Presidente Jair Bolsonaro fala com a imprensa
na saída do Palácio da Alvorada nesta segunda, 20 de abril.UESLEI MARCELINO / REUTER
Preparar-se para a guerra
Os últimos dias mostraram com precisão a tese de Freud que
o poder molda sujeitos, fazendo-os a sua imagem e semelhança. Ou alguém
esperava ver, em meio à pandemia pessoas fazendo buzinaço em frente ao
hospital?
Em 1939, pouco antes de Hitler atacar a Polônia e iniciar a Segunda Guerra, Freud lança seu último livro, Moisés e a religião monoteísta. Neste livro que
trata da constituição de identidades coletivas através de identificações a
lideranças, há uma ideia surpreendente, sintetizada em uma pequena frase:
“Moisés criou o povo judeu”. Ou seja, não se tratava de afirmar que a liderança
era a expressão dos traços de seu povo. Na verdade, o quadro estava de cabeça
para baixo. Aquele que ocupava o lugar do poder e prometia uma grande
transformação acabava por constituir o povo, por definir os traços prevalentes
de sua identidade coletiva. Ou seja, havia uma força produtiva do poder, não
apenas uma força coercitiva. Da representação do poder, vinha uma força de
identificação que moldava paulatinamente os sujeitos a ela submetidos, que os
transformava em seus afetos, em sua estrutura psíquica, em suas ações. O poder
molda os que a ele se assujeitam.
Freud
não conheceu o Brasil, nem nunca ouvi falar de Jair Bolsonaro.
Mas é certo que os últimos dias mostraram com precisão sua tese de que o poder
molda sujeitos, fazendo-os a sua imagem e semelhança. Todos estão a perceber
essa mutação na qual expressões de desprezo, indiferença e violência antes
inimagináveis de serem feitas a céu aberto e na frente de todos se tornam manifestações
cotidianas, em uma espiral em direção ao abismo que parece não ter fim. Ou
alguém realmente esperava ver, em meio a uma pandemia, pessoas
a manifestar na Avenida Paulista dançando com um caixão, fazendo
buzinaço em frente a hospital, zombando abertamente da dor e do desespero de
milhares de pessoas infectadas e lutando pela vida em situações hospitalares
precárias? Como se fosse o caso de expressar, da forma a mais aberta e brutal,
a indiferença em relação aos 2500 corpos mortos até agora, ao
menos se confiarmos nos números subnotificados. Como se fosse o
caso de repetir os “deslizes”, as “derrapadas”, ou melhor, os traços de caráter
de quem ocupa o poder.
Alguns podem
dizer que isto sempre esteve aí, na indiferença das classes mais altas ao
destino e as chacinas perpetradas contra as classes vulneráveis. Mas o pior
erro é não perceber as placas tectônicas se movendo por estar com os olhos
submersos na lógica repetitiva do “sempre foi assim”. Não, há algo novo a
acontecer. Pois não se trata apenas da conhecida máquina necropolítica do
estado brasileiro. Trata-se da explosão de rituais públicos de auto-sacrifício
e de violência. Trata-se de uma dinâmica “suicidária”. Erra quem acredita que
essas hordas envoltas na bandeira nacional “não sabem do perigo que correm”,
são “burras”, como se fosse simplesmente o caso de procurar explicar claramente
o que é uma pandemia para todos voltarem para casa.
Diante do
fascismo, Adorno e Horkheimer disseram um dia que nada mais estúpido do que
tentar ser inteligente. Nossa pretensa supremacia intelectual ainda irá nos
matar. Ela nos faz não ver como, no fundo, há uma parte da população brasileira
que deseja isto e se dispôs a jogar roleta russa com todos e com elas mesmas. É
este desejo que deve ser compreendido. Pois esta será sua forma de se
sacrificar por um ideal, mesmo que este ideal não prometa nada mais do que o
próprio sacrifício, nada além de um movimento permanente em direção à
catástrofe.
