Estudo
aponta que país tem mais de 3 milhões de casos da doença, 11 vezes mais do que
os números oficiais, mas o que motiva tamanha discrepância nos dados?(foto: BBC)
Brasil: o
novo epicentro da pandemia de coronavírus?
Estudo aponta que país tem mais de 3 milhões
de casos da doença, 11 vezes mais do que os números oficiais, mas o que motiva
tamanha discrepância nos dados?
postado em 20/05/2020
11:41 / atualizado em 20/05/2020 16:55
A
imensa subnotificação de casos e, em menor grau, de mortos, devido
principalmente à baixa testagem, juntamente com uma curva ascendente de novas
mortes, já posicionariam o Brasil como o mais novo epicentro da pandemia de
coronavírus.
A isso, somam-se uma taxa de contágio ainda
muito alta, a baixa adesão da população às medidas de isolamento social e a
inabilidade de gestores públicos de reconhecer a gravidade da situação.
Na terça-feira (19), o Brasil rompeu a
marca simbólica de mais de mil mortes diárias por COVID-19. O país registrou
1.179 novos óbitos em 24 horas, segundo o Ministério da
Saúde. Ao todo, são 17.971 óbitos por coronavírus e 271.628 casos
confirmados.
O alerta foi dado no início deste mês a
partir de um estudo liderado pelo Laboratório de Inteligência em Saúde da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ligado à Universidade de São Paulo
(USP).
Naquele momento, segundo estimativas (veja
mais abaixo como elas foram feitas) da equipe coordenada pelo professor
Domingos Alves, o total de infectados por coronavírus no Brasil teria chegado a
1.657.752 (variando entre 1.345.034 e 2.021.177).
Desde então e até o fechamento desta
reportagem, esse número já ultrapassou 3 milhões, segundo a atualização mais
recente. Os dados podem acessados no portal
COVID-19 Brasil, que reúne pesquisadores de diversas universidades
brasileiras.
Ou seja, 11 vezes mais do que os casos
divulgados pelo Ministério da Saúde e acima do dos Estados Unidos, considerado
oficialmente o atual epicentro da pandemia, onde há cerca de 1,5 milhão de
casos confirmados, segundo a Universidade Johns Hopkins.
"O governo brasileiro perdeu a mão
quanto ao controle da pandemia. O número de casos está crescendo de forma
exponencial. Posso afirmar categoricamente que o Brasil se tornou o polo mais
importante de disseminação do vírus COVID-19 do mundo", diz Alves à BBC
News Brasil.
"Prevejo um cenário extremamente
crítico até o fim deste mês de maio", acrescenta.
Um dos motivos principais para tamanha
discrepância dos dados é a baixa testagem da população. Até agora, o Brasil
realizou apenas 3.462 testes por milhão de habitantes. Para efeitos de
comparação, os Estados Unidos realizaram 37.188 testes por milhão de pessoas e
a Espanha, o país que mais testou a população, realizou 64.977 testes por
milhão de habitantes, segundo a empresa de dados Statista.
"Sendo assim, mesmo que haja
subnotificação nos Estados Unidos, o número real de casos por lá poderia até
encostar, mas não ultrapassaria o do Brasil", afirma Alves.
Brasil tem 3ª maior taxa de
contágio do mundo, diz Universidade Imperial College de Londres(foto: Getty Images)
Sem testes
Sem realizar testes, o Brasil não tem ideia do
tamanho da pandemia. Dessa forma, não consegue adotar medidas específicas para
frear o contágio, seja pelo isolamento dos casos assintomáticos ou com sintomas
leves, seja pelo rastreamento dos contatos desses infectados.
Alves explica que chegou às estimativas a partir de
uma modelagem reversa, baseada no número oficial de óbitos do Brasil e na taxa
de mortalidade da Coreia do Sul, ajustada para a pirâmide etária brasileira e
para o tempo de internação médio entre a confirmação do caso e o óbito, de dez
dias.
Segundo ele, a Coreia do Sul foi usada como parâmetro
pois é um dos países que mais tem conseguido fazer testes em massa. Sendo
assim, sua taxa de mortalidade seria "mais confiável", ou seja, mais
próxima da realidade.
"A taxa de mortalidade do Brasil atualmente é
de quase 8,6%, muito superior a de outros países, mas isso não se deve ao fato
de que os brasileiros são mais propensos a morrer de COVID-19", esclarece.
"Como há muito menos casos notificados, a taxa
de letalidade da doença parece maior, quando na verdade é bem mais baixa. Ou
seja, no Brasil, essa taxa que vemos nos dados oficiais representa a taxa de
mortalidade hospitalar, basicamente", acrescenta.
Segundo Alves, a taxa real de mortalidade da
COVID-19 no Brasil seria de 1,11%. Foi com base nela que ele e sua equipe
chegaram à cifra que hoje ultrapassa 3 milhões.
