"A verdade é que hoje o Brasil é um pária internacional”, diz
especialista em saúde global
27 de abril de 2020
Diariamente, na
medida em que a multiplicação de infecções e mortes pela
Covid-19, doença causada pelo novo
coronavírus, no mundo é atualizada para os
brasileiros, chegam também as incessantes informações sobre as reações de
lideranças internacionais à pandemia. Ao mesmo
tempo que o novo coronavírus une a maior parte dos países
na mesma crise, as mudanças geopolíticas parecem nunca ter estado
tão presentes no dia a dia dos brasileiros.
A Agência Pública conversou
com a especialista em saúde global Deisy Ventura
sobre essa conjuntura. Professora e pesquisadora da Faculdade
de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP),
ela avalia que a crise escancara o acirramento de uma
competição econômica e diplomática. “A narrativa que será
construída a respeito dessa pandemia e do impacto dela
sobre tudo está em disputa.”
Com o fechamento das fronteiras,
enquanto o isolamento social segue como principal
recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), a população mundial
assiste ao início de uma crise econômica global com poucos
precedentes. Instabilidade do mercado de petróleo, sucessivas baixas nas bolsas
de valores, tombos nos Produtos Internos Brutos (PIB) de diversos países
e a cotação do dólar em reais batendo recordes
semanais. Esses fatos, normalmente ignorados pela
maioria da população, parecem cada vez mais importantes.
Em paralelo, a retenção pelos EUA de insumos
médicos importados da China pelo Brasil e por outros
países, a decisão do presidente estadunidense, Donald Trump, de
acabar com o financiamento da OMS
e o choque da diplomacia internacional com a postura
negacionista do presidente Jair Bolsonaro
aproximam a geopolítica do cotidiano de
todos que temem ser contaminados.
Para Deisy, algumas consequências
são claras. A postura do governo dos EUA em reter
cargas compradas por outros países pode ser considerada um “crime internacional de
pirataria” e levará a uma “desconfiança inimaginável” nas
relações entre o país e as demais nações. A falta de
interesse de Trump em liderar a resposta à crise sanitária
e o protagonismo da China nesse aspecto devem
inverter a relação de poder entre os países.
E o Brasil se tornou um “pária internacional”.
“O Brasil vinha tendo um papel de
liderança internacional, inclusive nas questões
de saúde. O país é referência internacional em diversos
programas [nessa área]. Hoje o Brasil é ridicularizado,
hostilizado. Existe um desconcerto entre os governantes dos Estados
mais importantes do
mundo em relação ao que é feito aqui”, afirmou.
Quais os principais fatos recentes relacionados
à pandemia que você acredita que terão impacto
na geopolítica mundial?
A grande
mudança que temos em relação a outros cenários de
crise precedentes é a absoluta ausência de liderança dos
EUA. Isso não é novidade, há um declínio do protagonismo
norte-americano nas relações internacionais já há alguns anos. Ele se intensifica
com a gestão Trump. Mas, conosco, que trabalhamos
com a cooperação internacional – e
principalmente a cooperação internacional em saúde –, é desconcertante
ver os grandes foros internacionais e as iniciativas, os programas de
cooperação pontuais envolvidos na resposta na completa ausência,
omissão dos EUA, na impossibilidade dessa liderança.
Quando houve a emergência internacional do
ebola em 2014-2015, o então presidente Barack Obama
mandou 3 mil marines para a África
ocidental, liderou nas Nações
Unidas a criação da missão contra o ebola, a primeira
missão da ONU de natureza sanitária,
lançou a agenda da Segurança da Saúde Global, que é quase
uma agenda rival
à da Organização Mundial da Saúde [OMS]. Quer
dizer, a gente teve um protagonismo enorme dos EUA e agora
temos uma crise infinitamente maior do que a do
ebola, que já foi uma crise de grande repercussão,
e a gente vê esse vazio de liderança dos EUA
e o crescimento da China. A China consegue
reverter sua desvantagem inicial de ser o local onde
surgiu a Covid-19 e se torna o grande
líder da cooperação internacional.
Claro que as eleições presidenciais dos EUA podem
reverter essa constatação, mas é difícil imaginar que os
EUA voltem a ser o player que foram
antes da pandemia.
E o Brasil?
Mesmo sentido. Um elemento geopolítico
desconcertante é a absoluta ausência de
liderança do Brasil. O silêncio
do Brasil é sentido na configuração da política aqui,
principalmente da América do Sul, mas não só,
porque o Brasil vinha tendo um papel de liderança,
inclusive nas questões
de saúde. O país é referência internacional em diversos
programas, na questão do combate ao HIV e à aids, o combate ao tabaco,
bancos de leite materno, a chamada cooperação Sul-Sul,
desenvolvida nas últimas décadas, principalmente com os países africanos de
língua portuguesa. E aqui, no
âmbito da Unasul, o Brasil sediou, no ano
passado, o Instituto Sul-Americano de Governo
e Saúde, que formava quadros dos governos nacionais na área
de saúde pública. Então, o protagonismo
brasileiro é evidente em iniciativa como o banco
de medicamentos da Unasul, que poderia ser extremamente
importante agora, [para] negociar juntos a compra de insumos. Então,
essa ausência de liderança brasileira também é um elemento
muito importante.
