DECADÊNCIA

DECADÊNCIA
A casa parecia um castelo. Estive lá uma única vez, havia quase dez anos, na festa de aniversário de cinquenta anos do Rodrigo. Era uma reunião de milionários. Mulheres vestidas com roupas e joias caríssimas, comidas e bebidas refinadas. Em pé, em volta da piscina, segurando os seus copos com gelo e em pequenos grupos, os homens conversavam sobre os seus negócios. Em um deles, o dono de uma famosa construtora revelava como conseguira convencer diversos congressistas a não vetarem uma obra que afetaria uma grande reserva ambiental no interior do país. Em outro, Rodrigo, que era um competente advogado tributarista, contava sobre a assessoria jurídica que prestara a uma empresa petrolífera, encontrando nas brechas da lei a maneira de legalizar a compra de uma refinaria adquirida de uma empresa estatal. Dirigi-me a um terceiro grupo, apenas de jovens que mal tinham saído da adolescência para ingressar na vida adulta, onde acreditei que encontraria uma conversa mais amena e descontraída, como gosto de aproveitar as horas de lazer. Ledo engano. Eles falavam em como idolatravam os homens mais velhos que estavam nas rodas ao lado. Referiam-se a eles como deuses, tamanha a admiração que provocavam.
Eu, um estranho no ninho. Não, absolutamente não, ninguém é melhor nem pior do que ninguém. Contudo, cada um vive como gosta, pelos prazeres que alegram a sua vida. “Entenda o prazer que você procura e entenderá o sabor doce ou amargo dos seus dias”, me disse certa vez Li Tzu, o mestre taoísta. 
Não era uma questão de julgamento, mas de afinidade. Quando julgamos as escolhas alheias, erramos. O motivo é simples. Entendemos o mundo na exata medida da clareza consciencial que possuímos. Ainda viajantes e distantes da luz, temos o olhar embaçado por frustrações, mágoas, condicionamentos e outras sombras diversas. Assim, enquanto eu não conseguir me entender por completo, serei incapaz quanto a perfeita compreensão do outro. Ao invés de julgar devemos entender tão e somente aquilo que queremos ou não para as nossas vidas. Abraçar tudo que nos faz bem e nos torna melhores. De outro lado, impor limites às pessoas e situações que nos desagradam, sem acusações nem recriminações. E, simplesmente, prosseguir.
Eu estava decidido a ir embora quando vi sentado em um banco de madeira, em um canto esquecido do jardim, um senhorzinho de idade avançada. Elegantemente vestido à moda antiga, usando suspensórios e gravata borboleta, ele parecia alheio à festa e parecia se distrair com as orquídeas multicoloridas que estavam próximas. Quando olhei, ele sorriu para mim. Aproximei-me e perguntei se poderia me sentar ao seu lado. Ele autorizou com um sorriso acompanhado de um pequeno aceno com a cabeça. Para puxar assunto, elogiei a festa, repleta de gente bem vestida e de finas iguarias. O senhorzinho me olhou por um breve instante e me respondeu com uma pergunta: “Consegue sentir o cheiro?”. Eu quis saber se ele se referia ao perfume das flores que estavam ao nosso lado. Ele comentou: “Não. Falo do cheiro de decadência”. 
Achei o comentário peculiar pelo fato de ele atribuir um cheiro à decadência. Também achei curioso de ele falar em decadência em razão de ali estarem reunidas algumas das maiores fortunas do Rio de Janeiro. O senhorzinho explicou: “Decadência nada tem a ver com dinheiro. No mais, tudo tem cheiro e também cor. Esta festa tem cheiro de almas abandonadas e de vidas em decomposição e, como consequência, a coloração é bem sombria”.
Neste instante, o Rodrigo me chamou. Ele queria me apresentar a um empresário que procurava por uma nova agência de publicidade, pois estava insatisfeito com a que cuidava da imagem da sua empresa. A conversa foi rápida, pois ao perceber que a minha agência era de pequeno porte, ele se desinteressou em conversar comigo, não sem antes mostrar uma ponta de desprezo pela perda de tempo que eu, embora involuntariamente, tinha lhe causado. Imediatamente, retornei ao jardim em busca do senhorzinho, pois tinha me encantado com as suas palavras e maneira de pensar. Porém, ele não estava mais sentado onde o deixei. Procurei-o por toda parte, sem sucesso. Deslocado e sem outro interesse, fui embora.