O pesquisador ressalva, contudo, que se trata de
uma estimativa "conservadora", uma vez que os cálculos foram baseados
no número de mortes oficiais e no tempo de internação de 10 dias entre a
confirmação do caso e a morte.
Sendo assim, acrescenta ele, se fossem
contabilizadas as mortes não notificadas e o tempo total de infecção, de 20
dias, o total de infectados seria "bem maior, certamente ultrapassando 5
milhões".
'Mesma direção'
Outros estudos sobre subnotificação de casos
realizados por pesquisadores brasileiros, apesar de adotarem metodologias
diferentes, apontam na mesma direção.
No fim de abril, um projeto de pesquisa coordenado
pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) e pelo governo gaúcho, o
Epicovid19, mostrou que o número de casos de coronavírus pode ser de 5 até 26
vezes maior do que as cifrais oficiais.
A constatação foi observada na segunda rodada do
levantamento e envolveu 4,5 mil pessoas no Rio Grande do Sul que foram
testadas. O Estado tem uma população superior a 11 milhões de habitantes. A
pesquisa terá mais duas etapas.
Especialistas da Ufpel também lideram outro estudo,
dessa vez nacional, em parceria com o Ibope, que começou no último dia 5 de
maio e pretende testar 33.250 pessoas em cada uma de suas rodadas, que serão
realizadas a cada duas semanas.
O objetivo é estimar a porcentagem de pessoas com
anticorpos para o coronavírus (um número mais próximo do total de infectados),
determinar o ritmo de contágio, constatar a parcela de infecções assintomáticas
e saber o quanto a COVID-19, de fato, mata.
A partir desses dados, seria possível precisar
melhor o avanço da epidemia e tomar decisões para frear sua expansão.
Já outro estudo, realizado pelos professores
Leonardo Costa Ribeiro, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, e Américo
Tristão Bernardes, do Departamento de Física da Universidade Federal de Ouro
Preto, e divulgado há uma semana, mostrou que número confirmado de casos deve
ser multiplicado por "um fator de 3,8 para obter o número real de pacientes
infectados em condições hospitalares", afirmaram os pesquisadores, em nota
técnica.
Eles ressalvam, contudo, que os índices de
subnotificação foram obtidos com base nos casos mais graves, que chegam aos
hospitais.
"Então, é de se esperar que, considerando
também os casos que não geram hospitalização, esses índices sejam ainda
maiores", dizem.
Subnotificação de mortes
Em relação às mortes, em que Alves acredita também
haver subnotificação, embora menor, ele diz que cálculos preliminares apontam
que os dados oficiais representariam apenas 60% do total de óbitos.
Sendo assim, em vez das quase 18 mil mortes
anunciadas pelo Ministério da Saúde, o número real já estaria próximo a 30 mil.
Essa subnotificação de óbitos, segundo Alves,
deve-se a uma combinação de fatores, incluindo excesso de pedidos de exames,
que fazem com que o resultado dos testes atrasem.
Como resultado, os médicos acabam fazendo
declarações de óbitos sem diagnóstico específico.
Alves cita como exemplo o número de mortes causadas
por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), doença causada pelo novo
coronavírus.
"Em relação ao mesmo período de 2019, o número
deste ano já é infinitamente superior, mas nem todos os óbitos são
classificados como COVID-19", explica.
Segundo dados do Painel COVID Registral, o número
de mortes por SRAG entre 16 de março e 20 de maio deste ano foi de 5.300 contra
267 em igual período do ano passado, um aumento de quase 2.000%.
Além disso, segundo Alves, devido à falta de
estrutura, os Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens), responsáveis
pela coleta de dados, podem demorar quase um mês para entregar os resultados
sobre o motivo do óbito.
"O exame é pedido quando o paciente dá entrada
no hospital. Ou seja, se ele fica de dez a quinze dias internado e vem a óbito,
só vamos saber se foi por COVID-19 15 dias depois. Ou seja, os números oficiais
têm um atraso de, no mínimo, uma semana", assinala.
Em entrevista à BBC News Brasil, o físico Roberto
Kraenkel, professor da Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) e membro do
Observatório COVID-19 (iniciativa independente de 43 pesquisadores do país)
também chama atenção para os casos dos doentes que não passam pelo sistema de
saúde.
"Esses casos são quase impossíveis de serem
quantificados, mas podem ser estimados por testes sorológicos, em busca de
quantas pessoas tiveram contato com a doença e desenvolveram anticorpos",
diz ele.
Para o epidemiologista Paulo Lotufo, professor
titular de Clínica Médica da Universidade de São Paulo (USP), descobertas
recentes sobre a COVID-19 tornam ainda mais difícil monitorar o avanço da
pandemia, pois muitas pessoas infectadas morrem sem apresentar os sintomas
associados à doença, como febre ou falta de ar, e por isso nem chegam a ser
testadas.
