A
ficção científica e a questão da subjetividade homem-máquina
Fátima
Régis de Oliveira
O desenvolvimento tecnocientífico a
partir da segunda metade do século XX desafia a concepção de homem da
Modernidade. A ciência e a filosofia modernas conceberam homens, animais e
máquinas como seres de naturezas distintas, que não podiam se misturar. Ao
explicar os mecanismos da vida em termos de interações moleculares e programa
genético, a biologia molecular elimina a possibilidade de vitalismo, produzindo
uma maquinação do humano a nível bioquímico. Por sua vez, as máquinas de última
geração são providas de organização, interagem com o ambiente e executam
tarefas cognitivas, faculdades até então reservadas ao humano. Além dessa
maquinação do humano e humanização das máquinas, a inteligência artificial, as
biotecnologias e a engenharia genética produzem próteses, implantes,
tecnologias invasivas e biocompatíveis que tornam ambíguas as diferenças entre
natural e artificial, pensante e não-pensante, orgânico e maquínico.
A capacidade lógico-matemática
necessária para jogar xadrez já é replicada pela inteligência artificial. Basta
lembrarmos do supercomputador Deep Blue, que venceu o enxadrista
campeão mundial Kasparov. A engenharia genética realiza experiências em que
combina partes de órgãos humanos com o corpo de animais, como o rato com uma
orelha humana nas costas (figura 1). Já o acadêmico canadense Steve Mann –
o cyberman (figura 2) – utiliza a tecnologia para mediar
inteiramente a sua percepção da realidade. Desde 1981, Mann utiliza uma câmera
de vídeo no olho direito – um eyetap – para amplificar e
intensificar as percepções de seu corpo. A percepção visual que Mann tem do
mundo é inteiramente mediada pela câmera.
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Figura
1
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Figura
2
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Esses seres híbridos e monstruosos
parecem saídos das páginas de livros e das telas de filmes de ficção
científica, deixando- nos a sensação de que o mundo atual tem seu quotidiano
temperado com uma pitada de ficção científica. O gênero cada dia ganha mais
espaço no imaginário popular e interesse nas comunidades acadêmicas, suscitando
pesquisas em áreas de ciências sociais e humanas e nas teórico-experimentais.
Mas como a ficção científica, de sub-gênero da cultura de massa, tornou-se a
narrativa por excelência da subjetividade homem-máquina? Para tentarmos
compreender esta questão primeiro fazemos uma retrospectiva da árvore
genealógica da ficção científica para em seguida entender as condições de seu
aparecimento na cultura moderna.
O nascimento da ficção científica
Embora hoje encontremos ficção
científica em histórias em quadrinhos, videogames, filmes e RPG, o gênero
nasceu como narrativa literária. A ficção científica herdou das narrativas de
viagens e das fábulas a tarefa de contar histórias sobre seres maravilhosos ou
extraordinários, fascinando assim seus leitores. As viagens fantásticas,
como As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, descrevem seres
maravilhosos e lugares exóticos e longínquos, acendendo a curiosidade sobre o desconhecido,
mas mantendo em suspense a real existência dos ambientes descritos. A ficção
fantástica – a ficção científica e seus primos mais próximos, a fantasia e o
horror – são produtos da Idade Moderna, e, constituíram-se no campo da
literatura. Diferente da fábula, a literatura é ficcional, mas se compromete a
produzir efeitos de realidade. A literatura fantástica permanece, no entanto,
com o mesmo objetivo da fábula: criar seres e mundos desconhecidos, despertando
curiosidade e deslumbramento em seus leitores.
Para o escritor Bráulio Tavares, o que
há em comum entre a fábula e a literatura fantástica é a temática do “Outro
Eu, ou a justaposição do conhecido (o Eu) e do estranho (o
Outro)” (Tavares, 1986, p. 13).
