O INDIVÍDUO E A PSICOLOGIA BUDISTA

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O Indivíduo e a Psicologia Budista

Por milênios, a psicologia introduzida pelo Buda não encontra paralelo na história da humanidade. Essa psicologia é oferecida como instrumento pedagógico no contexto de seus ensinamentos, isso é, no contexto de sua teoria do sofrimento (igualmente uma teoria da felicidade) e do treinamento para a extinção do sofrimento.
O Buda usou duas perspectivas para ajudar a compreender e investigar a essência de nossa individualidade e a essência de nossas experiências. A primeira perspectiva é conhecida como os Cinco Agregados¹Já a segunda, é conhecida como as Esferas dos Seis Sentidos.
O homem Vitruviano de Leonardo da Vinci.
Abaixo, essas perspectivas são introduzidas de acordo com os discursos do Buda presentes nos textos mais antigos da tradição budista.
Os Cinco Agregados
Na cultura ocidental, é comum dividir um indivíduo em “mente” e “corpo”. Ainda, é popular a tendência em dividir a mente “consciente” e “inconsciente”. No Budismo, entretanto, o indivíduo é examinado em cinco aspectos, conhecidos como os “Cinco Agregados Sujeitos ao Apego”, ou simplesmente os “Cinco Agregados”² (em Pāli, pañcakkhandhā):
“E o que são os cinco agregados sujeitos ao apego? Eles são: o Agregado Rūpa, o Agregado Vedanā, o Agregado Saññā, o agregado Sakhārā e o Agregado Viññāa.”MN 28
O Buda chamou esses cinco aspectos de agregados como forma de descrever o que é um ser vivo: um punhado de formações condicionadas (dependem de outros fenômenos para surgirem, e com a ausência destes, deixam de ser). Além disso, cada agregado não é uma substância, mas um aspecto ou processo fenomenológico da nossa experiência como ser vivo.
Ademais, a formulação dos Cinco Agregados não tem como propósito descrever exaustivamente todas as funções físicas e mentais de seres vivos, mas auxiliar na compreensão das nossas experiências individuais no contexto do objetivo do Budismo, o fim do sofrimento. Assim, os Agregados compõem os processos relevantes do ponto de vista do fenômeno do sofrimento e da natureza do sofrimento.
Rūpa (Forma)
“E o que é o agregado Rūpa Sujeito ao Apego? São os quatro elementos e a forma derivada destes quatro elementos. E quais são os quatro elementos? Eles são o elemento da terra, o elemento da água, o elemento do fogo, o elemento do ar.”MN 28
Acima, o Agregado Rūpa (“forma”) é definido nos discursos do Buda. Os “elementos” a que se referem são figuras de linguagem para as características físicas:
“E o que é o elemento da terra? […] aquilo que é sólido […]. Isso é, cabelos, pelos, unhas, dentes, pele, carne, ossos [órgãos, fezes, etc].”
“E o que é o elemento da água? […] aquilo que é líquido […]. Isso é, bile, pus, sangue, suor, gordura, lágrimas, saliva, urina […].”
“E o que é o elemento do fogo? […] aquilo que aquece, calor, que envelhece, e que digere o que é ingerido […]”
“E o que é o elemento do ar? […] ventos na barriga, no intestino, inspiração e expiração […].”
Portanto, Rūpa é tudo aquilo que é sólido (“terra”), líquido (“água”) e gasoso (“ar”) em nosso corpo, mais energia física e calor (“fogo”).
É importante notar que o Buda não define o Agregado Rūpa como “corpo material” nem como “matéria”. Ele define com base nas características pelas quais nós identificamos um corpo por via dos sentidos (forma, pressão, temperatura, textura, etc). A diferença é sutil mas emblemática: o Buda não se mostra interessado em investigar o universo físico, do ponto de vista ontológico, como a biologia e física moderna que investigam tecidos, células e átomos. Seu interesse se foca na investigação dos fenômenos da forma como os experimentamos. Portanto, sua abordagem é fenomenológica e experiencial. Essa abordagem é refletida consistentemente em toda sua doutrina.
Vedanā (Sensação)
“E por que se chama Vedanā? ‘Sente-se’, monges, é por isso que é chamado ‘Vedanā’. E o que se sente? Sente-se prazer, sente-se dor, sente-se nem-dor-nem-prazer.SN 22.79
O Agregado Vedanā (“sensação”) corresponde às respostas afetivas aos estímulos sensoriais. Por exemplo, somos estimulados a todo momento por nossos sentidos: o vento que toca a pele, um som que chega aos ouvidos, uma figura vista com os olhos, e assim por diante. Cada um destes estímulos cria uma sensação correspondente, no momento do “toque”. Essa “sensação afetiva” é chamada Vedanā, e sua definição mais comum divide-a em três possibilidades: uma sensação de conforto/prazer, de desconforto/dor, ou neutra³.
