ILUMINADOS E LUMINOSOS

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ILUMINADOS E LUMINOSOS
Quando recebi a notícia do falecimento do tio Pedro, não tive dúvida em viajar para estar ao lado dos filhos dele, meus primos, nesse momento tão triste e difícil para alguns, mas tão bonito e renovador para outros, a depender do viés do observador. Tenho uma boa relação com a morte, um ato de amor da vida, um assunto já várias vezes abordado. Quando cheguei a Salvador, na Bahia, fui direto ao velório. Lá, a primeira surpresa. João, o seu filho mais velho, estava vestido com o indefectível terno branco que o tio Pedro usava nas solenidades mais importantes, além do chapéu panamá que o acompanhava todos os dias, como se fossem emblemas da sua personalidade bem-humorada e diletante. João não apenas vestia as roupas do pai, mas o interpretava, com o mesmo jeito e falas que lhe eram características. Agradecia a cada pessoa que chegava por ter vindo “a plataforma de embarque para se despedir”. Acrescentava que esperava reencontrá-los “na próxima estação”. O gesto de João trouxe uma leveza atípica ao velório, um momento quase sempre envolto em tristeza e sofrimento. Aos poucos, após o susto inicial, as pessoas riam do gesto inusitado de João e começavam a relembrar fatos alegres protagonizados pelo tio Pedro, um homem sorridente e sempre disposto a uma boa palavra para iluminar quem encontrasse ou o lugar onde estivesse. Como pai e filho eram muito parecidos fisicamente, diversas vezes tive a sensação de que era o próprio tio Pedro quem falava com as pessoas. Senti-me como se estivesse dentro de um dos romances de Jorge Amado.
Claro que a manifestação de João no velório do pai não foi bem aceita por todos. Percebi algumas pessoas contrariadas com o fato. Tudo complicou com a chegada de Madalena, irmã de João, uma psiquiatra muito conceituada em Salvador e com ideias religiosas muito rígidas. Desde pequena ela foi uma criança quieta e observadora, características pessoais que a acompanharam à idade adulta. Embora não tivéssemos muitas oportunidades para conversar, eu sempre apreciei muito as suas colocações e raciocínios, e, acima de tudo, a sensação de harmonia que transmitia. Irritada com a falta de consideração com a memória do pai, pediu que o irmão respeitasse a sua dor. “A saudade habita em lugares profundos”, acrescentou à beira do descontrole emocional. 
O ambiente piorou quando João respondeu: “Ninguém sente saudade do que não é bom. Toda saudade merece uma comemoração. Para haver saudade é preciso que o amor esteja vivo”. Foi a gota d`água. Descontrolada, Madalena começou a ofender o irmão e a gritar: “Ao contrário de você, eu amava o papai”. As pessoas se manifestaram a favor ou contra, em um momento que não cabia nenhuma opinião, pois somente servia para acirrar os ânimos. Passei o braço em torno do ombro do João e o retirei do velório. Era indispensável evitar que o conflito recrudescesse; era preciso resgatar a tranquilidade de um momento tão delicado.
Já na rua, João perguntou se eu tinha almoçado. Expliquei que, embora não tivesse ingerido nenhum alimento havia horas, a minha preocupação era com o sepultamento do tio Pedro. O meu primo voltou a me desconcertar: “Deixe que os mortos enterrem os mortos”, citou uma conhecida passagem bíblica. Em seguida, chamou um táxi e pediu que nos levasse ao restaurante predileto do pai, especializado em frutos do mar. Fomos atendidos pelos garçons que durante anos serviram ao meu tio. João pediu o prato que o pai sempre pedia. Ainda desorientado, perguntei se ele não preferia retornar ao velório. Propus-me a conversar com a Madalena para contornar o mal-estar. João se negou: “Aqui faremos a nossa despedida, ao jeito do papai, um homem afeito à alegria e a viver todas as maravilhas oferecidas pela vida. Portanto, faremos um brinde ao meu pai e que os mortos enterrem os mortos”, tornou a usar a mesma citaçãoEu quis saber ao que ele se referia. João explicou: “Mortos são aqueles que não mais podem compartilhar deste plano de aprendizado ou quem nunca encontrou o sentido da vida. Desde ontem, o meu pai não é mais aquele corpo inerte no velório, mas um espírito vivo em outra esfera de existência e com lugar cativo em minhas memórias. Lembrarei dele todos os dias, mas sempre com alegria, uma característica indispensável ao amor.  Sempre haverá um equívoco de entendimento quando a saudade motivar a tristeza. A saudade é uma manifestação de amor. Como ninguém sofre por amor, quando a saudade não for alegre, há um motivador estranho ao amor, como apego, dominação ou mesmo situações mal resolvidas, ocultas em mágoas imperceptíveis”. Antes que eu fizesse qualquer questionamento, ele se adiantou em explicar o significado que atribuía a frase: “Somente os mortos choram de tristeza pelos mortos, pois ainda não foram capazes de mergulhar em águas profundas”. 