O tempo passou. Eu nunca mais tinha encontrado com o Rodrigo e aquela festa foi varrida para o meu inconsciente, as gavetas onde guardamos os fatos que acreditamos esquecidos. Muita coisa havia mudado. O meu ciclo como publicitário tinha se encerrado e uma nova fase, agora como editor, se iniciara. Sim, o fim de uma história é sempre o começo de outra. Inexoravelmente. As dificuldades financeiras eram enormes, assim como o aprendizado. Eu saíra de uma casa espaçosa onde morara por anos para um pequeno apartamento em um bairro bem menos valorizado. Tivera de abdicar de muitos confortos, como reduzir as viagens e evitar alguns restaurantes. Deixei de ter carro, um hábito adquirido havia muitas décadas. Após a estranheza causada no período inicial de adaptação a um novo estilo de vida, vem a sensação de poder pessoal. De quanto menos precisar mais livre serei, a máxima do pensamento estoico é transformadora pela força que concede quando aplicada à prática. Toda desnecessidade quando vista como uma necessidade se torna um fardo e uma prisão. 
A adaptabilidade também é um grande poder quando entendida e usada como ferramenta de transformação. As dificuldades são valiosas por nos levar a viver de maneiras até então impensadas. Isto nos faz descobrir novos valores para a conquista dos mesmos princípios nobres, as plenitudes. A busca verdadeira por amor, liberdade, dignidade, paz e felicidade não depende de nenhuma circunstância do mundo. Apenas do aprimoramento das simples escolhas que fazemos todos os dias. Começa com um olhar diferente e se realiza com um novo jeito de ser e viver, que não depende de nada nem de ninguém, apenas da coerência que teremos a esse olhar.
O dinheiro estava curto, mas os dias eram alegres. A vida estava mais leve. Na pequena editora eu levara um conceito aprendido nos últimos tempos de publicitário: trabalhar ao lado de pessoas com as quais as afinidades eram maiores do que as diferenças. O critério para a publicação de um livro era o valor intrínseco da obra, não a sua capacidade comercial. Inspirado na convivência com Loureiro, todo o processo de edição era artesanal e tratado com muito carinho nos mínimos detalhes. O resultado era uma obra de arte abrigando outra obra de arte.
“O sábio age sem agir”, está escrito no Poema Dois do Tao Te Ching. Eu nunca tinha entendido esta expressão da milenar sabedoria chinesa até Li Tzu me explicar: “É o agir sem esforço. Uma escolha que se faz com tamanha clareza que o ego não precisa ponderar, pois ela germinou com a força e a pureza de uma alma atuante. Quando entendemos que determinada ação é boa, mas não temos o amor necessário para realizá-la de maneira espontânea, precisamos realizar um movimento interior para que ela aconteça. A vontade precisa ser criada. Isto é muito bom. Fazemos em razão da verdade que se consolida em nossa consciência, como uma semente que luta para romper a casca e ultrapassar o solo pedregoso para, então, conhecer o sol. Contudo, quando o amor transborda em nós, agimos em sincronia tão suave com os nossos princípios e valores que é como se nada tivéssemos feito. A vontade já está pronta. É o agir sem-agir. Isto é a perfeita luz. Consciência e amor em um mesmo ritmo e propósito”. 
Apesar das enormes dificuldades financeiras, não cabia naqueles dias qualquer arrependimento pelas escolhas e mudanças realizadas. A alegria tem esse poder. Diferente da euforia, uma ilusão ruidosa para mascarar fugas e vazios, a alegria nasce da serenidade permitida pela lucidez típica de quando vislumbramos com clareza a sabedoria dos ciclos da vida e as indicações do Caminho. Ainda que ninguém mais veja ou concorde, manter-se coerente a esse olhar é fonte incessante de alegria. A euforia é uma diversão mundo afora, a alegria é uma magia universo adentro. A euforia é um ansiolítico para os desencontros, a alegria é o sol de cada encontro. Encontros e desencontros que acontecem em nós. A euforia está sempre em algo; a alegria, eternamente em si.
“Níveis de euforia ou de alegria estabelecem a decadência de uma existência”, me disse Li Tzu certa vez.
Eu estava no aeroporto de Belo Horizonte aguardando uma conexão para Salvador, onde participaria de uma Feira Literária, quando fui informado que o voo atrasaria por duas horas. Dirigi-me a um restaurante localizado dentro da área de embarque na qual eu me encontrava. Para minha surpresa, encontrei o Rodrigo, o advogado tributarista, que eu não via desde aquela festa em sua casa. Ele aguardava outro voo, que também atrasara, e me convidou para sentar-se à mesa com ele.