Nos países mais afetados pela pandemia, hospitais
têm recebido cada vez mais pacientes com problemas cardíacos e renais causados
pela doença.
Vêm surgindo ainda estudos que vinculam a ação do
vírus em crianças à síndrome do choque tóxico, doença rara que pode gerar
insuficiência renal aguda.
"Várias pessoas com doença cardíaca passaram a
morrer de COVID sem que fossem testadas. A pessoa já tinha tido uma cirurgia
cardíaca, estava em casa, tem uma dor no peito e vai para o pronto-socorro.
Ninguém vai fazer pesquisa de COVID", disse ele, em entrevista recente à
BBC News Brasil.
"Então você tem uma quantidade maior de casos
que aparentemente são por infarto ou por acidente vascular cerebral (AVC),
quando de fato são ocasionados pela covid", acrescentou.
Alves também chama atenção para o número crescente
de mortes por dia no Brasil, patamar superior ao de outros países
"levando-se em consideração as fases da pandemia".
Alves liderou estudo que mostra
que casos de coronavírus no Brasil já superararam 3 milhões(foto: Arquivo pessoal)
Cenário 'extremamente crítico'
Independentemente das subnotificações, os números
oficiais já refletem um "cenário extremamente crítico", diz o
especialista.
O Brasil se encontra no 83º dia do surto. Dados da
Universidade Johns Hopkins mostram que o Brasil já é o segundo país em número
de casos por 100 mil habitantes, atrás apenas dos EUA, na comparação dos dados
no 83º dia do surto. A confirmação do primeiro caso no Brasil ocorreu apenas no
fim de fevereiro, semanas depois do que nos EUA e na Europa.
Hoje, em relação às mortes por 100 mil habitantes,
o país está atrás dos EUA, Itália, França, Espanha e Reino Unido. Mas
deve ultrapassar todos eles, com exceção dos EUA, nos "próximos dez
dias", diz Alves.
Alves ressalva, contudo, que, no mesmo período da
epidemia, a curva de casos confirmados e de óbitos de todos esses países já
apontava para baixo ou indicava uma estabilização, enquanto que a do Brasil
continua a subir. Ele lembra ainda que o Brasil ainda não chegou ao pico.
Bolsonaro é crítico do lockdown(foto: EPA/Andre Borges)
"Os gestores públicos ainda estão discutindo
se decretam lockdown (confinamento total) ou não. Eles vão ter que se explicar
a público quando o número de pessoas morrendo em casa aumentar exponencialmente.
Vamos virar um Equador", diz Alves, em alusão ao país vizinho, que passou
a registrar um grande número de óbitos em domicílio devido ao colapso do
sistema de saúde.
Crítico do lockdown, o presidente Jair Bolsonaro
alega que o custo econômico de um confinamento nacional seria gigantesco e vem
se opondo às tentativas dos governadores de manterem a população dentro de
casa.
Contágio e adesão
Segundo especialistas, a inabilidade dos gestores
públicos em admitir a gravidade da pandemia e tomar medidas para confinar a
população vem contribuindo para o ritmo de expansão da COVID-19 no Brasil.
"O que deu de errado aqui? Basicamente, foi a
contrapropaganda da Presidência da República", disse Lotufo.
"Como o Brasil não faz testes em massa, os
números divulgados são muito mais baixos do que os reais e podem dar a falsa
sensação de que nada precisa ser feito, tanto da parte dos gestores públicos
quanto da população", acrescenta Alves.
De fato, a adesão da população ao isolamento social
no Brasil é baixa. De acordo com dados da empresa Inloco, o índice de
isolamento social no Brasil é de 42,6%.
Sem medidas duras de confinamento, dizem os
especialistas, a taxa de contágio (conhecida como R0, ou número de reprodução
básica) deve permanecer alta.
Brasil tem taxa de contágio maior
do que a dos EUA(foto: BRENDAN SMIALOWSKI/AFP)
Dados
da Universidade Imperial College de Londres atualizados na semana passada
mostraram que que o Brasil tinha o terceiro
R0 mais alto do mundo, 2, atrás apenas de Porto Rico e Bangladesh. O
levantamento analisou 54 países com transmissão ativa do vírus.
Mas esse número teria caído para 1,4 depois
das primeiras medidas de isolamento social e, agora, com mais Estados
promovendo a quarentena, segundo um estudo recente realizado pelo físico
nuclear Rubens Lichtenthäler Filho, professor da Universidade de São Paulo
(USP), e seu filho, Daniel, médico do Hospital Israelita Albert Einstein.
Ainda assim, continua alto. Isso significa
que duas pessoas no Brasil podem passar a doença para outras três.
Nos Estados Unidos, o país com o maior
número de casos confirmados atualmente, esse número é 1,11. Na vizinha
Argentina, 1,16.
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