O João era oceanógrafo e tinha por hábito usar as coisas do mar como metáforas à vida. Pedi para ele explicar melhor. Ele deu de ombros, como quem fala o óbvio e comentou: “Todas as vezes que estiver diante de uma dificuldade, mergulhe em águas profundas. Assim ficará mais fácil encontrar as soluções”. Em meu olhar, um pedido para que prosseguisse. Ele não se fez de rogado: “O fundo do mar não se abala com as tempestades causadas pelo mau tempo. As ventanias e furacões somente atingem aos barcos porque navegam na superfície. São momentos que toda a vida marinha mergulha em busca da calmaria existente no fundo. Uma lição da natureza, basta prestar atenção, ela está em toda parte”.
Ponderei que não era bem assim. Tsunamis são causados por terremotos originários nas placas tectônicas que ficam abaixo do fundo do mar. São tremores que trazem consequências devastadoras à superfície. João franziu as sobrancelhas e murmurou satisfeito: “Exatamente”. Em seguida, acrescentou: “Todo abalo sísmico tem como causa a movimentação do centro planetário ainda desalinhado. Em algum momento, ele buscará o seu equilíbrio e a consequente evolução. Os efeitos são catastróficos na superfície em razão do pouco que conhecemos das profundezas. Então, os danos são dramáticos porque nos pegam de surpresa. Os marinheiros já conhecem os movimentos das marés há milênios porque é a parte do oceano que se move na superfície. Mas nada sabem sobre as fossas abissais e das possibilidades de vida que ali pulsam”. 
Olhou-me nos olhos e perguntou: “Se eu te pedir para fazer um mergulho profundo em si mesmo, o que você irá encontrar?”. Sem pestanejar, respondi: “Encontrarei com a minha essência”. João continuou o raciocínio: “Porém, como não temos por hábito visitá-la, ela não passa de uma ilustre desconhecida para nós. Os seus abalos significam a necessidade de evolução, como tudo que cresce e se transforma, altera a realidade em si mesma. Contudo, ao contrário do planeta, podemos realizar as mudanças em nosso âmago de modo harmônico, sereno e equilibrado”. Então, me desconcertou: “Porém, poucos estão dispostos a isso. No fundo do mar nadam predadores desconhecidos e as águas são muito escuras. Há pouca luz”.
Discordei de imediato. Aquela analogia do oceano com a vida de uma pessoa era imprestável. No centro de um indivíduo, em águas profundas, haveria clareza. Trata-se do importante e indispensável encontro que, cedo ou tarde, cada indivíduo terá com a própria alma, a sua essência iluminada e ainda oculta. João tornou a me surpreender: “A alma não é a essência iluminada. Iluminado é o ego”.
Antes que eu pudesse me manifestar contrariamente, ele prosseguiu o raciocínio: “A alma não está no fundo do mar. Você a encontrará bem mais abaixo. No fundo do mar você encontrará as fossas abissais de águas turvas pela dificuldade de penetração da luz do sol. Ali estão as nossas memórias dolorosas, os fatos tristes que acreditamos esquecidos, mas que influenciam a vida na superfície sem que tenhamos capacidade de perceber, raiz de muitos medos, reações impulsivas e limitadoras. Impedem que sejamos tudo aquilo que podemos ser”.
“Abaixo do vai e vem conhecido das marés da superfície existem as correntes marítimas subterrâneas, que arrastam os navegantes incautos para destinos indesejados. A grande maioria de nós ainda possui uma enorme dificuldade de ultrapassar a essa faixa de mergulho. Não é fácil nadar em sentido contrário as correntezas dos condicionamentos e preconceitos, até porque, em sua maioria, estão tão incutidos em nós que se tornam quase imperceptíveis. Muitos desistem de descer às profundezas de si mesmo ao encontrar as dificuldades iniciais das correntes subaquáticas”. Entendi que ele também se referia às sombras pessoais, como o orgulho, a inveja, a ganância, as mágoas, entre várias outras. Não o interrompi e ele prosseguiu: “Ainda mais raros são aqueles que se aventuram em águas profundas e decidem prosseguir. Destes, a maioria acredita que encontrarão a calmaria, livre das tempestades da superfície, mas se deparam com um lugar escuro, habitado por animais ferozes que insistem em atacar quando os encontramos. Para evitar a repetição de sofrimentos, fugimos. Assim, acorrentamos o coração. Sentimentos puros e sutis se tornam tesouros de ficção”. 