Saññā (Percepção)
“E o que se chama Saññā? ‘Percebe-se’, monges, por isso se chama Saññā. E o que se percebe? Percebe-se azul, percebe-se amarelo, percebe-se vermelho, percebe-se branco.”
— SN 22.79
O Agregado Saññā (“percepção”) representa nossa capacidade de reconhecimentoidentificaçãoapercepção concepção (involuntária ou deliberada). Trata-se, portanto, de processos de associação, identificação e memória em nossa mente.
No exemplo dado no discurso acima, não se trata de lembrar o nome da cor que se vê propriamente dito, mas de reconhecer a própria cor azul como azul, por exemplo. Similarmente, é o ato básico de identificar calor e frio, sons agudos e graves, sabor doce e salgado, etc, pelas suas características⁴. Adicionalmente, é o ato de conceber: conceitos, categorias, idéias, etc.
Ainda, Saññā incorpora não só a assimilação de um rosto como um rosto, em um primeiro momento, mas também ao subsequente reconhecimento da pessoa por meio da memória. Assim Saññā envolve não só a identificação básica e natural das características e propriedades daquilo que percebemos diretamente pelos estímulos sensoriais (ex. formas visuais), como também características inferidas (ex. o rosto de um homem; o rosto de João).
Portanto, é na faculdade Saññā que percepções incorretas também ocorrem, pois é aqui que as interpretações sobre os “dados” que chegam pelos sentidos são feitas.
Sakhārā (Formações Volitivas)
“E o que, monges, é Sakhārā? Há esses seis tipos de intenções: intenções associadas às formas, intenções associadas aos sons, intenções associadas aos odores, intenções associadas aos sabores, intenções associadas aos objetos táteis, intenções associadas aos fenômenos mentais. Isso se chama Sakhārā.”
SN 22.56
O Agregado Sakhārā (“formações volitivas”) corresponde às nossas intenções. Por “intenção”, entende-se menos os nossos planejamentos e expectativas mais abstratas, e mais as intenções que determinam cada ação que tomamos.
Por exemplo, uma pessoa entrando em um ônibus em direção a universidade pode dizer que frequenta a universidade com a intenção de obter um emprego melhor e poder ajudar sua família. À seguir, após dizer isso, ela vê um assento desocupado e rapidamente se dirige a ele com a intenção de sentar-se antes que outros o ocupem.
Nos dois exemplos acima, o termo “intenção” é usado como entendemos o conceito normalmente. Porém, o primeiro (obter emprego melhor) é mais abstrato e indireto, como um planejamento a longo prazo. Já o segundo exemplo (andar rápido com a intenção de sentar) é mais significativo no que se refere a Sakhārā: a intenção específica que motiva e desencadeia um movimento, uma palavra ou um pensamento que temos, momento após momento.
Essas intenções, por vezes, são difíceis de observar devido aos nossos hábitos e tendências. Em geral, quando reagimos à algo (uma visão, som, cheiro, sabor, toque ou pensamento), essa reação tem como origem uma intenção/Sakhārā. Por isso, a definição de Sakhārā no discurso acima é desdobrada em seis tipos, um para cada tipo de estímulo sensorial.
Viññāa (Consciência)
“E o que, monges, é Viññāa? Existem esses seis tipos de consciência: viññāa visual, viññāa auditiva, viññāa olfativa, viññāa degustativa, viññāa tátil, viññāa mental.”SN 22.56
O Agregado Viññāa é um dos aspectos cruciais que permite que nós experimentemos um estímulo sensorial qualquer. Trata-se do aspecto discriminatório mais básico: o discernimento de que “algo” ocorreu. Neste caso, Viññāa é a “consciência de um estímulo”. Por isso, esse agregado costuma ser traduzido como “consciência”. Porém o uso dessa palavra no ocidente carrega significados muito mais complexos. Ao contrário, Viññāé entendido como sendo apenas o engajamento inicial à um estímulo.
Por exemplo, ao ler esse parágrafo, é possível que o leitor esteja em um local com algum barulho. Porém, esse barulho pode não ter sido percebido durante a leitura até este momento. No exato momento em que um som chegou ao ouvido e recebeu atenção da mente, esse engajamento chama-se Viññāa. Do contrário, mesmo estando em um local barulhento e mesmo que o som chegue fisicamente aos ouvidos, sem Viññāa auditiva, não há contato com o som.