De que forma a senhora
vê a postura de Donald Trump, de interceptar insumos comprados pela
América Latina da Ásia que passam pelo país? Como isso pode
impactar a relação dos EUA com as demais potências?
Essa conduta do presidente Donald
Trump é um crime. O comportamento
norte-americano é extremamente destrutivo. Os EUA
são um país rico, com uma enorme planta
industrial, que não deveria requerer esse tipo de atitude.
Esperamos de países que se autoproclamam
democracias que não tenham atuações que violem a ordem
jurídica internacional. Esse comportamento de
pirataria é considerado um dos primeiros crimes
internacionais.
Interceptar e tomar para si mercadorias e
produtos que são dos outros – isso podemos tranquilamente chamar
de pirataria – não contribui nada com a relação harmônica
entre países; pelo contrário, gera uma
desconfiança que chega a níveis inimagináveis entre os EUA
e outros países.
Na semana passada, os EUA
anunciaram a suspensão do financiamento do país à OMS,
criticando a gestão do
órgão internacional. A partir dos posicionamentos dos EUA e com
os recursos que a China teve para lidar com seu
pico da Covid-19, há uma intensificação da alternância de
poder econômico entre esses países? Alguns pensadores
sugerem que estamos entrando em uma era
pós-ocidental. A senhora concorda?
Eu acredito que nós precisamos esperar algum tempo
para chegar a essas conclusões. A gente não pode
ter a ilusão de que nós já temos ideia
do que será a pandemia da Covid-19. Ainda estamos
longe do final desse processo. A posição da China
não é uma posição que escape a controvérsias. Se
trata de um regime ditatorial que provavelmente omitiu
informações no início do surto epidêmico e que provavelmente
até hoje não nos oferece um diagnóstico fidedigno e
transparente do que aconteceu e acontece por lá.
Para responder a essa pergunta,
acredito que precisamos ter o resultado das eleições dos
EUA. Esse é o elemento crucial para avaliar essa resposta. Se
tivermos ainda um governo de extrema direita nos EUA, com essa forma
de proceder politicamente, que implica o declínio do
multilateralismo e a impossibilidade da construção de
objetivos coletivos entre os Estados, nós temos um cenário muito
diferente, de imaginar um governo
democrata que retoma a agenda do multilateralismo, num
cenário no qual os EUA
voltam a disputar a liderança pelo
menos em alguns temas essenciais.
Como os comentários do ministro da Educação e de
Eduardo Bolsonaro, bem como a onda de fake
news em relação à criação do vírus em laboratório
na China,
afetam a relação do Brasil com o país? A tentativa
de intermediação de Jair Bolsonaro é suficiente para preservar
as relações entre os países?
Os movimentos extremistas estruturam sua ação política
na construção de adversários, a partir de raciocínios e conjuntos
de ideias simplórios, de fácil assimilação, de
maneira a ocultar a complexidade das situações políticas,
econômicas e sociais. Então, a complexidade dessa
situação e a complexidade das relações internacionais
são incompatíveis com o modus
operandi dos movimentos extremistas. Nós já os conhecemos há
muito tempo, eles marcaram o século 20, em particular
com o nazismo, o fascismo, o stalinismo. Então,
essas construções de adversários são constitutivas dos movimentos de
extrema direita, e, quando essa construção é feita em torno
de uma figura estrangeira, no caso da China, que tem uma
cultura muito diferente da nossa, tende a ser extremamente
eficaz.
De maneira que é difícil
imaginar que a tentativa de intermediação de Bolsonaro seja
eficiente, porque esses movimentos continuam atacando a China.
E a China estruturou uma estratégia de resposta extremamente
eficiente. Ela não deixa esse tipo de acusação sem resposta.
Então, o nível de tensão não parece estar sendo reduzido.
Não vejo perspectiva de redução porque
essa é a característica, a forma de
mobilizar a base eleitoral de Bolsonaro. A geração de
insultos é o que mantém a base eleitoral [de
Bolsonaro] mobilizada. Admitir a importância da China,
deixar de criticar a China, pode gerar uma contradição muito
significativa do modus
operandi político e eleitoral do nosso presidente.
Bolsonaro foi denunciado no Tribunal Internacional de
Haia devido à sua negligência com as políticas de isolamento. Ele foi
denunciado também como o pior líder mundial a lidar com o novo
coronavírus pelo Washington Post. De que forma essas
denúncias impactam a posição do Brasil, econômica e
simbolicamente?
