TRANSFORMAÇÕES NA ERA DIGITAL, CRIAÇÃO DE UM “INCONSCIENTE VIRTUAL”?



TRANSFORMAÇÕES NA ERA DIGITAL, CRIAÇÃO DE UM “INCONSCIENTE VIRTUAL”?


Patrícia Cabianca Gazire*
Hoje, nós não mais acessamos a Internet – vivemos dentro dela. Mas como o mundo digital afeta nosso modo de vida? Há mudanças criativas em nossa maneira de pensar decorrentes do convívio com a Internet? Usamos a tecnologia para estar mais próximos de quem amamos? Ou ela nos estimula a ficar fora do convívio social? Afinal: a realidade virtual estimula ou nega uma vivência no mundo real?
Os avanços tecnológicos ampliaram o espaço dialógico do ser humano, de modo a permitir conversas com pessoas em vários locais do mundo. Entretanto, nessas conversas, dialogamos não apenas com seres humanos, mas com um elemento outro – os algoritmos: núcleos de inteligência que não são mais humanos.
Os algoritmos são fórmulas matemáticas usadas pelo sistema de inteligência artificial para resolver problemas por meio do estabelecimento de relações de analogia e semelhança. Eles criam e armazenam um conjunto de informações sobre nós mesmos sem que tenhamos consciência. Essas informações são coletadas não mais a partir do que fazemos conscientemente, mas a partir do que fazemos sem saber: usos habituais dos smartphones, gestos detectados por meio dos tabletes, gostos e paixões extraídos de postagens ou conversas trocadas na pelas redes sociais na Internet. Ou seja, os algoritmos acabam nos conhecendo melhor do que nós mesmos.
O deslocamento da noção de si mesmo para além da consciência deixa de ser um fenômeno novo para o pensamento ocidental a partir do fim do século XIX, início do XX. Freud sintetizou e trabalhou o conceito de inconsciente, e deslocou a noção do “si mesmo” para além dos aspectos conscientes do psiquismo. Em seu texto “O Inquietante” (1919), o autor elabora a hipótese do inconsciente discutindo a experiência do “duplo”. A partir de um exemplo autobiográfico em que vê no vidro do trem a imagem de um estranho para em seguida se dar conta de que se tratava do reflexo dele mesmo, o autor exemplifica uma das maneiras do inconsciente se exprimir. Parte da ideia da ação do recalque, mecanismo de defesa que isola os conteúdos inconscientes em um núcleo pulsional – o id. Em determinados momentos da experiência cotidiana, certos conteúdos escapam ao recalque e atingem a consciência.
No caso do fenômeno do “duplo”, trata-se de uma vivência primitiva anterior ao surgimento do eu, mas que está em sua essência. É uma vivência especular, em que o eu ainda não formado encontra uma organização em sua relação com o outro (o primeiro objeto de cuidados, a mãe, o adulto), mas sem ainda dele se diferenciar. Mais precisamente, uma síntese do eu é dada pelo olhar do outro e pelo investimento de desejo que o “outro” faz no “eu”, a fim de que ele se torne “um” (a sensação de que se é inteiro, de uma identidade do eu).
Essa vivência primitiva do “duplo” ou de ser “dois” em “um”, antes de se separar em uma identidade definida, é recalcada e armazenada no inconsciente. Ela se aproveita de uma “falha do recalque” para, na vida adulta, se apresentar como projetada “fora do eu”, já que não pertence mais ao aparato de vivências identitárias do eu mais desenvolvido. Diante dessa visão de um “outro” que está fora de mim, mas que, na verdade, sou “eu mesmo”, o sujeito tem a sensação de um estranhamento que lhe é, ao mesmo tempo, familiar, o que Freud chama de “inquietante” (Unheimlich).
O fenômeno do “duplo” exemplifica bem o funcionamento do inconsciente – ligado à possibilidade de fantasiar, de criar o mundo ficcional, de se saber separado do mundo real pela linguagem.
A pergunta que fazemos a nós mesmos diante do armazenamento de informações pelo algoritmo e do controle de informações por analogia é: não estaria sendo criado um “duplo” real, e não imaginário, na medida em que esse armazenamento de informações sobre mim, fora de mim, e que eu desconheço ocorre de fato, e não é apenas parte do mundo imaginário e da fantasia? Em decorrência disso, há que se perguntar se a realidade virtual não estaria criando, através do armazenamento e seleção de informações algorítmicas, uma espécie de “inconsciente virtual” que é, de fato, real e provoca uma quebra na discriminação entre realidade e fantasia para alguns sujeitos já vulneráveis no que diz respeito à noção de si.
Enquanto avançamos para o futuro, corremos atrás de algo que nos acompanha desde nossa pré-história: a necessidade de inventar histórias (fantasias, narrativas) e de contá-las e ouvi-las de outras pessoas. Com ou sem realidade virtual.
Referências bibliográficas:
ENJOLRAS, F. Gare à ces ‘algorithmes qui pourraient finir par nous connaître mieux que nous nous connaissons nous-mêmes’. Le Monde, 26.12.2017.

FREUD, S. “O Inquietante” (1919); O homem dos lobos e outros textos. Obras Completas. Organização e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, volume 14.

* Patrícia Cabianca Gazire é psicanalista e escritora, membro associado da SBPSP. É Professora Afiliada do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP/EPM. Mestre em Saúde Mental pelo Departamento de Psiquiatria da UNIFESP/EPM. Doutora em psicanálise pela Université Paris Diderot (Paris 7), com dupla titulação no Departamento de Psicologia Social da USP. Doutoranda em Escrita Criativa na PUCRS. Autora do livro “Objeto, modo de usar: construção de objeto na psicanálise de pacientes borderline” (Blucher, 2017).


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