O mesmo ocorre com os outros sentidos. Podemos ver formas com os olhos, mas não as enxergamos se não dermos atenção (por exemplo, ao “sonhar acordado” olhando a paisagem). Durante boa parte do nosso tempo, não sentimos sabores em nossa boca, nem prestamos atenção no aperto de nossas roupas que oprime nossa pele.
Isso é, não vemos, não ouvimos, não cheiramos ou sentimos sabores ou toques quando Viññānão surge associado ao sentido naquele momento. Mas tudo o que enxergamos, ouvimos, cheiramos, saboreamos, tocamos e pensamos é percebido porque surge uma Viññācorrespondente, dirigida ao estímulo, e esta Viññādesaparece com o fim do contato, ou quando a mente se inclina à outro estímulo (momento em que surge outra Viññāa).
Assim, o Agregado Viññācontempla essa “atenção” que surge, momento após momento, direcionada aos estímulos que chegam aos sentidos e que nossa mente se inclina a discernir e conhecer⁵.
Notas Adicionais
É importante destacar novamente que esses Cinco Agregados não são cinco “componentes” físicos em nós. Eles também não são substâncias, mas sim, categorias que dividem processos que surgem (por vezes, momento após momento) e manifestam as experiências de nossas vidas.
Nem mesmo o nosso corpo é uma substância estritamente falando: trata-se apenas de complexos processos de transformação contínua em que células e átomos são substituídos frequentemente numa troca incessante com o ambiente ao redor e com os alimentos que consumimos⁶. O corpo apenas possui a aparência de ser uma substância estável. Mesmo as células e os átomos não são substâncias em essência (pois são formados por outros fenômenos).
Assim como o nosso corpo, o que chamamos de “mente” (nossas sensações, percepções e pensamentos, consciências e intenções) é, também, impermanente, surgindo, transformando-se e finalmente desaparecendo. Por exemplo, ao vermos uma forma com os olhos, não só o objeto está sujeito a mudança (ele não será o que é eternamente), como a imagem captada pela nosso olho muda de acordo com mudanças na luz e outras condições que afetam a visão. Além disso, nossa visão não repousará sobre o objeto pra sempre (no máximo, nossos olhos deixarão de funcionar quando morrermos).
Similarmente, nossas cognições, percepções e sensações surgem, mudam e desaparecem. O filósofo grego Heráclito disse não ser possível pisar no mesmo rio duas vezes. Não somos os mesmos, nem o rio é o mesmo.
Concluindo, o Buda afirma que os Cinco Agregados são dukkha. Mais do que isso, ele formula os Cinco Agregados como a Primeira Nobre Verdade, e o desejo/apego à eles como a Segunda Nobre Verdade:
“Eu me lembro que dukkha, senhor, é a primeira nobre verdade ensinada pelo Buda.”SN 56.15
“E o que é 
dukkha? […] Em resumo, os cinco agregados sujeitos ao apego são dukkha.
MN 9
“Esses Cinco Agregados surgem dependendo de condições. O desejo, a indulgência, a inclinação, o apego à esses cinco agregados correspondem à origem de dukkha.”MN 28
Lembrando o significado de dukkha:
A insatisfatoriedade daquilo que é condicionado se deve a sua impermanência, a sua vulnerabilidade a dor e a sua incapacidade de oferecer completa e permanente satisfação.Bhikkhu Bodhi
Finalmente, por que o Buda chama esses Cinco Agregados de “sujeitos ao apego”? Eles são assim designados pois nós temos a tendência de nos agarrara um ou outro, buscando neles nossa identidade ou algo que seja mais estávelalgo que seja nossa essência. Porém, ao nos apegarmos dessa forma e observarmos que aquilo que agarramos mudou ou deixou de serpois é da natureza delas mudar e deixar de ser, sofremos.
“Qualquer tipo de RūpaVedanāSaññāSakhārā e Viññāque sejam , no passado, presente ou futuro, de si ou dos outros, espessas ou sutis, inferiores ou superiores, perto ou longe: elas são chamadas respectivamente de Agregado Rūpa, Agregado Vedanā, Agregado Saññā, Agregado Sakhārā e Agregado Viññāa.”SN 22.48
As Esferas dos Seis Sentidos
A segunda perspectiva ensinada pelo Buda para investigar nossas experiências e nossa individualidade é conhecida como as Esferas dos Seis Sentidos(saāyatana, em Pāli). Essa perspectiva é dividida em duas categorias: interna e externa:
“‘As Seis Esferas Internas devem ser compreendidas’. Assim foi dito. E em referência ao que isso foi dito? Há a esfera do olho, a esfera do ouvido, a esfera do nariz, a esfera da língua, a esfera do corpo e a esfera da mente.
