Os muros que separam os palestinos do mundo
Não basta massacrar um povo: também é necessária sua eliminação simbólica. Ao desumanizar os árabes, Israel reedita ideologia racista do “orientalismo”: “são terroristas ou refugiados, sem rostos nem histórias”
Publicado 28/05/2019 às 12:57 - Atualizado 28/05/2019 às 13:01
Começo este texto com duas passagens dos meus diários de viagem.
“Apuro meus ouvidos para escutar a conversa de pessoas que estavam sentadas próximas à minha mesa. Elas trocavam impressões sobre mais um dia de peregrinação em Jerusalém. Estávamos jantando em um restaurante de um hotel que recebe peregrinos de várias partes do mundo. Aos poucos a conversa deixou os temas religiosos e dirigiu-se para outros mundanos. Agora, os comentários concentravam-se sobre a parte palestina de Jerusalém [a Jerusalém Oriental]. Estavam impressionados com a diferença da organização entre o lado judeu e o palestino. ‘Vocês viram como as ruas são sujas?!’. O outro responde: ‘Eles são sujos!’”. (Jerusalém/Palestina, 20 de novembro de 2017)
“Passei a noite de 24 de dezembro em Belém (Bethlehem). No dia seguinte, ao voltar para Jerusalém, tive que atravessar o checkpoint 300. Observei os palestinos e as palestinas que passavam pacientemente pelas inúmeras etapas de controle até conseguir chegar ao outro lado. A fila andava lentamente e de repente parou. Um brasileiro quando passava pelo dispositivo de controle de metal [igual aos que existem nos aeroportos] foi obrigado a voltar inúmeras vezes. O som agudo e alto do aparelho anunciava que ele não tinha autorização para passar. Claramente constrangido, ele perguntava para que tudo aquilo. Sabia, afirmava ele, que o controle de segurança era importante, mas via um exagero em tudo aquilo. Falava com a voz entrecortada, enquanto vasculhava nos bolsos possíveis moedas que poderiam ser a origem de fazer aquele sinal disparar. Já estava sem cinto, sem sapatos…” (Jerusalém/Palestina, 25 de dezembro de 2017)
O que estas duas passagens têm em comum além de serem protagonizadas por pessoas brasileiras? A incapacidade de se entender onde se está. Mesmo estando presencialmente ali, eles não conseguiam ler, minimamente, o contexto em que seus corpos se moviam. Jerusalém Oriental vive, desde 1967, sob a ocupação militar israelense. Embora os palestinos e as palestinas que ali habitam paguem impostos, não têm direito aos mesmos serviços de qualidade que os oferecidos em Jerusalém Ocidental, a exemplo a coleta de lixo. Vivem sob o constante terrorismo do Estado de Israel, que quer expulsar (e tem expulsado) os palestinos de suas casas.
O brasileiro constrangido não percebeu que estava cruzando uma das obras-primas mais perversas do colonialismo israelense. Todos os dias milhares de palestinos se submetem aos rituais de humilhação impostos pelos soldados israelenses. (veja vídeo).
Estas duas passagens me levam a pensar sobre os limites de se apostar na viagem, ir lá, para se conhecer. Nestas duas situações pode-se notar que embora os turistas tenham atravessado lugares nos quais as assinaturas coloniais estão por todos os lados, não viram nada. Como é possível este tipo de cegueira? Esta pergunta, de certa forma, liga-se à minha própria perplexidade diante das políticas de extermínio implementadas por Israel contra o povo palestino. Não canso de perguntar e tentar encontrar respostas para as condições históricas que tornaram (e tornam) possíveis a contínua despossessão do povo palestino e a expansão territorial de Israel.
+ Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede. Veja como participar >>>
Todas as vezes que eu atravessava um checkpoint, ou quando escutava um relato de jovem ou criança palestina que tinha sido preso por Israel acusado de jogar pedra, eu me perguntava (sobre crianças presas por Israel ver: https://www.youtube.com/watch?v=dsqsNhu2heA): como é possível que isso esteja acontecendo? Faço esta pergunta reiteradamente. As perguntas funcionam como recursos íntimos de negação de qualquer tipo de normalização, a exemplo do discurso que afirma ser impossível reconhecer aos palestinos o direito ao retorno às suas casas e terras, conforme já definido pela Resolução 194/1948 da ONU. Impossível? Israel seria, ao contrário, a própria impossibilidade tornada real.