A verdade é que hoje o Brasil é um pária internacional. O Brasil é ridicularizado,
hostilizado. Existe um desconcerto entre os governantes dos Estados
mais importantes do
mundo em relação ao que é feito
no Brasil. É importante notar que a clivagem na
tomada de posição em relação à pandemia não se dá
por espectro ideológico ou partidário. Há líderes de extrema
direita que perceberam, na pandemia, uma oportunidade de
concentrar poder. Foi o caso da Hungria, de Israel.
Nós tivemos países que tiveram inicialmente posições
semelhantes à do presidente Jair Bolsonaro, caso dos EUA e do Reino Unido,
e que depois recuaram em função do aumento do número
de casos. Ou seja, a tangibilidade das
mortes da doença, da sobrecarga do sistema de saúde,
se impôs sobre o devaneio ideológico.
Então, o Brasil se encontra em uma posição sui generis, no
sentido de que a extrema direita brasileira que está no
governo não se valeu, pelo menos
até o momento, da pandemia, para ampliar seus poderes; ao
contrário, ela tem sido controlada por freios e contrapesos
importantes da nossa ordem constitucional, tanto a estrutura
federativa quanto a repartição de poderes, o controle que o Legislativo
e o Judiciário têm exercido de pelo menos uma parte das posições
nefastas do governo
federal em relação à saúde pública. A imprensa
também tem atuado de uma forma admirável,
fazendo a comunicação de risco, que é uma
expressão técnica que a gente utiliza na resposta às
emergências internacionais. Quem tem feito essa comunicação no plano
nacional tem sido a imprensa, na omissão e nos
ruídos que existem na comunicação que vem
emitida da União. São governadores, prefeitos e principalmente,
no plano nacional, a imprensa que têm atuado, entidades
sociais também, especialistas, universidades, institutos de
pesquisa, a classe médica, o pessoal da saúde,
nós que temos desempenhado esse
papel da comunicação de risco.
A quebra de patentes de medicamentos, medida apresentada no
PL 452/2020, que chegou às mãos de Rodrigo Maia em 2 de
abril, deve ser uma tendência mundial? De que forma os conflitos por
licenças podem prejudicar e atrasar o fim da pandemia? A suspensão de
patentes é algo que já foi
colocado em prática em outros momentos históricos de
epidemias?
A questão das patentes é curiosa, nós
vivemos isso durante a pandemia de gripe H1N1, entre 2009 e
2010, a pandemia que começou no México e
envolveu a criação de porcos, tanto que inicialmente
essa gripe era chamada de gripe suína. Nessa época, nós tivemos com muita
força essa questão das patentes, porque,
diferentemente da Covid-19, para a gripe H1Nn1 nós
tínhamos o tratamento, que era o Oseltamivir,
conhecido como Tamiflu. O Brasil inclusive tinha reservas de
Oseltamivir, que negociou a preços mais vantajosos
com a Roche. Ele foi encapsulado pelo
laboratório da Fiocruz de Manguinhos, e nós
não tivemos a falta desse medicamento no Brasil.
A gente espera que as regras de propriedade
intelectual sejam flexibilizadas diante da consciência do potencial
danoso para a saúde pública no mundo inteiro desses episódios.
Mas é preciso lembrar que não basta
ter a chamada quebra de patente, é preciso ter os
insumos, a capacidade de fabricar. Então, é preciso muito
mais do que quebrar a patente. Nesse sentido,
acho que a questão é anterior. É muito
importante ter um parque industrial autônomo; é muito
importante que exista uma indústria farmacêutica
nacional, que existam indústrias, que nós não sejamos
dependentes da seara internacional.
De que forma a senhora
acredita que a pandemia e a quarentena
vão afetar o crescimento dos países emergentes? E, no caso de
países cuja economia é primária, podemos viver uma crise de
desabastecimento?
Haverá uma grande crise econômica mundial – as bases dela já
estão dadas–, e vamos ver como os países emergentes vão se posicionar
nela. Tudo está em disputa. Se tem
algo que é importante dizer nesse
momento, é que o atual cenário geopolítico
está em disputa, a narrativa que será
construída a respeito dessa pandemia e do impacto dela
sobre tudo, sobre as relações internacionais e a economia. Tudo isso
está em disputa. E não temos ainda elementos essenciais de
resposta, como qual será a amplitude de fato
dessa pandemia em países emergentes como o Brasil;
como ela vai se desenrolar; o quanto ela será catastrófica; se os
sistemas de saúde desses países vão sobreviver; como
sobreviverá a economia desses países e com quais características.
São grandes traumas que podem ocorrer, e ainda não temos
essa medida.
Obviamente haverá crise de desabastecimento em alguns
lugares, pontualmente. Quando as respostas são bem organizadas, bem
estruturadas, não há por que haver desabastecimento
generalizado. Não foi adotado em nenhum lugar
do Brasil o isolamento absoluto, então os serviços
essenciais estão preservados em todos os lugares,
inclusive o acesso à alimentação.
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