Neste
sentido, estamos a observar uma mutação impressionante. Mesmo sendo o pior
governo do globo terrestre diante da pandemia (comparado apenas a Bielorrusia,
ao Turcomenistão, e ao renegado
que governa a Nicarágua), o apoio a Bolsonaro não cai. Ele muda
paulatinamente. Setores da classe alta vão abandonando-o enquanto ele compensa
com adesões nas classes populares, repetindo um movimento que vimos
inicialmente com o lulismo. Dificilmente, este número mudará. Ele nem subirá,
nem cairá. Mas a qualidade deste apoio mudará. Ele deixará de ser simples apoio
para ser identificação profunda e aguerrida. Ao final, teremos um país com 30%
de camisas negras dispostos a tudo, pois acreditam estar em um processo
revolucionário de ressureição nacional. Este processo não tem mais retorno.
Não será a
primeira vez na história que uma dinâmica de afetos e crenças desta natureza
ganhou corpo. Esta implosão aberta de qualquer princípio elementar de
solidariedade, esse desprezo com os que morrem, esse culto do próprio suicídio
como prova de “coragem”, essa violência cada vez mais autorizada até a formação
aberta de milícias populares, esta crença em uma revolução nacional redentora,
isto tudo tem nome. Costuma responder pura e simplesmente por “fascismo”.
Movimentos
desta natureza sempre se aproveitam da fraqueza de seus adversários. Enquanto
Bolsonaro moldava uma parte da sociedade a sua imagem e semelhança, havia
sempre os especialistas em questões palacianas florentinas capazes de
identificar as intrigas que iriam “paralisa-lo”, os erros que indicariam que “acabou
para você”. Até pouco tempo, Bolsonaro foi descrito como uma “rainha da
Inglaterra”. Isto até ele mandar
embora seu ministro da Saúde sem que nenhum cataclismo anunciado realmente
ocorresse. Não, não há nada que irá para-lo, nenhum recuo ocorrerá.
Um projeto dessa natureza só é parado de forma brutal. Mas esta brutalidade
necessária não está na consciência dos atores políticos atuais.
Poderíamos
ter começado mobilizações contínuas pelo impeachment há um mês. Mais uma vez,
analistas finos diziam que não era a hora, que isto só fortaleceria o discurso
persecutório do Governo. Como se o Governo precisasse de nós para alimentar seu
próprio discurso persecutório e mobilizar suas hostes. Não, agora eles
denunciam um “plano” para derrubar Bolsonaro, sendo que a oposição sequer
conseguiu colocar um pedido de impeachment em marcha, sequer permitiu a maioria
de gritar por seu nome. No máximo, suas lideranças endossaram um pedido de
“renúncia”. Faltou pedir “por favor” a Bolsonaro para que ele caísse em si e se
afastasse de bom grado. Como dizia Maquiavel, a audácia é qualidade fundamental
diante da fortuna. Mas o único ator que demonstra audácia a altura da situação
é o próprio Governo. Em breve teremos uma tentativa de golpe vendida como
“contra-golpe preventivo”, sem que a oposição tenha feito nada mais do que
abaixos-assinados, petições e cartas públicas. A última a acreditar em uma
democracia parlamentar que simplesmente não existe mais.
Acrescente ao
quadro, o cálculo macabro que o Governo conseguiu impor a parcelas da
população. Para elas, trata-se de escolher entre a bolsa ou a vida, entre a
morte econômica certa e a morte física provável. Nesse cálculo, o certo acaba
por vencer o provável, ainda mais diante de setores da população submetidos ao
extermínio, ao desaparecimento, a chacina. Este é o grão de racionalidade da
situação apresentada por Bolsonaro. Ela só se sustenta porque a terceira opção
está interditada, a saber, nem a bolsa, nem a vida, mas os dois.
Diante disto,
que a sociedade constitua redes de auto-defesa contra o pior que está por vir.
Há duas semanas, pessoas que batiam panela em suas casas contra o governo foram
vítimas de disparos de balas de espingarda de chumbo. Em manifestações
pró-governo, cidadãos e cidadãs oposicionistas foram violentamente agredidos.
Quantas semanas ainda faltam para começar os linchamentos e as balas reais?
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