A pergunta também tenta produzir um ruído na resposta mais óbvia: Israel é Israel porque é uma base militar estadunidense no Oriente Médio. Não desprezo esta explicação, mas não acho que ela esgote a questão. Estamos presenciando o nível mais sofisticado de políticas de extermínios, ou necropolíticas (nos termos de Achille Mbembe), da histórica da humanidade. Já se passaram 71 anos deste que o holocausto palestino começou. O povo palestino continua espalhado pelo mundo. As condições de vida na Cisjordânia (e principalmente em Gaza) deterioram-se. As técnicas de matar implementadas por Israel aprimoram-se. Como o impossível torna-se real todos os dias? O que faz de israel, Israel?
Sionismo: etapa superior do orientalismo
Embora haja uma data, 15 de maio de 1948, como referência, sabemos que o sionismo começou a implementar seu projeto colonialista ainda no final do século XIX. Conforme apontou Edward Said, “a primeira onda de colonialistas sionistas chegou à costa palestina no início dos anos 1880” (p. XLVII, A Questão Palestina).
Os ashkenazim, judeus de origem europeia, quando chegaram à Palestina trouxeram em suas bagagens as representações seculares dos árabes, que Said irá chamar de Orientalismo. Minha hipótese é que Israel é a materialização do orientalismo na contemporaneidade, um orientalismo que não cansa de inventar novos dispositivos para se reproduzir, a exemplo dos livros escolares israelenses, conforme apontarei.
Avancemos na perspectiva histórica. O Orientalismo foi um campo de estudo erudito. No Ocidente cristão, considera-se que o Orientalismo teve início com a decisão do Conselho de Viena em 1312, no qual se estabeleceu uma série de cátedras de árabe, grego, hebraico e siríaco em diversas universidades europeias.
A construção histórica do árabe como um ser inferior, produzida desde a Idade Média, encontra na experiência de Israel sua síntese. Não se trata mais de narrativas de viajantes que visitaram países árabes e que voltaram fazendo relatos que confirmam o que já sabiam (o árabe é um ser inferior), como é longamente apontado por Said. Agora, é um Estado que se estruturou na negação contínua da existência do povo palestino. O sionismo é, portanto, o ponto de resolução do Orientalismo e que pode ser definido como uma das expressões do desejo imperialista europeu.
As representações dos árabes como seres inferiores não ficaram contidas nas fronteiras europeias. Viajaram e foi nos Estados Unidos que novas camadas foram adensadas, principalmente através da indústria cinematográfica que vai de Walt Disney a filmes como Lawrence da Arábia. Diria que, no caso brasileiro, o orientalismo chegou pelas mãos, ou melhor, pelos olhos, estadunidenses. Foram principalmente os filmes de Hollywood que nos ensinaram a olhar o Oriente: olhar sem ver. Desconfio que os nossos turistas brasileiros não viram a opressão porque não viram o povo palestino. O que comprova que os sionistas utilizam largamente a herança orientalismo para seguir negando a existência do povo palestino.
Entre a representação do árabe no livro a Divina Comédia (de 1555) de Dante Alighieri e o Estado de Israel há séculos de interesse europeu contínuo em produzir conhecimento sobre um ser, uma espécie, que foi caracterizado como portador de uma diferença inferiorizada em relação ao europeu. E quando eu digo “produzir conhecimento”, não estou referindo-me a operações mentais neutras. A produção do conhecimento aqui deve ser entendida como a produção do ser árabe e não sua descrição. Nestas operações mentais realizadas por estudiosos, escritores, pintores e diretores de cinema, a única coisa que não interessava era saber como o próprio árabe se representava.
Quando Dante escreveu a Divina Comédia o inimigo a ser combatido era a figura que ameaçava o sistema eterno e universal de valores cristãos: o profeta Maomé. Conforme apontou Said:
“(…) Antes de chegar a Maomé, Dante passa por círculos que contêm pessoas cujos pecados são de ordem menor: os lascivos, os avarentos, os glutões, os hereges, os coléricos, os suicidas, os blasfemos. Depois de Maomé existem apenas os falsificadores e os traidores (que incluem Judas, Brutus e Cassius) antes de se chegar ao próprio fundo do inferno, que é onde se deve encontrar o próprio Satã” (p.111, O Orientalismo).
