Uberização, aceleração
frenética e pulsão de morte
As
relações entre empregador, trabalhador e consumidor foram embaralhadas — com o
aval do Estado. Motoristas e entregadores estão sempre atrás do “a mais” que
lhes garantirá existência — em troca, entregam saúde, prazer e até a vida
Publicado 22/04/2020 às
18:48 - Atualizado 22/04/2020 às 18:49
Por Fábio
Luís F. N. Franco
No início de fevereiro deste ano, a 5a turma do Tribunal
Superior do Trabalho (TST) rejeitou por unanimidade o recurso de um motorista
de Uber de Guarulhos, na Região Metropolitana de São Paulo: ele exigia o
registro em carteira e o reconhecimento de direitos trabalhistas após quase um
ano dirigindo para o aplicativo. Foi a primeira vez que uma corte superior
julgou um caso desse tipo.
No acórdão, o TST embasa sua decisão na confissão do motorista
quanto à possibilidade de ficar off-line sem
delimitação de tempo, o que, segundo os ministros, “traduz, na prática, a ampla
flexibilidade do autor em determinar sua rotina, seus horários de trabalho,
locais onde deseja atuar e quantidade de clientes que pretende atender por dia.
Tal autodeterminação é incompatível com o reconhecimento da relação de emprego,
que tem como pressuposto básico a subordinação, elemento no qual se funda a
distinção com o trabalho autônomo”. Além disso, entendem que o “alto percentual”
pago pela empresa a cada corrida – em média, 70% do valor cobrado do usuário –
é suficiente para caracterizar a existência de relação de parceria entre os
envolvidos, e “evidencia vantagem remuneratória não condizente com o liame de
emprego”.
Se não fosse a retórica jurídica, as estampas burocráticas e os
títulos ostentados pelos signatários do documento, seria crível pensar que se
trata de mais um texto institucional da Uber, escrito por alguém de sua equipe
de advocacy. “Ampla
flexibilidade”, “autodeterminação”, “inexistência de subordinação”, “trabalho
autônomo”, “relação de parceria”… são alguns dos sintagmas estruturantes dos
discursos empresariais no e-marketplace, o mercado
virtual de compra e venda de trabalho, povoado por empresas-aplicativo como
Rappi, Uber, Loggi e iFood, entre outras start-ups.
O canto de sereia que essas empresas entoam seduz pela promessa
de uma vida sem subordinação a um patrão arbitrário, em que cada indivíduo
seria um empresário de si e, portanto, autônomo para definir seu expediente, as
tarefas que assumirá, o quanto ganhará. Não haveria mais empregados nem chefes,
apenas empresários e empresas conectados digitalmente como parceiros.
No capitalismo de plataforma – expressão
adotada por alguns autores para designar o capitalismo que se utiliza de
infraestruturas e intermediações digitais de produção e circulação de
mercadorias e serviços –, modificam-se o estatuto do trabalhador, do
empregador, do consumidor, bem como as relações que tecem entre si. As empresas
se convertem em softwares que conectam a demanda à oferta, a multidão de
consumidores à multidão de prestadores de serviços permanentemente disponíveis
para o trabalho just in time. A fim de que
esse jogo funcione sem perdas (para as empresas), não basta a mão invisível
invocada de tempos em tempos pelos liberais, é necessário, principalmente, as
mãos bem visíveis do Estado, intervindo, por exemplo, para desregulamentar e
flexibilizar o trabalho por meio de leis ou de jurisprudências, condição
essencial para que as empresas-aplicativo criem mecanismos de transferência de
riscos e custos para seus “parceiros”. À dispersão do trabalho e à disseminação
dos custos que caracterizam o e-market,
soma-se a terceirização do controle sobre o trabalho, que fica a cargo dos
clientes, responsáveis por dar uma nota ao prestador de serviço, e dos próprios
trabalhadores, obrigados a se gerenciarem constantemente segundo os parâmetros
de avaliação de cada empresa.