“Então, preferimos nos limitar a navegar de acordo com as marés e dos ventos que sopram para a margem de nós mesmos. Optamos por usufruir da beleza típica da superfície, com as suas águas claras iluminadas pelo sol e as areias brancas das praias, onde é possível construir lindos castelos para o ego. Esforçamo-nos para acreditar que nisso se resume o melhor da existência. Este é o lado bom da vida, repetimos para nós mesmos. Então, a mente resta aprisionada. Os pensamentos claros e originais se tornam cada vez mais raros até deixarem de existir”.
“Muitos se orgulham por saber a localização de praias paradisíacas, se julgam sabidos por conhecerem os movimentos das marés e por terem aprendido a navegar com elas. Contudo, esquecem que as correntes marítimas, que circulam logo abaixo da superfície, as influenciam, assim como determinam as tempestades planetárias. As águas claras se agitam trazendo as impurezas das profundezas, o oceano se revolta em ondas bravias que impedem os banhos na praia. O céu se acinzenta com densas nuvens que escondem as estrelas e o azul típico dos dias felizes. As tempestades desmancham todos os castelos. Pois, egos imaturos, assim como as crianças, os constroem apenas com areia molhada à beira-mar e acreditam que todas as manhãs serão de sol. Nada está dissociado de todas as outras coisas. Ignorar a parte é desperdiçar o todo”.
“Contudo, o sol não alcança as águas profundas. Nisto reside a dificuldade de evolução do ego”.
Questionei a razão de mergulharmos em águas profundas se apenas encontraremos escuridão e predadores. João arqueou os lábios em leve sorriso. Eu tinha feito a pergunta que ele queria responder. Ele explicou: “Muitos têm dificuldade de imaginar que debaixo das águas turvas e geladas do leito oceânico o planeta arde em fogo”. 
“Esta substância efervescente e em ebulição é o magma sem o qual não haveria nenhuma vida no planeta. A alma é o magma do ser. Nenhum um corpo se sustentaria sem a força desconhecida e transformadora da alma, a sua essência e identidade”.
“Desde tempo imemoriais, pelo seu incomensurável poder transformador, o fogo é a perfeita representação da luz. A luz é a expressão do amor e da sabedoria. Assim é a alma, que possui luz própria. Enquanto o ego é iluminado pela luz do mundo, representado pelo sol que banha a superfície, a alma é luminosa pelo fogo que produz”.
“Em dias tempestuosos, quando as nuvens densas bloqueiam os raios do sol, se o ego não se iluminar com a luz proveniente do fogo da alma, amargurará no escuro da existência”. 
“Os descontroles emocionais são sofrimentos que fugiram dos seus senhores em busca de cura, como sombras que anseiam por se transformar em virtudes, assim como escravos revoltos lutam por liberdade. São os abalos sísmicos do magma reprimido que ainda não se expandiu até onde poderia. Do mesmo modo que não haveria vida no planeta sem o calor que caracteriza o seu âmago, tampouco existirá vida verdadeira sem o amor que sustenta a alma. A etapa das águas turvas das tristes memórias exige muita determinação para a devida superação. Nenhum mergulho às profundezas é fácil e isento de perigos. A vida é um ato de coragem e, assim como a verdade e o amor, está reservada para aqueles que querem aprender a nadar em águas turvas. Somente então, após ultrapassar as faixas mais profundas e a domar os predadores de si em si mesmo, encontrará a luz do fogo próprio e conseguirá aproveitar melhor o sol que ilumina o mundo. Enquanto ainda formos incompletos e nos limitarmos a viver na superfície, toda beleza será apenas uma moldura que enfeita a tela. Quando plenos, a beleza se torna parte integrante e primordial da obra”.
O garçom nos trouxe a comida. Estava deliciosa. Comemos sem dizer palavra por longos minutos. Eu quebrei o silêncio para perguntar como aquela teoria se aplicava na prática à Madalena, pois a conversa se iniciara com o conflito surgido no velório. João comentou: “A minha irmã teve sérios problemas com o papai na juventude. Embora ele fosse um homem de excelente caráter e bom coração, tinha as suas dificuldades e equívocos como qualquer pessoa. Ele nunca incentivou a Madalena a estudar, pois achava que as mulheres deviam se dedicar ao matrimônio e à família. Sem dúvida um aspecto atrasado em um homem de muitos atributos de vanguarda. As contradições sinalizam as incoerências ainda presentes e distanciam o ego da alma. Existiram muitas brigas e, não tenha dúvidas, os dois sofreram muito por causa disso. Madalena sempre foi muita determinada e estudiosa, conseguiu se formar em Medicina. A religião foi muito importante por ter sido um centro gerador de força para que ela conseguisse ultrapassar as dificuldades e se tornar tudo aquilo que poderia ser”. Deu uma pausa dramática para acentuar o que iria dizer e acrescentou em seguida: “Ao menos até aquele momento”.