O Islã e o Profeta Maomé são identificados como figuras ameaçadoras, que provocam pânico. Qual seria a figura na contemporaneidade que reatualiza estas sensações? O terrorista. Muçulmano/terrorista/árabe são termos que se tornaram intercambiáveis. E Israel é um dos lócus de produção incessante desta intercambialidade. Então, quando o turista brasileiro se vê constrangido pelas idas e vindas impostas pelos dispositivos no checkpoint e diz que entende que a segurança é importante, valeria perguntar: importante para quem? Por que? Possivelmente a resposta seria: para proteger Israel contra os terroristas.
O massacre físico do povo palestino se sustenta na sua eliminação simbólica. Armas, imagens e palavras são dispositivos bélicos, cada um com sua especificidade, mas todos articulados em torno de um objetivo estratégico: o povo palestino deve desaparecer. É da imaterialidade das palavras e imagens que Israel estrutura a legitimação da violência. Em que consiste esta violência simbólica? Há dois eixos discursivos conectados: o não reconhecimento da existência de um povo que habitava as terras que serviriam para o território-cemitério de Israel (“cemitério” porque em cada pedaço de metro quadrado construído por Israel há uma história assassinada, memórias negadas, corpos palestinos enterrados). Por outro, a ressignificação do “árabe” como ser genérico, sem rosto, sem singularidade.
Conforme apontou Said, “nos filmes e na televisão, o árabe é associado com a libidinagem ou com a desonestidade sanguinária. Ele aparece como um degenerado excessivamente sexuado, capaz de intrigas inteligentemente tortuosas, é verdade, mas essencialmente sádicas e traiçoeiras. Nos documentários e nos noticiários, o árabe é sempre mostrado em grandes números. Nada de individualidade, nem de características ou experiências pessoais. A maioria das imagens representa fúria e desgraça de massas, ou gestos irracionais (por isso, irremediavelmente excêntricos).” (p. 383, O Orientalismo)
Será que a caracterização do árabe como um ser aberrante, não desenvolvido, inferior, em contraposição ao homem ocidental, racional, desenvolvido, humanitário foi superada? Não. O sionismo trata de fazer o trabalho instrumental acumulado por séculos de estudos europeus sobre a “mente árabe”.
O sionismo é o mais jovem herdeiro da ideologia racista dos orientalistas. São eles que seguem desumanizando os palestinos, reduzindo-os “à condição pouco tolerada de incômodo” (E. Said. p. LIII, A Questão Palestina). A desumanização, fundamento que legitima todas as políticas de extermínios, transformou-se em políticas educacionais.
No livro Ideologia e propaganda na educação: A palestina nos livros didáticos israelenses, Nurit Peled-Elhanan afirma:
“Meu interesse específico pelos livros escolares advém da convicção, que compartilho com outros pesquisadores tanto de Israel quanto de outros países, de que, para além de todas as outras fontes de informação, esse tipo de material didático permanece um instrumento poderoso por meio do qual o Estado molda formas de percepção, categorização, interpretação e memória que servem para determinar identidades pessoais e nacionais.” (página 26)
Ela mesma, uma judia israelense, nos relata suas memórias dos tempos escolares:
“Acrescento um comentário pessoal aqui: na minha infância, nos anos 1950-1960, em todo 15 de Shevat (Ano Novo das Árvores, segundo a tradição judaica) era costume sairmos com a nossa classe para plantar árvores nas florestas criadas pelo Fundo Nacional Judaico, como as crianças judias israelenses fazem ainda hoje, e nos diziam que estávamos recuperando as magníficas florestas bíblicas que os invasores árabes haviam destruído com seus rebanhos quando “nós” estávamos fora.” (p. 36)
Os estudantes israelenses aprendem que os massacres, entre eles o de Deir Yassin, não foram resultado de uma política planejada, intencional de “limpeza étnica”. Este termo (limpeza étnica) tão desagradável de pronunciá-lo é milagrosamente transformado em “expulsão organizada”.