Rodrigo quis saber se eu o acompanharia na bebida. Ele estava com um copo de vodca nas mãos. Pedi um café, claro. Em seguida, perguntou como estava a agência de publicidade, se tínhamos crescido e conseguido boas contas. Expliquei as mudanças ocorridas na minha vida; falei das dificuldades, descobertas e possibilidades que se avizinhavam. Contei dos livros que tinha publicado e de outros que eu teria a honra de editar, como os Contos de Morserus, de MM Schweitzer, que eu acreditava como um marco na literatura de ficção, tamanha a profundidade e criatividade do autor. Expliquei que a editora era somente uma pequena semente, mas conseguia ver a árvore oculta dentro dela e, a mim, ao lado de alguns outros amigos, como um ousado jardineiro a quem caberia fazê-la florescer.
Incrédulo, Rodrigo me interrompeu para perguntar se na minha idade eu teria tempo e, ainda mais, se acreditava possível essa realização. Respondi que eu não me deixaria aprisionar pelas dificuldades, porque os meus sonhos eram maiores. “Os sonhos fortalecem a alma”, repetia o Velho, o monge mais antigo do mosteiro. Rodrigo me olhou com desdém, como se eu fosse um imbecil e questionou: “Você acredita em sonhos?”. Eu não hesitei: “Claro. Os sonhos são os propósitos de uma existência. Vivê-los me conecta ao meu âmago e, por consequência, à essência da vida. Eles são fundamentais, pois alimentam os meus dias com esperança e alegria. Do contrário, como seriam?”, devolvi a indagação.
“O que movimenta o mundo é o dinheiro. Somente isto interessa de verdade; apenas isso as pessoas respeitam, pois ele o leva a usufruir tudo de bom que existe na vida. Tapetes se estendem, as pessoas se curvam e desejam ficar ao seu lado. As facilidades se apresentam e as portas se abrem”, ele me mostrou a ótica pela qual conduzia as suas escolhas. Tentei oferecer o meu olhar: “O dinheiro é muito importante, afinal todos temos contas para pagar, questões indispensáveis à sobrevivência. Eu preciso dele como qualquer pessoa. Contudo, não é um valor para as conquistas dos princípios que regem a vida. Embora seja um inegável instrumento de sobrevivência, de nada vale à transcendência, objetivo maior da existência. Não há como negar as possibilidades de conforto que o dinheiro oferece e, confesso, também gosto disso. Porém, de nada me serve para alcançar as plenitudes que tanto almejo. Então, o dinheiro não está no topo da pirâmide de prioridades que procuro alcançar. Não é o meu objetivo final”.
Rodrigo me olhou com desprezo e disse com sarcasmo: “Você não vai a lugar nenhum com essas ideias de jardim da infância. Quando vai finalmente crescer? O mundo não é lugar para sonhadores”. Bebi um gole de café e ponderei: “Quem se move unicamente por dinheiro, quem o trata como um deus, se torna seu prisioneiro. Quem faz as suas escolhas tendo o dinheiro como objetivo maior, vive pelo medo. Medo de ser quem é, medo de amar e de não ser amado. Medo do abandono e da miséria. Mas miséria e abandono não são, necessariamente, questões econômicas. Porém, conscienciais. Nada do que é verdadeiramente valioso e importante, como a liberdade, a dignidade, a paz, a felicidade e o amor, necessita de dinheiro”. O advogado deu de ombros e comentou com indisfarçável ironia: “Cada um escolhe o deus que irá adorar”. Apenas fechei os olhos diante do mal-estar que senti naquele momento e balancei a cabeça como quem diz “com certeza”. 
Com claro repúdio, em um convite insincero com a intenção única de me provocar e de me mostrar o que eu perdia ao insistir no meu jeito de pensar, Rodrigo me convidou para passar o Carnaval que se aproximava em sua vila recém-adquirida na Toscana, uma lindíssima região italiana. Disse que era uma construção muito antiga e completamente reformada. Abriu o celular e mostrou algumas fotos. Uma propriedade caríssima, permitida a poucas pessoas. Agradeci, mas declinei do convite. Eu ficaria em casa no feriado, aproveitando para preparar os originais de Morserus. Rodrigo me olhou com irritação e desprezo. Sem nada dizer, eu tinha consciência que fazia uma escolha sincera. Ele também sabia que eu estava sendo honesto em minhas palavras; talvez isto fosse a causa de tanto incômodo, pensei. Vivíamos em um mesmo planeta, mas em mundos diferentes. Ser e viver se definem na maneira de olhar e pelo jeito de caminhar. Então, dores e delícias, luz e sombras, cada um se torna timoneiro do próprio destino. Eu me esforçava para me apoderar de mim mesmo, enquanto ele era dono de muitas propriedades.