“Madalena sempre foi uma pessoa boa e equilibrada. Enfim, uma mulher iluminada. Contudo, por ainda não ter se tornado luminosa, no velório do papai, ao se deparar comigo representando-o como um homem bom, as memórias dolorosas da convivência entre pai e filha, que tanto a fizeram sofrer, irromperam como um vulcão submerso e incontrolável, trazendo à tona um sofrimento reprimido há muitos anos. Ela não foi capaz de olhar o fato com bom humor. O seu equilíbrio era, em verdade, um desequilíbrio controlado que, naquele momento, escapou dela mesma. Era a sua alma clamando por claridade, uma vez que não estava impedida de manifestar a sua própria luz”. 
“A religião oferece o mapa, mas o caminho pertence ao andarilho. Madalena e papai precisavam se perdoar mutuamente. Acreditavam que tinham se perdoado, repetiam para eles mesmos que assim haviam feito, pois entendiam a necessidade libertadora do perdão. A religião fala sobre o inegável valor desta virtude, mas não ensina a perdoar. Nem pode ou conseguiria. Pois se trata de uma prática espiritual. É preciso ultrapassar as fossas abissais do ser para chegar ao magma de si mesmo. Então, no encontro com a sua luz, o perdão acontece”.
Coloquei os talhares sobre o prato e esperei que o João continuasse. Ele prosseguiu sem que eu nada perguntasse: “Embora a religião e a filosofia sejam como sóis que iluminam o caminho, sempre haverá dias nublados e chuvosos; existem também as noites escuras e sem estrelas. É muito importante que seja assim, pois o viajante terá que aprender a iluminar o caminho com a sua própria luz: a lanterna acesa pelo fogo da alma”. Olhou-me nos olhos e concluiu: “Isto nenhuma religião ou filosofia pode fazer por ninguém. É uma experiência espiritual única, individual e intransferível. Vale ressaltar que o perdão, como no caso da Madalena, é apenas um dos muitos exemplos do exercício da espiritualidade além da religião. Há outros, como as práticas de todas as virtudes. A religião precisa da espiritualidade para se completar; a espiritualidade é inteira por ser independente da religião, assim como a evolução espiritual é livre de dogmas e cerimoniais religiosos obrigatórios. Sabedoria e amor são caminhos percorridos através da expansão de consciência, florescimento das virtudes e o aperfeiçoamento das escolhas. Em resumo, sabedoria e amor dependem apenas da vontade sincera do andarilho em seguir no caminho”.
“A religião e a filosofia ensinam sobre a necessidade de nadar em águas escuras na busca da luz existente no âmago de si mesmo. Isto é muito importante e valioso. Contudo, o aprendizado se encerra neste ponto, no esgotamento da teoria. No mais, somente o exercício do mergulho poderá levar ao magma da vida. É onde termina a religião e a filosofia, que trazem o conhecimento sobre a luz, para se iniciar a espiritualidade, como um processo prático capaz de acender a própria luz. Somente então encontraremos a clareza do pensar e a sutileza do sentir sem qualquer dependência da luz proveniente do mundo que apenas se reflete em nós e sobre nós, mas não é nossa. É a experiência angular de deixar de espelhar a luz que recebemos para gerar a nossa própria luz. Deixamos de ser iluminados para nos tornar luminosos”.
“Não haverá mais a dependência por quaisquer deuses em razão da manifestação de Deus através de si mesmo”.
Piscou um dos olhos como quem conta um segredo e unificou duas passagens bíblicas, oferecendo-lhes um novo sentido: “Vós dois deuses, afinal, vós sois a luz do mundo”. Deu outra pausa antes de finalizar: “Não basta saber, é preciso ser”. Sorri e lembrei que na Mitologia Grega há uma passagem onde Prometeu furta o fogo eterno do Olímpio para entregar à humanidade e assim permitir que cada indivíduo ilumine a sua vida. Prometeu liberta os homens das suas crenças e lhes entrega o poder da fé. Ou seja, de ser luz.

A noite já ocupara o seu lugar quando pagamos a conta e saímos do restaurante. Eu precisava ir para o aeroporto. Perguntei o que o João faria. Ele me disse: “Vou procurar Madalena para conversarmos. Amo a minha irmã”. Despedimo-nos e fiquei observando o meu primo descer por uma das ladeiras do Pelourinho. As ruas não precisavam de lampiões nem o céu das estrelas. Tive a nítida sensação de que ele iluminava a tudo por onde passava.

Yoskhaz



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