Polícia do Iraque distribui alimentos para a
população no último dia 13.AMEER AL MOHAMMEDAW/DPA /
EUROPA PRESS
A ironia dos trilhões
gastos em armas incapazes de matar um vírus e de nos fazer felizes
Se não fosse trágico, porque cria dor e morte, seria até
cômico que um vírus seja capaz de se vingar da suposta onipotência do ‘Homo
sapiens’
São quase dois trilhões de dólares (10 trilhões de
reais) o que as nações gastam a cada ano em armamento de guerra
cada vez mais mortífero e sofisticado. Para que, se depois chega um vírus invisível contra o qual nem
mesmo a bomba atômica adianta? Para que se esses arsenais não construirão um
mundo mais feliz e mais justo?
O
drama que a sociedade está vivendo, desconcertada, assustada e impotente diante
desse vírus, é uma boa lição de humildade às nações mais poderosas. Pensemos
somente nos Estados Unidos da América com um Presidente guerreiro como Donald Trump incapaz de parar o vírus. A
honradez de um povo e sua segurança não passam pelas armas de guerra. E
personagens arrogantes como Trump que são exemplos de discórdia e que entram em guerra até com a OMS em um momento tão
doloroso à humanidade vão na contramão do sentir da comunidade mundial.
Na América
que se sente poderosa e invulnerável por ter as armas mais sofisticadas da
terra, um simples vírus acaba de deixar sem trabalho e comida 22
milhões de pessoas.
Se somente
uma parte dessa barbaridade gasta a cada ano em fabricar novas armas fosse
empregada em melhorar a saúde e pesquisa médico-científica, e em engendrar uma melhor
justiça social, hoje as maiores potências armamentistas não se sentiriam tão
impotentes e desnorteadas com o novo vírus.
Do papa
Francisco rezando tristemente sozinho na Basílica de São Pedro vazia, aos
filósofos e sociólogos de todos os credos políticos e religiosos estão se
mobilizando para que essa tragédia que está castigando a arrogância e a cobiça
humana sirva como alerta a uma civilização que se sentia até ontem tão forte e
segura com suas armas de guerra.
Se não fosse
trágico, porque cria dor e morte, seria até cômico que um vírus seja capaz de
se vingar da suposta onipotência do Homo sapiens.
A pergunta
que hoje se fazem os pensadores em todo o mundo é se essa lição de humildade a
que o coronavírus está nos submetendo servirá pelo menos para nos fazer
repensar nosso modo de vida até hoje enlouquecido pelo consumismo e o deus do
lucro a qualquer custo. Se servirá para repensar nossas estruturas atuais de
poder injustas e classistas que condenam milhões de pessoas à pobreza e até à
fome e à insegurança.
Ou se, pelo
contrário, sairemos desse inferno ainda mais orgulhosos deixando no
esquecimento o grito dos sem voz porque foi sequestrada pelos novos poderosos.
Esses poderosos que poderiam sair com mais vontade de dominar o planeta
voltando a apostar mais na força das armas e do dinheiro do que na regeneração
de uma nova esperança universal.
Nunca é
tarde, entretanto. E esse teste inédito para nossa geração pelo global e o
imponderável também pode fazer o milagre de despertar uma nova consciência social
de nossa fragilidade e onipotência. Pode servir para recriar juntos uma nova
civilização menos baseada no poder e na cobiça de um punhado de pessoas que
tiranizam a maioria.
E para tomar
consciência de que todos, sem distinções classistas, somos vulneráveis. Que
precisamos nos armar de maior compreensão com a dor alheia. Que as melhores e
mais eficazes armas são as das mãos e corações abertos à solidariedade, à
compaixão e à procura da paz a todos.
Melhor um
mundo com mais medo das armas invisíveis e imponderáveis da natureza, a que
estamos maltratando e humilhando, do que a arrogância de nos sentir donos das
lojas de armas fabricadas com o sangue dos que sempre pagam a conta da dor.
Que essa
tragédia se transforme na humildade de nos saber todos tão insignificantes que
um simples vírus desarticula o mundo.
Nada pode ser
pior para nossa civilização do que não saber entender a lição que a natureza
tão mortificada e depredada está nos impondo.
Seria uma
piada se os que até hoje dominaram o mundo com um capitalismo assassino
despertassem do susto da pandemia como se nada houvesse ocorrido.
O que a
humanidade está vivendo nesse momento não é um “sono ruim em uma pousada ruim”,
na expressão de Cervantes em Dom Quixote, e sim uma chamada de
atenção para nos despertar de nosso sonho imoral de que os pobres seguirão
aceitando continuar sendo carne fácil de resignação.
A dor e a
raiva dos sempre humilhados e desprezado pelos que sentem-se amos de todos
porque são os donos das armas de morte, podem se transformar em um novo vírus
que derrubará seus sonhos de onipotência.
Ou os
poderosos pensam que os pobres não acabarão um dia se cansando de se conformar
pacificamente com as migalhas que caem de suas mesas?
A tragédia do
coronavírus pode servir, como última lição, aos que decidiram que eles são os
donos da vida dos outros, entendam que querer perpetuar essa distância entre
saciados e famintos pode também acabar sepultando a eles.
Ainda temos
tempo. Que esse retiro forçado de todos nos sirva para refletir que, ou
aceitamos no futuro viver com mais simplicidade, sem consumismos desenfreados,
sem nos importar de que existam pessoas deixadas à sua própria sorte, ou todos
podemos acabar vítimas dos imponderáveis da natureza que possui um código de
comportamento que não é o nosso.
Se não
entendermos a gravidade simbólica dessa pandemia teremos saído dela todos
mortos física, social e até espiritualmente.
O vírus nos
fez ver que estamos em um fim de época, de revisão do conceito de sociedade,
algo como foi o fim da escravidão.
Esse teste
nos obriga a repensar conceitos que acreditávamos imutáveis e intocáveis como a
divisão de classes, o sentido da globalidade e das fronteiras, o injusto
sistema financeiro. E até da moeda e do dinheiro. Também nos obrigará a uma
revisão da cultura e da religião.
Se nada mudar
depois dessa convulsão teremos perdido a oportunidade de começar a ensaiar
juntos um modo diferente de ver e organizar um mundo em que exista um lugar
digno para todos.
Mas há uma
estrela que brilha no céu ofuscado desse momento. Cresce o número de pessoas
que se comovem com a dor alheia e oferecem exemplos de generosidade inédita em nossa
sociedade egoísta.
Duas pequenas
histórias me emocionaram e me doeram ao mesmo tempo: a primeira na Itália, onde
um padre no hospital recusou o respirador para oferecê-lo a alguém mais jovem.
A segunda, a mãe brasileira doente junto com o filho de 24 anos. Ela deixou ir
antes ao hospital lotado o filho que acabou morrendo e a mãe que por fim se
salvou sequer teve o consolo de poder se despedir de seu filho. São fatos reais
e sentimentos de empatia que estão despertando o melhor que temos dentro de nós
e que o turbilhão da vida havia escondido.
É o rosto
luminoso e regenerador do ser humano que a tragédia está resgatando e nos diz
que a esperança de um mundo mais humano e compassivo ainda não morreu.
Ou será
utopia? Talvez, mas a verdade é que sem uma adição de esperança e nas mãos
somente dos profetas do pessimismo, o abismo de dor que nos espera será muito
maior.
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