Para evitar despesas, minimizar as ameaças e ampliar as possibilidades
de ganho, o trabalhador precisa obedecer às regras definidas pelas
empresas-aplicativo, o que, em geral, significa ser bem avaliado pelos
consumidores, não recusar os trabalhos que lhe são oferecidos, permanecer
conectado ao aplicativo a maior parte do dia, entre outras exigências que
variam de acordo com a empresa. Assim, em vez de empreendedores de si, esses
trabalhadores talvez possam ser mais adequadamente designados como “gerentes de
si”, uma vez que lhes cabe administrar sua produtividade, sua jornada de
trabalho, suas horas de intervalo, seus dias de folga, suas perdas e ganhos,
suas estratégias de concorrência, sem, no entanto, terem a mais longínqua
possibilidade de interferir nas regras da empresa, na divisão dos lucros ou no
compartilhamento de eventuais ônus.
Tais subjetividades gerenciais são, assim, efeito da reprodução
desse capitalismo de plataforma – e condição para que ela exista. Desde Freud,
a psicanálise tem sustentado a tese de que não existe sociedade indiferente aos
destinos pulsionais dos sujeitos, às formas como eles investem determinados
objetos em detrimento de outros, à quantidade de satisfação que se está
autorizado a obter – e de que maneira. Enfim, àquilo que se pode designar como economia
libidinal. Nesse sentido, caberia a pergunta: que economia
libidinal dos “gerentes de si” é requerida pelo capitalismo de plataforma?
Um pequeno recuo histórico pode ser importante para começar a
respondê-la. Grosso modo, sob o império do
fordismo e do taylorismo, a socialização dependia tanto da renúncia ao desejo
de consumo irrestrito dos bens produzidos – aí incluída a própria força de
trabalho – como da criação de padrões anatomofisiológicos e psíquicos
determinados pelo ritmo e pelo espaço de trabalho, e para isso colaboravam os
sistemas métricos e normalizadores desenvolvidos pelas recém-nascidas ciências
do homem.
A reorganização produtiva colocada em marcha pelo neoliberalismo
real dos anos 1970 e 1980 levou ao colapso dos dispositivos de socialização até
então hegemônicos. As empresas-aplicativos são as herdeiras mais jovens desse
processo. Agora, não se trata apenas de se adequar às medidas, de agir conforme
os protocolos; além disso, é preciso, sobretudo, estar disposto a assumir os
riscos de se lançar à procura do novo, do inédito, do impensado. A incessante
jaculatória dos imperativos sociais de autonomia, flexibilidade,
autodeterminação, rezada pelo acórdão dos juízes do TST, implica uma economia
libidinal que não esteja prioritariamente baseada no cálculo neurótico dos
impasses entre satisfação de moções pulsionais e normas sociais, mas que seja
mobilizada permanentemente pela realização de um “a mais”. Trabalhar a mais
para pegar tarefas a mais para ganhar a mais para receber pontos a mais nas
avaliações para trabalhar a mais… No fim do dia, esse a mais se escreve como um
a menos nos orçamentos da maioria dos trabalhadores: dinheiro a menos, prazeres
a menos, saúde a menos. Faz-se sempre a mais com a esperança de saldar o que
está a menos, mas o resultado é menos, ainda menos.
A medida dessa economia libidinal é a desmedida, o excesso. O
psicanalista francês Jacques Lacan identificava esse excesso a uma das
modalidades de gozo: o mais-de-gozar. Na arqueologia desse conceito polimórfico
em Lacan, encontram-se estudos antropológicos e sociológicos sobre experiências
sociais improdutivas, como a festa e o jogo, por exemplo, nos quais os esforços
dos participantes culminavam na fruição de modalidades de satisfação conectadas
ao desperdício, ao dispêndio, à destruição. As preocupações com a conservação
da vida, com a adequação racional entre meios e fins, objetos e demandas, eram
deixadas de lado durante esses acontecimentos para além dos limites do
princípio do prazer. No divã de Freud, desde 1920, experiências desse tipo, às
quais se somavam outras, como os traumas, tornavam visível o funcionamento de
uma pulsão de retorno ao inorgânico, de aumento da desorganização psíquica até
o ponto de colocar em risco a unidade do Eu, a que o psicanalista vienense
chamou de pulsão de morte.