As justaposições entre conhecido e
estranho, eu e outro, revelam que o tema comum à fábula e à narrativa
fantástica é a interrogação de nossa humanidade e de nosso mundo a partir da
presença de um outro ser e de um outro mundo. Como
exemplos de outros seres podemos citar anões e gigantes (fábulas), ogros e
duendes (fantasia), robôs e alienígenas (ficção científica). Os outros mundos
podem ser representados por culturas orientais (fábulas), reinos mágicos
(fantasia), planetas longínquos (ficção científica). As viagens realizadas e os
seres visitados (ou criados) dependem do potencial de saber (mágico, religioso
ou científico) de cada cultura. A partir de uma ou mais mudanças nas esferas
de subjetividade, saber e espaço-tempo,
a fábula e a ficção fantástica exercitam a curiosidade e o deslumbramento sobre
seres e mundos desconhecidos como estratégia de problematização de nossa
própria humanidade, realidade e potencial de exploração no mundo.
A Odisséia, – a primeira
grande obra de ficção fantástica do Ocidente – é uma narrativa de viagem que
demarca a identidade do homem grego e a geografia das viagens possíveis em
contraposição aos povos bárbaros e aos troianos. Hoje descrita como fábula,
talvez a Odisséia tenha sido uma “ficção científica” em sua
época. O título de primeira obra de FC - quase um consenso entre autores,
pesquisadores e leitores do gênero – cabe a Frankenstein (1817),
de Mary Shelley. É a primeira história em que matéria inerte é animada por meio
de procedimentos científicos. Envoltos em um campo de fronteiras esmaecidas só
é possível delinear uma diferença muito sutil entre ficção científica, fantasia
e horror. Na ficção científica as interrogações do humano e das configurações
espaço-tempo são feitas a partir de mudanças fictícias no saber tecnocientífico,
enquanto na fantasia e no horror os elementos dominantes são o saber mágico,
religioso ou sobrenatural. Uma ressalva é importante: várias obras de ficção
científica utilizam elementos mágicos, religiosos ou sobrenaturais – um dos
motivos pelos quais o gênero é considerado impuro. No entanto, na
ficção científica há sempre pelo menos um elemento (enredo,
personagem, contexto, entre outros) que se apóia no imaginário tecnocientífico.
Não é casual que a data e o local de nascimento da ficção científica seja o
alvorecer da Revolução Industrial, na Inglaterra.
As condições de aparecimento da ficção
científica na Modernidade
Na virada do século XVIII para o XIX, a
Europa vive mudanças acentuadas nas esferas sociais, políticas
e econômicas engendradas pelas Revoluções Francesa e Industrial. Estas mudanças
tiveram como base a racionalidade científica e as invenções tecnológicas
aplicadas à produção, ao comércio e à economia no decorrer do século XVIII. Os
consistentes sucessos do conhecimento objetivo legitimaram a razão e a
capacidade intelectual do homem como indivíduo autônomo e secular. O pensamento
político e social abandonava os dogmatismos religiosos e monárquicos e se
voltava para os ideais progressistas de liberdade e igualdade. Ao empunhar a
bandeira dos ideais iluministas de liberdade e igualdade, a Revolução Francesa
glorificou o poder do indivíduo na transformação e progresso da sociedade. Ao
consolidar a força do indivíduo e a confiança na razão, o ensinamento proposto
pela Revolução Francesa foi: nós (indivíduos, cidadãos) podemos mudar a
sociedade, nós podemos construir um futuro melhor. O explícito nas
revoluções e no pensamento que inauguram este período é o entrelaçamento
inextricável entre o surgimento de um sujeito autônomo e singular,
legitimado pelo desenvolvimento de um saber tecnocientífico comprovadamente
eficaz, e uma nova relação com o tempo que concebe o futuro como
produto das mudanças realizadas no presente. Estes três acontecimentos
inseparáveis – o desenvolvimento tecnocientífico como desencadeador de
mudanças, o sujeito como modo de ser do homem, e a mudança como possibilidade
de sonhar com o futuro – forneceram o terreno fértil para a narrativa de ficção
científica.
A ficção científica permanece fiel ao
evento que lhe deu origem e suas obras atualizam e afirmam o modo de
interrogação da cultura moderna. Entretanto, enquanto a Modernidade adotou a
“flecha do tempo” e fronteiras que distinguiam entre natural e artificial,
pensante e não-pensante, real e ficção, a ficção científica optou pela
dissolução das fronteiras entre homens, animais e máquinas e esmaecimento dos
limites entre ciências humanas, sociais e naturais, doando a suas narrativas o
caráter múltiplo da experiência.