[...]
‘As Seis Esferas Externas devem ser compreendidas’. Assim foi dito. E em referência ao que isso foi dito? Há a esfera da forma, a esfera do som, a esfera do odor, a esfera do sabor, a esfera do tangível e a esfera do fenômeno mental.”
MN 148
Assim, as Esferas Externas correspondem aos objetos dos respectivos sentidos. Já as Esferas Internas correspondem aos cinco sentidos convencionais (visão, audição, olfato, paladar, tato) mais o sentido da mente. Portanto, a mente aqui é, também, um órgão sensorial e possui como objeto fenômenos mentais (pensamentos, sensações, lembranças, etc).
Em um discurso notável do Buda, ele parece afirmar que não há outra forma de experimentar o sasāra fora das Esferas dos Seis Sentidos. Esse discurso ficou conhecido como “O Tudo”:
“Monges, o que é “o tudo”? O olho e formas, o ouvido e sons …. a mente e fenômenos mentais. Isso é chamado “o tudo”.
Se qualquer pessoa disser: “Ao rejeitar esse ‘tudo’, eu tornarei conhecido outro ‘tudo’isso seriam meras afirmações vazias. Ao ser questionado, ele não seria capaz de responder e, portanto, ele se frustraria. Por que razão? Pois, monges, isto está além do domínio desta pessoa.”
 —SN 35.23
No ocidente, entendemos que nossos sentidos compreendem as interfaces“entre nós e os fenômenos”portanto, “entre nós e o samsara”, ou “entre nós e a vida”. Porém, não costumamos entender a “mente” como um sentido em si, e podemos achar que existem outros sentidos. O que o Buda diz acima é que todas os contatos que experimentamos, todos os eventos que identificamos, todos os estímulos que percebemos tem como porta de entrada um dos seis sentidos. E todos os sentidos são dukkha. Mais do que isso, o Buda também formula os seis sentidos como a Primeira Nobre Verdade:
“E o que é a Primeira Nobre Verdade (dukkha)? As Seis Esferas Internas dos sentidos . Quais seis? A esfera da visão … a esfera da mente.”SN 56.14
Conclusão
Os Cinco Agregados representam “quem somos” enquanto indivíduos, são processos que manifestam a nossa experiência em vida. Desses processos, surge em nós a concepção da individualidade, do “eu”. As Seis Esferas dos Sentidos correspondem as interfaces que delineiam a individualidade e a dualidade das nossas experiências, e nos permitem participar e experimentar o sasāra.
Os Agregados e as Seis Esferas dos Sentidos são conceitos fundamentais para compreender os ensinamentos mais importantes do Buda. Ainda, eles são pré-requisitos para se aprofundar nas práticas mais avançadas do Caminho Óctuplo. Em particular, o entendimento deles é necessário para as práticas mais profundas de meditação.


¹ Os Cinco Agregados foram introduzidos na publicação As Quatro Nobres Verdades.
²Nessa publicação, usarei os termos primariamente em Pāli ao invés de traduzi-los para o português, não só procurando evitar confusão com traduções inapropriadas, mas também visando acostumar o leitor com esses termos tão comuns na literatura budista.
³Há análises nos discursos que desdobram Vedanā em cinco tipos, seis tipos, dezoito tipos, trinta e seis tipos e cento e oitenta tipos. Porém, todas elas tem como base a exposição mais comum e usada, que é a definição em três tipos: prazer, dor e nem-dor-nem-prazer.
⁴Os sutras não são muito claros sobre a exata definição de Saññā: a interpretação oferecida aqui se baseia nos estudos realizados pela Dr. Sue Hamilton em seu livro “Identity And Experience: The Constitution of the Human being According to early Buddhism”.
⁵O Agregado Viññāa é melhor compreendido no contexto da análise da experiência.
⁶ Algumas estimativas de biologistas sugerem que as células de um corpo adulto tem idade média de 7 a 10 anos. Outras estimativas sugerem que quase todos os átomos do corpo no início do ano não estão mais presentes no fim do mesmo ano. Isso é, em tese, nosso corpo é outro após pouco mais de um ano, literalmente.

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