Os livros didáticos não apresentam — seja verbalmente ou visualmente — nenhum aspecto social ou cultural positivo da vida palestina. Segundo Nurit, “nenhum dos livros contém fotografias de seres humanos palestinos e todos os representam por símbolos racistas ou imagens degradantes, como terroristas, refugiados e agricultores rudimentares – os três ‘problemas’ que constituem para Israel.” (p. 62)
Uma das estratégias retóricas de desumanização é referir-se aos massacres por quantidade, recurso amplamente utilizado nos livros didáticos israelenses para referir-se a qualquer questão referente aos/às palestinos/as. Assim:
“A impressão criada por essa forma de se referir a palestinos mortos ou vivos, somada à ausência de fotografias ou relatos sobre os indivíduos palestinos e o mundo da vida palestino, é a de que eles são todos iguais e existem apenas em bandos ou massas, como gado. Até mesmo a morte de palestinos em massacres ou guerras é relatada como morte de animais, por número ou quantidades aproximadas; em diversas descrições sobre o massacre de Deir Yassin, encontramos o seguinte: 245 corpos foram contados na aldeia. Ou: número de mortos não é exato e vai de 100 a 254.” (p. 100) Este recurso retórico não é uma invenção sionista. Foi amplamente utilizado nos estudos europeus para “descrever” populações colonizadas. Nos livros didáticos, no entanto, recupera fôlego e projeta-se como instrumento produtor de subjetividades colonizadoras, de jovens israelenses que irão servir às Forças Armadas Israelenses.
É como se os textos sobre judeus e palestinos se movessem como rodas-gigantes: quando se referem aos judeus, a roda é paralisada na parte inferior e somos levamos a olhar nos olhos que suplicam ajudam. As fotos e textos nos relatam histórias de judeus, pessoas singulares, com corpos definidos, olhares cortantes. A roda-gigante sobe. E é lá de cima que somos apresentados a uma massa indefinida, sem singularidade, sem rosto e, portanto, impossível de gerar no expectador ou leitor qualquer tipo de relação ética com este outro que sofre. Então, como pode esta massa de gente, irracional, falar por si?
O silenciamento, ou a negação de agência do povo palestino, já amplamente acionado pelos orientalistas, é atualizada quando, por exemplo, o New York Times (NYT) cobre a primeira fase do plano de paz Trump, um tipo de “workshop” econômico que acontecerá em Bahrein, no qual se espera que os palestinos sacrifiquem, mais uma vez, suas demandas políticas e direitos. Mais uma vez, não há uma única voz palestina convidada para se posicionar, embora sejam seus destinos (mais uma vez) que estejam sendo pautados. Todos os cinco especialistas ouvidos pelo NYT são vinculados ao sionismo. Mas o que esta gente sem rosto teria para falar sobre si mesmo?
Conclusão
No livro A questão Palestina, Said pergunta: “O que Israel, o que os Estados Unidos e o que os árabes vão fazer com os palestinos?” (p. LV). Esta pergunta evoca, interpela para a responsabilidade de atores que estão diretamente implicados na catástrofe palestina. Devemos ampliá-la. O que nós iremos fazer? O mundo segue lamentando (às vezes) as mortes e a despossessão continuada do povo palestino. Mas é um lamento anêmico, típico da Era da informação fragmentada. São segundos dedicados a ler a manchete do dia: “Tropas de Israel ferem 47 manifestantes palestinos na Faixa de Gaza” (15 de maio de 2019). E, como os turistas brasileiros, logo a cegueira volta a instalar-se.
Referências
Said, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente, Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2015.
___________. A questão palestina, São Paulo: Unesp, 2012.
Peled-Elhanan, Nurit. Ideologia e propaganda na educação: A palestina nos livros didáticos israelenses. São Paulo: Unifesp/Boitempo, 2018.
Checkpoint 300. https://www.youtube.com/watch?v=WNsX5iY-x-U, 4:36’
Tropas de Israel ferem 47 manifestantes palestinos na Faixa de Gaza, https://veja.abril.com.br/mundo/tropas-de-israel-ferem-47-manifestantes-palestinos-na-faixa-de-gaza/, 15 de maio de 2019).
Israel – israelenses torturam e prendem crianças palestinas.
https://www.youtube.com/watch?v=dsqsNhu2heA, 1:44’
https://www.youtube.com/watch?v=dsqsNhu2heA, 1:44’
Trump to Open Middle East Peace Drive With Economic Incentives, In: https://www.nytimes.com/2019/05/19/us/politics/trump-middle-east-peace-plan.html?action=click&module=Top%20Stories&pgtype=Homepage, (19 de maio de 2019)
Comentários
Postar um comentário