Ficamos sem dizer palavras por alguns instantes. Ele esvaziou o copo de vodca, pediu ao garçom mais uma dose e foi prontamente atendido. Rodrigo tornou a esvaziar o copo em um único gole, disse que tinha de ir, pois estava na hora do seu voo e, lacônico, se despediu, não sem antes dizer: “Tome cuidado. Não é à toa que as pessoas comentam que você está decadente. De fato, já te vi em dias melhores”.  
Eu nada mais disse. Apenas fiz um gesto com a cabeça em despedida e o observei se afastando apressadamente, enquanto eu tentava entender a razão daquelas atitudes.
Terminei o meu café com calma e fiquei pensando naquele encontro. Tínhamos sido grandes amigos na juventude, com muitas afinidades. Entretanto, em algum momento, em uma das muitas bifurcações da vida, seguimos em diferentes direções. Nada mais restara em comum. Nada há de errado nisso e cada um deve conduzir as suas escolhas de acordo com os seus interesses e intenções. Porquanto, uma questão: por que a minha decadência o incomodava a ponto de se irritar comigo? Eu vivia de acordo com as minhas escolhas e, nem por um segundo, tentei convencê-lo de me acompanhar. Até porque eu não faria isto com ninguém. Apenas ofereci o meu olhar em contraponto ao dele em uma conversa que deveria ser leve e agradável. Nada mais. 
Pedi a conta ao garçom quando anunciaram que os passageiros do meu voo deveriam se encaminhar para o portão de embarque. Junto à minha conta vieram quatro doses de vodca que Rodrigo esquecera de pagar. Acertei tudo e quando me aproximava ao portão de embarque, vi que Rodrigo estava sentado em outro bar com um copo de vodca na mão. Entendi que não chegara a hora do seu voo, mas fora somente um pretexto usado por ele para se afastar de mim. Ao me ver, ele franziu as feições em repúdio e virou o rosto. Eu apenas segui em frente.
Sentado na poltrona do avião, eu estava chateado e tentava entender a reação do Rodrigo. Ele era um advogado rico, famoso e requisitado; eu, apenas um publicitário cuja carreira se esgotara e, agora, um escritor desconhecido, além de editor iniciante. Ao contrário dele, não havia nada em minha vida que as pessoas pudessem invejar. Qual a razão daquela aversão se eu nunca lhe fizera nenhum mal? 
Após a decolagem, tirei os originais de Morserus de dentro da mochila. Decidi aproveitar as quase duas horas de voo para trabalhar na preparação do texto. Ao começar a ler, não por acaso, me deparo com um comentário de Zemial, um dos protagonistas daquele universo fantástico: “Naquele momento eu pude entender como nunca tinha sido possível antes. A minha alegria desmascarava a tristeza escondida em cada um deles. Eles me odiavam, mas no veneno da ojeriza, eles entregavam o jogo. O repúdio demonstrado por mim era apenas a maneira de esconder a aversão que eles tinham sobre si mesmos”.
Era estranho, triste e verdadeiro. Difícil para o Rodrigo seria, um dia, admitir. Talvez demorasse muito tempo, pois a dor ainda estava no inconsciente disfarçada com as máscaras da euforia. Quanto a mim, eu precisava aprender quando um nãosignificava um sim. No mais, me cabia apenas prosseguir. 
Fechei o texto e os olhos. Em silêncio, tomado por profunda serenidade, agradeci às estrelas pela maravilhosa sincronicidade oferecida entre a realidade da minha vida e a ficção de Morserus. A sincronicidade é um instrumento cósmico sempre disponível às nossas transformações.
No desembarque, misturado às muitas pessoas que iam e vinham, um senhorzinho vestido a moda antiga, de suspensórios e gravata borboleta, me observava de longe. Ao fixar os meus olhos nos seus, ele mexeu os lábios devagar para que eu pudesse fazer a leitura: “Entendeu agora?”. Continuei andando com a sensação de que eu o conhecia de algum lugar. Lembrei-me na fração de segundo seguinte. Era o senhorzinho com quem eu havia conversado havia muitos anos na festa do Rodrigo. De imediato, voltei. Eu queria muito continuar aquela conversa. Mas ele não estava mais onde eu o havia visto. Contudo, desta vez não me surpreendi, apenas me deixei encantar. 

Yoskhaz


Imagem: Peter Krocka – Dreamstime.com


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