da mesma forma, o singleto é um tal conjunto cujo único elemento é seu nome-um.
Eis-nos, portanto, de posse de nossa primeira lei derivada no quadro da axiomática conjuntista: se o múltiplo ‘d’ existe (é apresentado), é também apresentado o múltiplo {‘d’}, ao qual só ‘d’ pertence; em outras palavras, o nome-um ‘d’, que o múltiplo que ele é recebeu, tendo sido contado por um. Essa lei, ‘d’ à {‘d’}, é a conversão-em-um do múltiplo, ‘d’, o qual já é o um-múltiplo que resulta de uma conta. Chamaremos o múltiplo {‘d’}, resultado-um do arranjo-em-um, o singleto de ‘d’.[29]
Fazendo uma leitura sistemática das duas passagens, temos que a relação entre o Estado da situação e os indivíduos humanos se dá por intermédio de um múltiplo tal que seu estatuto é de um singleto. O singleto é um tipo especial de múltiplo, pois só possui como elementos seu nome-um, sua conta. É impossível não traçar paralelos entre o sujeito da interpelação ideológica de Althusser neste caso. Não seria ele uma infinitude reduzida ao Um da regra de conta do estado de direito, não seria o singleto mencionado, uma subjetividade mínima necessária às estruturas de reprodução da situação histórica, que desconsidera toda a multiplicidade dos indivíduos reais, tomando-os apenas por seu nome?
Conforme já abordado, o sujeito para Badiou se fia não na ontologia do ser-enquanto-ser, mas na irrupção do evento-verdade. Se não podemos afirmar que o sujeito da interpelação seja de fato um “sujeito” badioudiano, considerado enquanto singleto, enquanto múltiplo pertencente ao estado da situação histórica, temos uma aproximação teórica plausível com a referência marxista, preservando a abertura militante que Badiou outorga ao sujeito em sua filosofia. O singleto corresponde de forma muito mais bem-acabada ao sujeito althusseriano, que é essa forma pela qual o estado se relaciona com o indivíduo, como uma infinitude reduzida a seu nome-um.
Referencias bibliográficas

[1] BADIOU, Alain. The adventure of French philosophy. London: Verso, 2012.
[2] BOSTEELS, Bruno. Badiou and Politics. Londres: Duke University Press, 2011.
[3] “Todo o meu trabalho filosófico consiste em propor uma nova definição do que é uma verdade e em tirar conclusões disso em relação à nossa existência como sujeitos” BADIOU, Alain. Por uma nova definição de verdade. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2016/01/28/por-uma-nova-definicao-daverdade/ Acesso em: 29/11/17.
[4] BADIOU, Alain. The Three Negations, Cardozo Law Review, Volume 29, Number 5, April 2008, 1877,p. 1883.
[5] MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. Disponível em: marxists.org. Acessado em: 29/11/17.
[6] BADIOU, Alain. Por uma nova definição de verdade. Op. Cit.
[7] ___________. Manifesto for philosophy. New York: State University of New York, 1999. p. 29
[8] Id. Ibid. p. 50.
[9] ALTHUSSER, Louis. Lenin e a Filosofia.
[10] MADARASZ, Norman R. O Multiplo sem Um. Rio de Janeiro: Ideias e letras, 2011, p. 38
[11] BADIOU, Alain. Ser, evento, sujeito: o sistema de Alain Badiou. Disponivel em: https://lavrapalavra.com/2017/11/20/ser-evento-sujeito-o-sistema-de-alain-badiou/ Acesso em: 29/11/17
[12] PLATÃO. Parmenides, o Uno e o Multiplo.
[13] ZIZEK, Slavoj. The case of Alain Badiou.
[14] BADIOU, Alain. Ser e evento. Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p. 83
[15] Id. Ibid. p. 55
[16] BADIOU. Ser e evento. Op. Cit. p. 51
[17] Id. Ibid p. 82
[18] ZIZEK. The case of Alain Badiou.
[19] HALLWARD, Peter. A subject to truth. p. 15
[20] BADIOU, Alain. Verdade e sujeito. Estud. av., São Paulo, v. 8, n. 21, p. 177-184, Aug. 1994. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141994000200011&lng=en&nrm=iso>
[21] ZIZEK. The case of Alain Badiou.
[22] BADIOU. Por uma nova definição de verdade. Op. Cit.
[23] ZIZEK. The case of Alain Badiou.
[24] ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. p. 60
[25] BADIOU. Ser, evento, sujeito: o sistema de Alain Badiou. Op. Cit.
[26] BADIOU, Alain. Dun desastre escuro e outros textos. Santiago de Compostela: Edicións Laiovento, 1991, p. 38. Tradução própria.
[27] EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia.
[28] Id. ibid. p. 41
[29] BADIOU. Ser e evento. Op. Cit. p. 81




Comentários