A Modernidade forneceu as condições de
nascimento da ficção científica, mas não conseguiu pensá-la. Ao erigir
fronteiras entre homens, animais e máquinas, o pensamento moderno tratou a
tecnologia como instrumento de alienação ou libertação do indivíduo, mas nunca
como algo que se imbrica com os modos de subjetivação e faz repensar os limites
entre o humano e a técnica. A Modernidade não apenas propicia as condições de
aparecimento da ficção científica quanto ela mesma é uma narrativa: uma
metanarrativa. O pensamento esclarecido também sonhou com um outro ser –
o sujeito civilizado e emancipado – e um outro mundo – a
sociedade democrática no futuro. As mudanças sonhadas pela Modernidade – a
emancipação do homem pela razão, a construção de organizações sociais
democráticas e o controle da natureza pela ciência – eram a narrativa única e
linear pretendida pelos modernos. Enquanto pensadores e cientistas buscam as
condições de concretização da Utopia Moderna por meio da antecipação do futuro,
os escritores de ficção científica narram as outras utopias, distopias e
heterotopias possibilitadas pelas mudanças de perspectivas nos campos da
subjetividade, da tecnociência ou por outras configurações de espaço e tempo.
Já no século XIX surgem histórias sobre viagens no tempo, aventuras em planetas
distantes, novas tecnologias de transporte (balões e submarinos) e de
comunicação (rádio), máquinas inteligentes, experimentos biológicos com animais
e homens, entre outros temas.
Podemos compreender o desajuste teórico
entre a ficção científica e o pensamento moderno. A FC só poderia surgir em uma
cultura cujas mudanças eram em grande parte impulsionadas pelo aparato
tecnocientífico. Mas, como Bruno Latour esclarece em Jamais fomos
modernos (1994), os pensadores modernos, paradoxalmente, ao mesmo
tempo em que criaram as condições de produção de seres híbridos,
abstiveram-se de analisá-los, uma vez que haviam separado a ciência da cultura.
Narrar as novas possibilidades de existência na sociedade científica foi
precisamente a tarefa que a ficção científica tomou para si. Uma segunda
inadequação refere-se à própria proposta da FC. A Modernidade condenou toda a
ficção ao campo do falso e do não-factual. Para a nomenclatura moderna, a
literatura não sendo verdadeira pode apenas produzir efeitos de verdade. Uma
ficção que se pretende “científica” parece não compreender a contradição
implícita nos dois termos: a liberdade proporcionada pela ficção e o rigor
exigido pela ciência.
As obras de FC narram a dissolução de
fronteiras entre humano e não-humano, factual e ficcional, visível e invisível,
ciências humanas e teórico-experimentais, o que confere o caráter múltiplo de
suas histórias e temas. A ficção científica herdou das narrativas de viagens
extraordinárias a interrogação, de caráter filosófico, sobre “o que é o
humano?”. Desde então dedica-se a indagar sobre o lugar do homem no mundo a
partir da tríade – subjetividade, desenvolvimento tecnocientífico e futuro –
cujas condições foram forjadas em seu nascimento, na Modernidade.
O momento atual caracteriza-se pela
expansão mundial da tecnologia e pelo esmaecimento de fronteiras que tem
propiciado novas condições de possibilidade de subjetividade e novos espaços
(ciberespaço e realidade virtual) para a experiência humana. Por reconfigurar
as possibilidades de experiência dos homens e do mundo, a sociedade atual gera
uma abertura para as multiplicidades, permitindo hibridismos e sombreamentos
nas fronteiras modernas. A ficção científica, como o gênero que investiga os
modos de produção de subjetividade em uma sociedade tecnocientífica, parece
tornar-se a ficção da atualidade, ganhando respeitabilidade no
mundo acadêmico.
Fátima Régis de Oliveira é
professora adjunta e coordenadora da linha de pesquisa Novas Tecnologias e
Cultura do Mestrado em Comunicação da Faculdade de Comunicação
Social/UERJ.
* Este artigo se baseia em idéias desenvolvidas
na tese de doutorado Nós, ciborgues: a ficção científica como narrativa da
subjetividade homem-máquina, defendida em maio de 2002 na ECO/UFRJ.
Referências bibliográficas
LATOUR, Bruno. Jamais fomos
modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
TAVARES, Bráulio. O que é
ficção científica. São Paulo: Brasiliense, 1986.
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