Administrar os destinos políticos dessa pulsão de morte é tarefa
essencial de qualquer sociedade. Quanto ao capitalismo neoliberal, Lacan
retratava-o como um modo de reprodução social que afirma não haver falta porque
os objetos que a suprem supostamente estariam disponíveis a todos no mercado
dos bens. Contudo, é exatamente o contrário. Ao conquistar um desses bens, é a
insuficiência dele que o sujeito encontra, relançando-se novamente à procura de
um novo objeto do qual possa extrair um mais-de-gozar. Esse movimento
interminável levou Lacan a concluir que o capitalismo não é senão um gestor da
falta-a-gozar.
No capitalismo de plataforma, isso tem significado criar
dispositivos de intensificação e de extensão do trabalho que operam garantindo
a promessa de grandes recompensas ou de pequenas bonificações para quem vencer
a concorrência, inclusive contra si, contra seu cansaço, desânimo, medo,
desgaste físico e psíquico. Em termos mais freudianos, os trabalhadores de
plataforma repetem um conjunto de procedimentos impelidos pelo anseio de
conquistar algo que possa pôr fim a seu desprazer cotidiano. No desespero de
voltar para casa sem esse “a menos”, aposta-se a si, seu corpo, sua existência,
como aconteceu recentemente em São Paulo com Thiago de Jesus Dias, entregador
da Rappi, que faleceu em decorrência de um AVC sofrido enquanto trabalhava
fazendo entregas. Nem a Rappi, nem um motorista de Uber chamado às pressas
pelos passantes lhe prestaram auxílio. Desconectada de processos criativos e
produtivos, a repetição se converteu, no caso de Thiago, no motor
desintegrativo dos laços no universo do trabalho e, no fim, da própria vida.
Thiago como metonímia de outros precarizados.
A repetição a serviço da desintegração dos laços é catalisada
pelo capitalismo de plataforma como uma de suas formas de gestão da pulsão de
morte. Por isso, quando não raro o trabalhador fracassa, ao seu redor não vê
senão concorrentes, no celular que carrega existe apenas um aplicativo
impessoal representando uma empresa intangível, e nas ruas que percorre
encontra-se dispersa a multidão sem rosto de consumidores que o avaliam.
Assumir individual e isoladamente a responsabilidade pelos próprios
sofrimentos, desvinculando-os de qualquer motivação político-social, é um dos
corolários do gerenciamento de si.
As injunções do e-market para
que o trabalhador nunca ceda nos esforços de autoultrapassamento se reduzem,
porém, a uma lógica meramente quantitativa, explícita na contagem infinita do
“a mais”. Ainda que em todos os cantos se faça apologia ao novo, da
intensificação do trabalho nunca resulta uma alteração qualitativa capaz de
colocar em questão as formas contábeis que o sujeito assume – diferente do que
Lacan entrevia quando fazia da pulsão de morte o motor de sua ética da
psicanálise. Ao tentar ser “a mais” de si, o trabalhador não faz outra coisa
senão repetir o mesmo.
Ao fim e ao cabo, a sentença dos juízes do TST é sintoma da
razão neoliberal da qual partilha: ela irrealiza os conflitos sociais,
particularmente aquele entre trabalho e capital, afirmando que exploração é
autonomia, determinação é flexibilidade, dominação é parceria. Não é preciso
muito para ouvir o que isso diz sobre a própria Justiça.
Fonte: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/uberizacao-aceleracao-frenetica-e-pulsao-de-morte/
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